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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

EXCEPCIONAL...

★★★★★★★★★★
Título: Mogli, O Menino Lobo (The Jungle Book)
Ano: 2016
Gênero: Fantasia, Aventura
Classificação: Livre
Direção: Jon Favreau
Elenco: Neel Sethi
País: Estados Unidos
Duração: 106 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um garoto criado na floresta por uma matilha é ameaçado por um temido tigre, obrigando-o a partir para a tribo dos homens.

O QUE TENHO A DIZER...
É um daqueles filmes em que há apenas elogios. Um daqueles filmes que você termina e tem a verdadeira sensação de ter viajado junto com a fantasia que ele abraça. Um filme tipicamente Disney.

O título, baseado numa série de livros do inglês Rudyard Kipling, talvez seja um dos mais adaptados pela própria Disney. Nesta nova adaptação, além de ser novamente baseado na obra de Kipling, é visualmente inspirado - e tenta ser o mais fiel possível - ao clássico animado de 1967.

Particularmente não me lembro do original animado, por ter assistido uma única vez quando criança, mas como dito, ele tenta ser tão fiel que em vários momentos as cenas clássicas darão uma deliciosa sensação de deja vu para quem também já tenha assistido ao desenho, mas não se lembra com detalhes. Talvez essa seja a sensação mais interessante, essa nostalgia emocionante que ele resgata da nossa memória.

A riqueza visual é de brilhar os olhos, não chega na mesma sensação que se tem com A Lenda de Tarzan (The Ledgend Of Tarzan, 2016), porque consegue ser melhor. Aqui tudo é muito mais imersivo, apreciável, visualmente delirante. Seja Mogli correndo sobre os galhos de árvore, pulando sobre troncos caídos, mergulhando nos rios ou interagindo com seus companheiros. Há também a fantasia da história, e suas metáforas, simples, mas muito relevantes, tanto para as crianças, quanto para os adultos que ainda parecem ter muito o que aprender. A maravilhosa fábula do menino criado por lobos, que se torna homem dentro de uma floresta, numa dúvida às outras espécies no mesmo tom que teriam os homens sobre eles. Enquanto filhote não existe perigo, mas e quando crescer? Quando seus instintos aflorarem e sua natureza tomar forma?

Essa é a grande metáfora de Mogli. Porque por mais que os animais pensem e se comuniquem com ele, a racionalidade do garoto é diferente, constantemente criticada pelo seu mentor, o pantera negra Bagheera. O que os animais não percebem é que a natureza de Mogli não é diferente da deles, pois os homens, um dia, também já foram da floresta.

Também consegue ser um filme educativo, no ponto de vista do respeito à natureza e a possibilidade da perfeita coexistência com ela quando respeitada as Leis da Selva, que na verdade são as morais que compõem todo o livro do tal título original. Algo um tanto resgatado na fábula d'O Rei Leão (The Lion King, 1996), também da Disney e igualmente referenciada por aqui de diversas formas. A mais memorável delas é na similaridade entre Scarf (o inimigo de Simba), e Shere Khan, o inimigo de Mogli .

A novidade dessa vez é o filme ser teoricamente considerado um live action, ou seja, um filme em carne e osso. Mas ao contrário da versão de 1994, feito com animais de verdade, e que na época parecia surpreendente, nessa nova versão a única coisa verdadeira é o ator, o garoto Neel Sathi, competente e espontâneo, um tiro certeiro na escolha. No resto, tanto os cenários quanto os animais, é tudo digitalizado. Uma animação realista, vamos dizer. E que convence mesmo.

Do começo ao fim, o filme é empolgante e sensível. Mogli transita de um cenário ao outro, conhecendo partes da floresta que ele desconhecia. Quanto mais adentra nela, mais a diversidade da fauna e da flora aumentam, com seus chefes dominantes em cada habitat específico, em um desenvolvimento similar a de um video game: quanto mais ele progride na história, maiores também são as dificuldades e os desafios. Para quem conhece o jogo eletrônico dos anos 90, irá perceber essas referências com facilidade.

A similaridade da personalidade dos animais com a dos homens não é uma mera coincidência, e a ingenuidade do personagem não consegue fazê-lo ver a maldade. Da serpente traiçoeira que tenta se alimentar dele, do urso canastrão que se aproveita de sua bondade, do gigante orangotango que quer escravizá-lo, e do tigre que quer se vingar. Fases que Mogli terá de passar para adquirir experiências e se tornar um homem, mesmo que sendo uma criança.

A captura de movimento dos animais digitalizados é impressionante, bem como a textura e a expressividade. Ricos detalhes que deixarão qualquer pessoa boquiaberta e deslumbrada, numa sensação que irá impressionar, chegarndo muito próximo do que Spielberg já nos transmitiu com Parque dos Dinossauros (Jurassic Park, 1993), tamanho o realismo. Jon Fevreau, já bastante experiente com efeitos especiais por conta da série do Homem de Ferro, realizou um grande desafio de conseguir transmitir tudo com naturalidade e transformar esta nova adaptação em um filme inesquecível.

Confesso que chorei o filme todo na emoção de ver um trabalho tão bem feito e na delicadeza aos menores detalhes, diferenciando O Livro da Selva de qualquer outro filme banal com animais, feitos apenas para agradar aquele público que acha qualquer cachorro em frente à câmera "fofinho". Aqui a fábula é outra, uma que possui uma seriedade disfarçada na ingenuidade do tema; que possui uma linguagem adulta, mas compreendida por crianças pelas referências visuais; que consegue ser assustadora, mas ao mesmo tempo nobre. Poderosa em sua moral, mas delicada na abordagem.

CONCLUSÃO...
É a Disney sendo a Disney que agrada todo mundo. Não tem como não se emocionar ou delirar com este nova adaptação, a melhor delas, e que continuará sendo por muito tempo.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

ÚLTIMAS APOSTAS PARA O OSCAR 2017!

Este ano o favoritismo está um pouco óbvio ao musical La La Land, além de ter sido marcado por grandes esnobadas e erros, mas como a Academia vem se obrigando a fazer surpresas nos últimos anos pra fugir do previsível, poderá haver um ou outra coisa inesperada. Ainda não viu a lista completa de indicados? Então clique AQUI.

MELHOR FILME
Este ano teremos 9 favoritos, com alguns títulos que tiveram recepções muito mornas e que não seria de se espantar se a audiência pouco souber deles, como é o caso de Cercas (Fences) para promover a dupla manjada Viola Davis e Denzel Washington; O australiano Uma Jornada Para Casa (Lion); Moonlight; Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures); e a volta de Mel Gibson como diretor em Até O Último Homem (Hawsaw Ridge). Mas o favorito é La La Land, já que Martin Scorcese novamente foi brutalmente esnobado com seu filme Silence, Deadpool ficou de fora para não servir de mau exemplo e Capitão Fantástico é antiamericano demais para estar na lista.

Se houver alguma segunda opção para vencedor... talvez seja Moonlight. Mas não vai.

MELHOR DIRETOR
Mel Gibson voltou pra lista, mas Scorcese ficou de fora. Denis Villeneuve poderia ganhar com facilidade por Arrival, mas é um filme que tende a ganhar apenas nos quesitos técnicos. O hominho pelado ficará com Damien Chazelle. A esnobada do ano foi novamente Tom Ford, que a Academia reitera seu preconceito por alguém que veio de um outro setor artístico, o da moda. Isso não justifica o trabalho exemplar que ele realizou em Animais Noturnos, melhor que de muitos indicados aqui.

MELHOR ATOR
Muita gente tem clamado raivas pela ausência de Tom Hanks por Sully, mas o favoritismo está no meio de três: Casey Affleck pode levar pelo talento e carisma que tem no meio; Ryan Gosling pode levar porque está em La La Land, mas se ele já foi esnobado antes por Drive, não seria novidade perder esse ano; e Danzel Washington poderia levar por uma simples questão moral da Academia.

MELHOR ATOR COADJUVANTE
Mahershala Ali, Lucas Hedges e Michael Shannon são os favoritos, mas Dave Patel pode derrubar todos eles numa tacada só.

MELHOR ATRIZ
A grande esnobada foi Amy Adams, que realizou duas incríveis performances em A Chegada e Animais Noturnos, dois filmes incríveis, mas que mesmo assim não foi suficiente para ela estar na lista. Foi algo um tanto ridículo por parte da Academia, principalmente porque cometeram a grande gafe de publicarem, por engano, o nome de Amy quando a lista de indicados foi divulgada, mas logo em seguida foi retirado. A Academia publicou um pedido de desculpas, mas a situação continuou feia. No lugar dela enfiaram novamente Meryl Streep, indicada pela vigésima vez. Desnecessário. Já passou da hora de Meryl ser indicada apenas se for ganhar. Não vai ganhar? Então pulem... não faz diferença! Todo mundo já entendeu que ela é a rainha de Hollywood e ela mantém o recorde de indicações. A preferida esse ano é Isabelle Hupert, mas... como a Academia já tem uma tradição de ignorar atrizes estrangeiras, Emma Stone poderá levar para garantir sua simpatia. 

MELHOR ATRIZ COADJUVANTE
A surpresa é Naomi Harris, uma atriz muito competente que está tendo uma ascenção muito natural na carreira, o que é sempre muito válido. Viola Davis divide o favoritismo com Octavia Spencer e Michelle Williams, e é bem possível que Viola leve porque ela já foi popularmente escolhida como a representação feminina negra do cinema. 

MELHOR ROTEIRO ORIGINAL
Damien Chazelle é o favorito por La La Land, seguido por Kenneth Lonergan por Manchester By The Sea.

MELHOR ROTEIRO ADAPTADO
Arrival, Hidden Figures e Moonlight estão no páreo. As categorias de roteiro geralmente são imprevisíveis.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

SÓ ASSISTINDO PRA SABER...

★★★★★★★★★☆
Título: A Chegada (Arrival)
Ano: 2016
Gênero: Ficção Científica, Suspense, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Denis Villeneuve
Elenco: Amy Adams, Jeremy Renner, Forest Withaker
País: Estados Unidos
Duração: 116 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma especialista em linguística é contratada pelo exército norteamericano para tentar decifrar estranhas mensagens recebidas diretamente de extraterrestres cujas naves estão espalhadas em vários pontos do mundo.

O QUE TENHO A DIZER...
A Chegada é um daqueles filmes de ficção-científica que quando acabam deixam o espectador pensando sobre ele. Não de maneira a tentar compreender a história porque seja algo muito complexo, mas de forma reflexiva sobre a vida, sobre a condição humana, e sobre a função de cada um no mundo. Também na tentativa de descobrir qual é a nossa verdadeira parte nele junto com a aceitação dos inevitáveis fins. Não que o filme fale diretamente sobre isso, mas é o sentimento que a protagonista terá, e que o espectador, de alguma forma, irá absorver todas as vezes que ela tiver flashes sobre episódios alegres e tristes vividos, ao mesmo tempo em que tenta aprender a lidar com um sentimento constante sobre uma função maior, a compreensão de que existe algo grandioso a ser feito, mas que ela não consegue entender exatamente o quê.

Nesse ponto, tanto o filme, quanto a personagem de Amy Adams, se assemelham com a jornada de Dra. Ryan Stone em Gravidade (Gravity, 2013), o qual é uma grande metáfora da vida e do renascimento. Aqui essa sensação não é muito diferente, mas ao invés do renascimento, a metáfora é sobre a continuidade da vida e sua relevância.

E assim que o filme acaba, no brevíssimo segundo de silêncio até a trilha sonora voltar a tocar para os créditos finais, não será estranho alguém se encontrar em um estado quase catatônico nesse ínterim, com um breve filme da própria vida rodando na memória em milésimos de segundos. Talvez este seja um dos sentimentos mais fantásticos que esse longa possa despertar naqueles espectadores que conseguirem compreender e mergulharem não apenas na história, mas também nos propósitos dela. De qualquer forma, absorva esse sentimento e abrace essas emoções se por acaso aparecerem, porque é raro quando o cinema atinge esse nível de sinergia com seu espectador. E esse filme consegue, é necessário apenas se conectar a ele.

E para aqueles que não compreenderem a história logo de cara, ou não tiverem essas sensações um tanto trancendentes, acredite, tudo pode ser apreciado de outras maneiras, e à sua forma, porque nada nele é tão complexo como parece ser, mas as discussões sobre a história poderão surgir, e serão produtivas, pois é um filme que ergue questões até triviais, mas assim são justamente por ignorarmos sua existência.

Muito tem sido dito sobre a necessidade de se assistir ao filme outras vezes para um melhor entendimento. A verdade é que a complexidade do filme não é tão grande assim. Mesmo tendo duas narrativas que se intercalam, o roteiro foge bastante da velha fórmula da narrativa desconstruída, propositalmente desconexa, atualmente usada exaustivamente em filmes e séries, enganando o espectador gratuitamente para elevar suspense ou complexidade em coisas simples.

Neste filme o roteirista utiliza uma narrativa não-linear, mas ela definitivamente faz parte real do desenvolvimento da história, e o diretor, Denis Villeneuve, consegue conduzir tudo de maneira muito consistente e sem pressa, com nada ao meio para distrair o espectador à toa. E no fim tudo terá coerência, e garanto que será surpreendente. Basta prestar atenção nos diálogos chaves.

Mas também não se esqueça de prestar atenção na fotografia, que igualmente impressiona por conta de sua estética sempre simétrica e minimalista, mas longe de ser acolhedora ou padronizada. Como o próprio diretor a define, é uma "ficção científica suja", que seria algo como acordar em uma péssima manhã de chuva, disperso na janela do ônibus, por onde se vê apenas nuvens carregadas.

Tudo é muito preciso: as memórias de Louise durante a história; os contatos imediatos dela com os extraterrestres; a comunicação entre eles, que se revela gradualmente; e breves intercursos durante a pesquisa linguística que os personagens fomentam. A construção do filme se autoexplica, e o final nos poupa de longas explicações porque, como dito, o filme já havia feito isso ao longo da história, tratando o espectador com decência, algo que também anda difícil.

É complicado falar de um filme cuja boa porcentagem de sua efetividade seja sinestésica, como ele é. Não é cheio de texturas, formas e cores, mas tem um crescente emocional forte e necessário, ao ponto de sentirmos mínimas sensações, como se a protagonista fosse nós mesmos. Isso se deve pelo incrível trabalho que Amy Adams novamente faz, e também pela própria história em si, que vagarosamente arranca de nós nosso lado mais humano, nos fazendo pensar sobre isso, seja como um coletivo, seja como um indivíduo. Claro que muito também é ajudado pela trilha sonora, que logo no início do filme já faz certa referência a Contatos Imediatos do Terceiro Grau (Close Encounters Of The Third Kind, 1977), mas não demora para se tornar uma sonoridade ao desconhecido: às vezes assustador, às vezes angustiante, às vezes emocionante como esperamos que seja.

Também há nuances sobre a Física Quântica e dimensões paralelas, mas sem ser citados diretamente, tratados de forma mais subliminar, como uma ferramenta de linguagem capaz de viajar o tempo, e não da maneira massante e confusa como em Interstellar (2014). E também sem viagens físicas de fato, como em Contato (1997), seu filme-primo, já que a trama parte do mesmo princípio.

Aliás, mesmo que A Chegada faça parte de um mesmo gênero e beba das mesmas fontes dos filmes citados, em momento algum soa mais do mesmo, ou uma repetição do mesmo tema, ao invés disso, causa a natural impressão de ser algo original em muito tempo.

CONCLUSÃO...
A Chegada pode não ser o melhor filme do ano, nem ter o melhor roteiro do ano ou a melhor direção. Mas tudo foi feito de forma tão bem organizada que não existe uma coisa que possamos dizer que é desnecessário. É um filme com raras qualidades, e relevante, que ficará flutuando na memória por um bom tempo. Tudo é bem dosado e as coisas estão nos devidos lugares, vagando entre a ficção científica, o suspense e o drama de forma tão natural que não conseguir ter um misto de sensações em algum momento, e depois cair em emoções bastante sinceras, é praticamente impossível.

domingo, 22 de janeiro de 2017

TER CIPÓ GRANDE NÃO GARANTE...

★★★★★☆
Título: A Lenda de Tarzan (The Legend Of Tarzan)
Ano: 2016
Gênero: Ação, Aventura, Fantasia
Classificação: 12 anos
Direção: David Yates
Elenco: Alexander Skarsgard, Margot Robbie, Christoph Waltz, Samuel L. Jackson, Djimon Hounsou
País: Reino Unido, Canadá, Estados Unidos
Duração: 110 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Tarzan, agora civilizado, volta à selva do Congo com Jane para cumprirem um convite do Rei, mas o convite era uma emboscada.

O QUE TENHO A DIZER...
O diretor David Yates se destacou com os quatro últimos filmes de Harry Potter, e depois do sucesso de Animais Fantásticos e Onde Habitam (Fantastic Beasts And Where To Find Them, 2016), ele foi anunciado como responsável pelo exagerado número de quatro continuações que este título terá. Um exagero hollywoodiano como também é este novo filme de Tarzan.

O filme não é um reboot e nem uma continuação, mas uma mescla dos dois. A história começa com Tarzan já civilizado e influente na sociedade, morando em Londres sob sua identidade verdadeira, John Clayton. Interpretado pelo ex-True Blood, Alexander Skarsgard, o passado de Sir Clayton se tornou uma lenda, e ele é como uma celebridade por onde passa, principalmente entre as crianças. Há até livros ilustrados com histórias fantásticas sobre Tarzan, mas Sir Clayton quer se distanciar desse passado, até que um convite do Rei Leopold para voltar ao Congo tenta arrastá-lo de volta.

Convencido por George Williams (Samuel L. Jackson), que quer aproveitar a ocasião para confirmar boatos de que o desbravador do Rei, Leon Rom (Christoph Waltz), tem usado trabalho escravo, Sir Clayton aceita voltar à sua antiga terra natal, e junto, entre birrinhas, bateção de pé e bico derrubado, Jane (Margot Robbie) consegue convencer Sir Clayton de ir junto.

Ao chegarem na tribo onde Jane viveu com seu pai, quando este dava aulas de inglês aos nativos, não demora muito para serem atacados pela equipe de Leon, e muito menos para descobrir que eles cairam em uma cilada. Leon quer capturar Tarzan para entrega-lo a Mbonga (Djimon Hounsou), chefe de uma tribo, em troca de diamantes que essa tribo protege.

Basicamente a história é essa e, entre um momento e outro, flashbacks acontecerão para justificar o passado de Tarzan. Desde como ele ficou órfão, até como conheceu Jane.

Realmente não há como não se emocionar em vários momentos, sejam nos flashbacks sobre a vida nativa do herói ou no presente da história em meio a paisagens e cenários deslumbrantes, num excesso de verde tão vívido que chega a nos engolir para dentro da tela. Há um excesso de capricho tão grande nesta produção que visualmente se torna impecável. Dos efeitos especiais, até nas dezenas de figurantes que aparecem, belíssimos em sua maioria. O resultado de tudo são fotografias de tirar o fôlego.

Mas no resto a situação é manjada, e conforme a história progride, mais cliché ela fica. Tarzan é um herói da selva, mas ele é tratado no filme como um super herói invencível. E na proposta que o filme a princípio parecia ter, de levar as situações de maneira um tanto mais realista, de repente tudo começa a ser encenado no meio de uma sequência de absurdos. Como no momento em que ele e sua turma mergulham em um mar de árvores, e atrás vai o quase idoso George, que mal aguentava correr. Logo em seguida eles se jogam em cipós para alcançar um trem. Só que o bizarro dessa situação um tanto Homem-Aranha de ser é que os cipós parecem não ter fim. Tudo bem que se está no Congo, mas nem lá os cipós são tão grandes assim, né?

E a partir daí aquele festival de absurdos que Hollywood adora vira o centro das atenções, chegando no ápice da ridícula batalha entre Tarzan e seu irmão gorila. Mesmo Skarsgard ter se preparado para o filme em dieta e uma rotina de treino que ele afirmou terem sido torturantes para chegar no nível atlético do personagem, é inaceitável acreditar que Tarzan não teria sido arrebentado ao meio na primeira porrada nas costas de um gorila três vezes maior que ele. Ao menos Tarzan sai como perdedor, mesmo que sem um osso quebrado, só com um arranhãozinho aqui e alí. E no dia seguinte ele tá ótimo para enfrentar Leon.

O austríaco Christoph Waltz se revelou ao mundo quando interpretou o vilão Hans Landa em Bastardos Inglórios (Inglorious Basterds, 2009), de Tarantino. De lá pra cá a lista de vilões só cresceu, e Leon Rom é mais um para sua coleção. Embora Waltz seja um ator impecável, parece que estamos um pouco cansados de seus vilões e artefatos únicos que ele adere em cada um para dar características únicas que facilmente os diferencie um dos outros. Aqui ele usa um cordão mortal feito com seda de aranha, numa habilidade tão grande que parece Shun com suas correntes, em Cavaleiros do Zodíaco. O nível de perversidade do vilão também não é novidade, embora, como dito, Waltz consiga caracterizá-los numa habilidade tão única que eles não conseguem ser iguais, mesmo que com personalidades similares.

Mas é aquilo... colocá-lo no papel de vilão está na mesma zona de conforto na qual o filme fica o tempo inteiro, assim como ter Samuel L. Jackson para dar os alívios cômicos um tanto pastelões, Jane ser a mulher destemida e determinada e Tarzan um incrível galã romântico.

É um filme tipicamente familiar e dentro de fórmulas manjadas para agradar desde os fãs de Transformers até a vovozinha que um dia já ficou louca com o Tarzan de Christopher Lambert na década de 80. Mas nada satisfatório para aqueles que esperavam um avanço melhor na abordagem da história, uma versão que nem precisava ser mais adulta, mas que se mantesse fiel a um nível de realidade mais próximo.

Como tudo hoje em dia tem sido "super-heroizado", algo mais humano e menos fantástico, principalmente de um herói que originalmente é mais humano e menos fantástico, teria sido bem vindo.

CONCLUSÃO...
No resultado, Tarzan consegue ser um filme até divertido, com poucos momentos empolgantes e sensível em pequenas doses, mas em nenhum momento evita aquela sensação previsível que todas as adaptações do herói igualmente tiveram antes. É muito mais visualmente deslumbrante do que um entretenimento eletrizante.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

UM LINDO ENGANO...

★★★★★★★★★★
Título: Capitão Fantástico (Captain Fantastic)
Ano: 2016
Gênero: Drama, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Matt Ross
Elenco: Viggo Mortensen, George MacKay, Samantha Isler, Annalise Basso, Nicholas Hamilton, Kathryn Hahn, Steve Zan, Frank Langella
País: Estados Unidos
Duração: 118 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma família que mora isolada no meio das florestas de Washington de repente precisa sair de seu mundo paradisíaco para mergulhar em outro desconhecido. Ao pegarem a estrada para salvar a falecida mãe de um enterro indesejado e realizar seu último desejo, assim como ela deixou em seu testamento, um pai e seus seis filhos serão testados naquilo que é ser uma família, ou naquilo que acreditavam ser.

O QUE TENHO A DIZER...
Imagine crescer tendo aulas de ciências humanas, biológicas e exatas para compreender a vida. Saber artes marciais para auto-defesa e a usar os mais diferentes tipos de armas brancas para poder caçar sua própria comida. Ou conseguir escalar montanhas e árvores, e ter resistência física de atleta para fugir com sucesso de eventuais perigos. Também ter conhecimentos avançados de medicina para se recuperar de um imprevisto, ou botânica, para poder se alimentar daquilo que seja comestível dentre tantas que não são. Conhecer todos os mais diferentes filósofos que já existiram no mundo e já ter lido mais livros do que uma pessoa de meia idade leu em sua vida na cidade, lhe dando conhecimento suficiente para desenvolver seu caráter sem influências externas diretas. E no fim de tudo, ser um brilhante ser humano.

É o que acontece com Ben Cash (Viggo Morthensen) e seus seis filhos. Uma família naturista e erudita, que vive no meio das florestas de Washington desde quando Ben e sua mulher, Leslie (Trin Miller), resolveram abandonar a vida urbana, cosmopolita e consumista para buscarem uma melhor qualidade de vida fora de todo esse caos. Dessa forma eles teriam condições de estarem completamente presentes da vida de seus filhos, viverem exclusivamente em função deles com uma qualidade de vida própria e melhor que muita gente da cidade.

O resultado é um cenário em perfeita hamornia e coexistência com a natureza, onde qualquer pessoa imaginaria passar suas férias de verão. A maneira de viverem é tão simples e funcional que se torna mágica e ritualística, como no início do longa, ou quando seus filhos são vistos correndo pelas matas numa inesgotável energia e felicidade enquanto argumentam sobre teorias políticas e analisam capítulos de clássicos literários da filosofia em meio a canções improvisadas com os instrumentos que possuem.

Só que agora Leslie não está mais com eles. Diagnosticada com um tipo de transtorno bipolar grave, precisou sair do conforto de onde morava para ser internada e abandonar a vida bucólica e produtiva que tinha com sua família, até finalmente cometer suicídio. Sua morte será a responsável pelo choque de realidade que a família de Ben irá sofrer, pois os pais de sua falecida mulher, além de o acusarem de destruir a vida de Leslie, desejam realizar o funeral e enterrá-la dentro dos modos cristãos, enquanto ela, por ser budista, havia determinado em seu testamento que fosse cremada.

É então que, de um filme familiar e bucólico, Capitão Fantástico se transforma em um road movie por excelência, tão engrandecedor quanto é a jornada de Olive em Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, 2006), trocando-se a Combi velha por um antigo ônibus adaptado para ser um motor home, e cuja missão principal será chegar à tempo no funeral para salvar a mãe do enterro.

É durante toda essa longa viagem que grande parte dos conflitos e descobertas surgirão, principalmente porque será a primeira vez que os filhos de Ben entrarão efetivamente em contato com a sociedade da qual tanto quis protegê-los. Ele sabe que seus filhos estão preparados a tudo, já que estudaram e aprenderam incansavelmente sobre a cultura e a sociedade urbana de todo o mundo. A única coisa que ele não esperava é que a prática seria completamente diferente e que o excesso de proteção iria trazer a eles um interesse muito maior pelo mundo afora, como ficarem eufóricos ao saberem que no cardápio de um restaurante há cachorro-quente, milkshake e batata frita, ou lugares chamados de Universidades.

O diretor e roteirista, Matt Ross, afirmou que se baseou em um questionamento pessoal de como seria criar seus filhos longe das influências de uma sociedade moderna e tecnológica como é atualmente, além de algumas próprias experiências que teve na infância ao viver com seus pais em uma comunidade alternativa. Há um momento no filme em que é dito que, talvez, a família de Ben seja uma das últimas a experimentarem esse estilo de vida nativo. Talvez seja verdade, já que até os índios nativo-americanos estão em extinção. E o fato é que, querendo ou não, o que Ross criou não é apenas um questionamento sério sobre bases familiares e até onde vai os limites da constante influência dos pais sobre os filhos, mas também uma grande crítica social e anti-americana. Mas veja bem, ele faz tudo sem ser cacofônico ou pedante. Ao contrário disso, o filme é bastante inspirador e ousado.

Mesmo sendo filmes com enredos completamente diferentes, estruturalmente a quantidade de referências autobiográficas se misturam tão bem com a ficção que a atmosfera, de certa forma, tem o mesmo sentimento honesto e inocente de Quase Famosos (Almost Famous, 2000), filme de Cameron Crowe que também mistura ficção e suas próprias experiências pessoais antes de se tornar jornalista e crítico de música. No caso de Capitão Fantástico, as referências vão mais além, seja através da filosofia clássica, seja da cultura popular: de o Mito da Caverna, de Platão, até Tarzan, de Edgar Burroughs. As metáforas são as mesmas. E as sementinhas plantadas nas cabeças dos mais céticos e cosmopolitas também.

Ross realmente consegue resgatar um modo nativo-americano de vida e adaptá-lo aos dias atuais e à cultura moderna, questionando se isso seria possível nos dias de hoje. O grande medo do protagonista, e de seus filhos, é de o pai ser preso por todos viverem livremente no país. Embora a Constituição o preserve de várias maneiras, há diversas leis que proíbem e incriminem sua atitude de viver com sua família de maneira tão primitiva, principalmente com seus filhos menores de idade. Seria muito simples perder a custódia deles, ou acusá-lo de diversos crimes de abuso infantil (como seu sogro tenta fazer) por andarem armados, ou estarem expostos a constantes situações de risco. Ele faz nada além de viver com seus filhos dentro de uma cultura própria e nativa, mas por ser um cidadão cosmopolita registrado, não importa como faça, será sempre tratado como um. Então, dizer que Estados Unidos é um país livre e democrático, nessa situação, soa um tanto contraditório na realidade dos personagens.

Sabemos das intenções de Ben, compreendemos que ele, como pai, conseguiu exercer uma função educacional e familiar mais sólida e grandiosa do que qualquer família moderna. Mesmo havendo uma rigidez disciplinar praticamente militar, nem por isso seus filhos deixaram de ter suas fases desrespeitadas. As crianças ainda são crianças lúdicas, mas que não vivem em um mundo fantasioso e aliennate; os adolescentes ainda adolescentes, com vontades e curiosidades; e os jovens adultos tratados como tal em seus deveres e responsabilidades. Cada um deles uma grande e positiva contradição àquilo que é maioria das famílias norte-americanas. Mas pelo ponto de vista legal, Ben seria um alvo certeiro da Assistência Social e do infundado julgamento social.

É quando seus filhos se deparam com outras pessoas que o choque cultural é explícito, como quando todos perguntam se as pessoas em uma lanchonete estão doentes, já que todas são obesas. Embora uma situação cômica, Ross não teve intenções de tirar sarro de pessoas gordas, mas de criticar o modo de vida sedentário, oscioso e mal organizado da cultura norte-americana, coisas que não fazem parte da realidade da família de Ben. Há também o momento em que Bo (George MacKay) se encontra pela primeira vez com um grupo de garotas e não consegue dizer uma palavra sequer porque tem conhecimendo da dificuldade de comunicação e do sofrimento que é para ele não conseguir se relacionar com diferentes níveis intelectuais justamente por não ter o hábito do convívio social. A visita a um dos familiares também resume a dificuldade de comunicação e interação entre a família de Ben e os demais: a vida alienante versus a vida produtiva.

Enfim, pessoas que falam a mesma língua, mas não se entendem.

Então o julgamento social começa a tomar forma. Tachados de hippies, loucos, estranhos e esquisitos por não serem adequados numa sociedade (chamada) "civilizada", a qual, quando comparada com a família de Ben, de civilizada há nada. Até mesmo quando realizam um furto organizado. Ao invés de ser chocante e de difícil aceitação para alguns, analisando a situação no contexto do filme, a atitude passa longe de um ato criminoso, mas a concretização de um pensamento e da manutenção de uma filosofia de vida que tenta fugir do controle do consumo, tal qual querer substituir a comemoração do Natal por um outro dia fantasioso qualquer, como o dia de Noam Chomsky, uma data comemorativa que Ben resolve criar para homenagear a existência de um dos mais importantes filósofos, cientistas, historiadores, críticos sociais e ativistas políticos ainda vivos nos Estados Unidos.

Oras, qual o problema de acreditar em outras coisas e ter ideologias diferentes daquelas que a sociedade comum e urbana cresceu condicionado?

Mas se por um lado tudo parece ser um ideal fantástico, por outro a realidade se mostra bastante diferente, onde manter sua família presa em uma floresta agora aparenta apenas um ato egoísta, uma fantasia de ultra proteção na qual nenhum deles teve oportunidade de escolha, que tudo se mostra como meros devaneios tolos, ou, como o próprio protagonista diz: "um lindo engano". Ben se dá conta de que, acima de tudo, não existe uma fórmula perfeita para criar e proteger seus filhos do mundo, e que o excesso de proteção pode se tornar o mais perigoso inimigo. Por mais que o ambiente onde viviam pudesse lhe fornecer o necessário, seus filhos não poderiam ficar longe da vida urbana para sempre porque as experiências são necessárias, e a tal fórmula estará dentro de cada um para encontrar. A moral é que ninguém está errado, e só se torna errado aquele que tenta impedir, proíbir ou coíbir o direito de escolha.

Pelo seu título, Capitão Fantástico não é um filme de super-herói, mas ainda de um herói que muita gente se esquece, o da figura paterna.

CONCLUSÃO...
Capitão Fantástico é um dos filmes mais inspiradores de 2016, que consegue plantar a semente da dúvida sobre a forma como vivemos, que nos mostra que a escolha é essencial para nosso caráter, e que conhecimento nunca é demais, mesmo quando percebemos que de tudo que sabemos, nada sabemos.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

MENOS SERIA MAIS...

★★★★★★☆
Título: Westworld
Ano: 2016
Gênero: Drama, Ação, Suspense, Ficção Científica
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Evan Rachel Wood, Thandie Newton, James Marsden, Jeffrey Wright, Ed Harris, Anthony Hopkins
País: Estados Unidos
Duração: 60 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Um parque temático populado por androides constantemente recebe visitantes capazes de pagar os mais altos preços para satisfazerem suas fantasias sem limites ou consequências.

O QUE TENHO A DIZER...
Westworld pode soar uma grande novidade para o público atual, mas poucas pessoas sabem que o novo hit da HBO é baseado no filme homônimo escrito e dirigido por Michael Crichton, de 1973.

Crichton, para quem também não sabe, é o poderoso criador de outro parque, o Parque dos Dinossauros (Jurassic Park), adaptado para os cinemas por Spielberg em 1993 e que elevou mais ainda o status do autor. Na televisão também foi responsável por outro hit ao criar Plantão Médico (E.R., 1994-2009), mas no cinema nunca mais conseguiu o mesmo êxito. Faleceu em 2008, quando a quarta continuação da franquia dos dinossauros estava em discussão, o que levou a suspensão do projeto, retomado anos depois como Jurassic World (2015).

Não é à toa que o filme original de Crichton, onde os personagens de um parque são andróides que se rebelam e começam a matar seus visitantes humanos, tenha servido de inspiração para muitos filmes, incluindo os cult classics Blade Runner (1982), Exterminador do Futuro (1984), Matrix (1999), ou até o atual Ex-Machina (2015), quando partimos do contexto da evolução das máquinas e sua emancipação do poder humano. Todos esses filmes, obviamente, usam como referências as teorias de Alan Turing e as ficções de Isaac Asimov.

Óbvio que a série se inspira em tudo isso para tentar ir mais além, além de ter outros nomes de peso, como ter sido co-criada e escrita por Jonathan Nolan, irmão de Christopher Nolan. Só por isso já podemos imaginar que o enredo, antes simples, agora terá alguns níveis a mais de complexidade porque esse é seu estilo desde suas parcerias com seu irmão. E para ajudar nesse quesito, há co-produção de J.J. Abrams, que ficou famoso pelo seriado de absurdos e que testava a paciência do espectador, chamado Lost (2004-2010).

E o exagero é o que se percebe logo no primeiro capítulo, com uma das aberturas mais longas da HBO (aproximadamente 2 minutos), pois é ela quem resume o enredo do seriado sobre um mundo onde tudo é falso e fabricado, sem alma ou definição. Assim, toda vez que o espectador assistir um novo episódio, a função da abertura está lá, de relembrá-lo que tudo é uma farsa.

O Parque de Westworld, moderno, em um futuro qualquer, agora tem um nível muito maior de interação do que no seu início, sendo um gigantesco jogo com tramas, subtramas e missões a serem completadas para o ganho de recompensas ou bonus, tal como um jogo de video game no estilo chamado "mundo aberto" (open world), onde o jogador pode interagir ou não com os personagens e concluir missões de acordo com seu interesse, sem precisar seguir uma ordem pré-estabelecida. A diferença é que, em Westworld, o jogador é o visitante do Parque em pessoa, e os anfitriões são os personagens do jogo, cada um exercendo sua função na história, que precisa ser engatilhada com um comando assim que uma ação se reinicia (looping), como pegar a lata do chão todas as vezes que Dolores a derrubar, ou ajudar o pobre velho todas as vezes que ele cair da carroça.

Para os amantes de video game, por muitas vezes assistí-lo será como estar no cenário de jogos Western como Red Dead Redemption (nos consoles), ou Six Guns (nos celulares). Jonathan realmente pegou as principais estruturas dos jogos desse gênero e transferiu para a linguagem cinematográfica de maneira acessível, mas bastante simplória quando comparada com a experiência que David Chronemberg oferece em seu filme eXistenZ (1999), muito mais completa e detalhista.

A série, ao contrário, não detalha tanto as ações que diferenciam humanos de andróides porque ela quer que o espectador esqueça disso e acredite que todos sejam uma coisa só, pois a intenção do seriado é enganar até que se prove o contrário. E enganar nem sempre é a mesma coisa que surpreender, algo que muito acontece ao longo dos episódios.

O desenvolvimento da história extrapola os limites do necessário quando o roteiro desconstrói a narrativa apenas para demonstrar um nível de complexidade que a história não tem.

A temporada de estréia já começa confusa demais logo no primeiro episódio, com incógnitas desnecessária aos montes. Os roteiristas não querem dar nenhuma resposta, só perguntas. Perguntas que ficarão suspensas para nos manter assistindo. Elementos enganosos para distrair o espectador, fazendo-o perder tempo à toa para tentar compreender uma complexidade exagerada que nada significa. O que fazem com o roteiro é um artifício manjado para entreter. É pegar uma história linear e inverter ordens dos fatos. Para o espectador comum, essa construção pode parecer genial, mas não é. Na verdade, esse tipo de narrativa muitas vezes é como mágica barata, e você só acredita que é bem feita porque não prestou atenção.

Algumas tramas só começam a fazer um pouco de sentido lá pelo quarto episódio, quando já estamos um tanto cansados de idas e vindas, e nem mais assistimos porque estamos curiosos, mas porque queremos simplesmente chegar ao fim.

Depois de muita masturbação mental desnecessária, finalmente descobrirmos como certas coisas funcionam na história. Aí, sim, Westworld entretém e se transforma em uma série apreciável, com personagens interessantes, até mesmo aqueles que não pareciam ser. Quando a história relaxa dos absurdos e da desconstrução, as tramas e subtramas finalmente aparecem com consistência, como é o caso das histórias da prostituta Maeve, do diretor Bernard e do empresário William. Este último, uma das histórias mais interessantes, mas que no meio de tanto entroncamento e confusão, infelizmente não oferece o impacto que deveria ter.

É evidente o quanto as histórias se arrastam desnecessariamente para um último capítulo que só existe para ser um monólogo explicativo, um manual de instrução tardio de todos os episódios anteriores que deixaram espectadores com cara de paisagem no ar. O final, entre filosofias "nolanescas" e algumas frases de efeito, foi como um "OU SEJA" na história: dar uma nova explicação para aquilo que foi mal explicado antes. E no começo da série, quando tudo tentava nos convencer de que o fim seria espetacular, nem surpreende tanto assim.

Bagunçar algo que é simples fez os roteiristas perderem o foco e a história perder seu enredo principal. A idéia é boa, mas a execução é infeliz. E ao invés de assistirmos um jogo de sobrevivência e descobertas, parece que vemos um jogo de plataformas do Atari, subindo escadas sem chegar a lugar algum. Há um momento na história que cogitam a possibilidade de reformularem as atrações do parque porque tudo está complexo demais para visitantes que procuram algo mais simples. É exatamente a sensação que o seriado passa, algo complexo demais para espectadores que precisavam de algo mais simples. 

Apesar de tudo, ainda é algo para ser consumido sem grandes expectativas. E se o espectador for despretencioso o suficiente, irá se divertir porque o nível de produção é impecável, e conquista pelos olhos, como toda produção da HBO é. Westworld não fica nenhum pouco atrás de Game Of Thrones nesse quesito, nem nos cenários, nem no design. A trilha sonora original, de Ramin Djawadi (o mesmo de Game) eleva uma atmosfera fictícia tão eficiente quanto a dos filmes já citados e que tratam do mesmo tema, engrandecendo cenas e intensificando propósitos de algumas sequências.

Amando ou odiando Westworld, é impossível não deixar de fantasiar com tudo. Assim como imaginar o que fazer sozinho em um Shopping Center, muita gente ficará presa na fantasia do que iria fazer em um Parque onde o limite é sua própria vontade. Uma pena que o seriado não abraça ou conquista essa idéia com seu público, e essa sensação fantasiosa demora alguns pares de episódios para brotar no imaginário. Se os roteiristas tivessem se preocupado mais em primeiro conquistar o público, trazendo-o para dentro desse universo, do que já querer impressionar logo de cara com uma enxurrada de eventos sem sentido, a apreciação seria diferente. Deveriamos ter sido apresentados ao Parque, às suas atrações, aos personagens que fazem parte dele, e assim entrar nessa fantasia ao ponto de querermos fazer parte daquilo. Aí, sim, a história seria mais impressionante e assustadora do que tenta ser, e as tramas tomariam uma forma muito mais consistente.

Seria um começo similar ao de Parque dos Dinossauros, mais adequado e menos caótico, já que, no fim, a moral dos dois trabalhos de Crichton é a mesma.

CONCLUSÃO...
Nem sempre complicar e desconstruir um roteiro ou uma história oferece resultado inteligente, apenas dá uma falsa impressão de grandiosidade e complexidade. É o que acontece com Westworld, que é uma produção impecável e apreciável, mas poderia ter sido melhor desenvolvida caso tivesse seguido uma construção mais simples. Os mistérios teriam continuado o mesmo, o suspense teria sido eficaz da mesma forma, e no fim nada teria sido tão detalhadamente explicado como foi.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

NÃO VALE O PREÇO DA PASSAGEM...

★★★★☆
Título: A Garota do Trem (The Girl On The Train)
Ano: 2016
Gênero: Suspense, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Tate Taylor
Elenco: Emily Blunt, Haley Bennett, Rebecca Ferguson, Edgar Ramirez, Justin Theroux
País: Estados Unidos
Duração: 112 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma garota que faz o mesmo trajeto de trem diariamente de repente percebe que os personagens de sua paisagem predileta não são tão perfeitos quanto imaginava.

O QUE TENHO A DIZER...
A Garota do Trem (2015), de Paula Hawkins, por incrível que pareça, se assemelha em vários aspectos com Garota Exemplar (Gone Girl, 2012), de Gillian Flynn, publicado 3 anos antes e igualmente um best-seller adaptado ao cinema em 2014 por David Fincher. A começar pela narrativa em primeira pessoa. Depois vem a estrutura, na qual os capítulos também são divididos por dias, como se fosse um diário, embora não seja. E por fim, além da trama central ser parecida, há o desenvolvimento enganoso dela, que tende a nos levar para caminho algum até um ápice revelador inesperado.

Só que existe uma coisa que diferencia bastante um do outro: a qualidade.

É inegável que o texto de Flynn seja melhor escrito. Há uma maior densidade e fluidez, além de que a trama de Garota Exemplar conquista a atenção do leitor desde o princípio, e a reviravolta que a autora faz exatamente no meio da história consegue ser surpreendente.

Já no caso de Hawkins as coisas não são bem assim. O livro nunca conquista porque ele se arrasta em narrativas pessoais sobre o cotidiano de três mulheres, incluindo a protagonista depressiva e alcólatra, Rachel. Um cotidiano chato, que não tem atrativo, no qual todas as personagens passarão a maior parte do tempo lamuriando sobre suas vidas conjugais, algo que também ocorre em Garota Exemplar com consistência. Pode ser um problema da tradução, mas a escrita é bem simples e repetitiva, principalmente quando é descrito sensações pessoais que dificilmente saem de adjetivos como: nauseante, enjoada, trêmula, pálida, aflita, e derivados... Não há sequer uma diferenciação narrativa entre uma e outra personagem para que o leitor sinta a diferença de personalidade entre elas. No texto, todas parecem iguais, e é entediante.

A sorte do leitor é ser um livro curto, caso contrário, seria revoltante. O fim, que a partir de um certo momento se torna previsível, é bobo e comum, nada que não se tenha visto anteriormente na literatura policial popular ou nos filmes de mesmo gênero. E é isso que causa um certo arrependimento depois de lê-lo, pois os elementos que deixariam a trama óbvia demais são omitidos na amnésia alcólica da protagonista. Chega um momento que é impossível sustentar o suspense com nada, então, a escritora revela o essencial que acaba não surpreendendo, e muito menos causando impacto. O máximo que ela consegue é o desapontamento, pois será fácil pensar: não acredito que me arrastei até aqui para a verdade ser essa.

Não que o livro de Hawkins seja de todo ruim. Ele tem pontos fortes, como seu nível descritivo que é bastante rico. Se ele não existisse, o livro se enxugaria em 50 páginas, mas ainda consegue ser chato, pois muitas vezes se atenta a detalhes desnecessários. A autora também tem êxito em construir a bagunçada personalidade de Rachel com profundidade, afinal, é ela a garota do trem, e a protagonista é o único elemento de todo o livro que justificaria a adaptação cinematográfica. Só que não há como negar que o filme despenca ladeira abaixo, e Rachel, que deveria ser a grande e única estrela de todo o longa, acaba sendo ofuscada por um roteiro que não consegue esconder ter sido feito às pressas, já que o livro foi lançado em 2015, e em 2016 o filme já estava pronto.

Se o livro já não é lá grandes coisas porque não tem muito o que dizer, o filme diz menos ainda. Cheio de buracos e sequências que não farão muito sentido para quem não leu o livro, e para quem leu notará o esquartejamento desnecessário que o livro sofreu. A trama se desenrola muito rápido, e muito das poucas qualidades que o livro tem, principalmente sobre Rachel, se perde. Sem contar que os principais eventos se revelam sem qualquer impacto ou construção, ou se revelam antes da hora. E é assim que a adaptação caminha, revelando coisas que não precisavam ser reveladas com tanta rapidez, estragando o suspense e fazendo-o mais um drama desleixado qualquer do que um thriller doméstico em potencial (ou "noir doméstico", como li em alguns lugares). E havia potencial, mesmo vindo de uma literatura tão simples como o alfabeto. 

É claro que Emily Blunt chama a atenção, ainda mais representando uma alcólatra. Sua expressão derrubada e músculos faciais relaxados ao extremo, típicos de uma pessoa etilista, é de impressionar. Mas é triste ver seus esforços serem jogados ralo abaixo por um filme que perde seu fôlego rapidamente e desperdiça todas as características de uma personagem autodestrutiva por excelência e que tinha tudo para ser maior na tela do que no livro.

No livro Rachel sofre de uma depressão crônica, resultado da época em que estava casada e via sua relação desmoronar como um castelo de areia por não conseguir engravidar. A depressão a leva ao etilismo, e o etilismo a outros problemas. Dentre eles, seu profundo sentimento de rejeição, solidão, inutilidade e carência, por isso seu fascinio pelo casal Maggie e Scott e sua intromissão no caso para se sentir algo importante e útil, além de uma certa inveja que alimenta sobre a aparente perfeição do relacionamento que possuem. Muitas vezes Rachel até se coloca no lugar de Maggie em seus devaneios eróticos com Scott. Mas isso não é apenas com ele, seu interesse a qualquer homem que lhe dê o mínimo de atenção é óbvio e constante, tanto que sua vontade é sempre se jogar em cima de qualquer um que a trate com educação, atenção e masculinidade, tamanho o desespero por ser tocada, já que há anos não tem uma relação íntima com ninguém porque, no livro, ela é uma mulher desleixada, descrita como feia e gorda por causa de seu vício.

Rachel é uma daquelas personagens que, por conta dessa personalidade desfragmentada, tudo que faz é um desastre, e a falta de uma rotina produtiva lhe faz mergulhar cada vez mais em um mundo fantasioso e errado que ela constrói a todo tempo e que quer fazer parte a qualquer custo.

Nada disso é abordado no filme na mesma relevância que no livro, e o filme a transforma em uma personagem simples demais e que bebe somente para afogar mágoas planas como uma mesa. Ao menos, é essa a impressão que o longa passa.

Isso é resultado da tal "gourmetização hollywoodiana", ou seja, a constante mania de aliviar pesos e dramas para deixar tudo mais palatável, entregando ao espectador tudo mastigado, pronto para ser engolido, tal qual como aconteceu com a obsoleta adaptação hollywoodiana de O Homem Que Não Amava As Mulheres (2011), também de David Fincher. Tanto que a trama não se passa em Londres, mas em Nova York, e a etnia dos personagens é ignorada, como o psicoterapeuta não ser um indiano (embora tenha nome de indiano), mas um latino que, em certo momento, começa a gritar impropérios em espanhol. Até o fim é mais brando e bonitinho, com Rachel soltando uma frase de efeito que mais cliché seria impossível.

É claro que, comparando um com o outro, o filme consegue ser tão banal que o livro se torna até interessante. Mas é aquela coisa, por ser curto e de pouco impacto, é feito para ser lido entre idas e vindas de um cotidiano simples como o de Rachel e nada mais.

CONCLUSÃO...
Depois que se tornou um best-seller percebe-se como é fácil escrever um livro, e como a fórmula para um sucesso é fácil. E depois que se assiste ao filme percebemos como é fácil piorar algo que já nem se mostrava tão bom assim.

sábado, 7 de janeiro de 2017

O INSTINTO SELVAGEM DE VERHOEVEN...

★★★★★★★★★☆
Título: Ela (Elle)
Ano: 2016
Gênero: Suspense, Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Paul Verhoeven
Elenco: Isabelle Hupert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling, Christian Berkel
País: França, Alemanha, Bélgica
Duração: 130 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma mulher independente e bem sucedida se envolve em um jogo perigoso ao tenta descobrir a identidade do homem que a violentou em sua própria casa.

O QUE TENHO A DIZER...
Há um momento em que a protagonista Michelle LeBlanc (Isabelle Huppert) chama a situação em que ela passa como "doentia e perversa". É o resumo daquilo que o filme é de fato, que começa com uma cena sexual que não é vista, onde ouve-se apenas barulhos e gemidos. Quando tudo acaba, o diretor nos revela um estuprador indo embora, deixando Michelle para trás, em choque, sangrando ao chão. É dessa forma um tanto impressionante que Paul Verhoeven abre seu novo longa, nos dando a exata sensação da linha tênue que separa o prazer da violência porque, entre gemidos e sussurros, o espectador a princípio se excita, mas quando a imagem aparece de fato, ele se choca e se constrange, pois o que acontecia era um puro ato de violência, e não algo consentido. Uma abertura simples e brilhante, se analisarmos pelo ponto de vista psicológico.

Fazia tempo que Verhoeven não entregava algo tão interessante e ao mesmo tempo perturbador ao público. Também fazia tempo, talvez desde os anos 90, que ele não fazia algo tão bom, mesmo que A Espiã (Zwartboek, 2006) seja respeitável. Em uma carreira com altos e baixos entre a ficção científica e uma leve obsessão por thrillers sexuais, o diretor holandês já foi um dos mais cobiçados de Hollywood no final dos anos 80 e começo dos anos 90 em filmes como Robocop (1987), O Vingador do Futuro (Total Recall, 1990) e o seu mais memorável trabalho, o amado/odiado Instinto Selvagem (Basic Instinct, 1990).

Elle pode não ter a cruzada de pernas fatal de Sharon Stone, mas sem dúvida rouba seu posto de filme mais controverso da sua filmografia, pois é um misto de diversos assuntos feministas atuais que incluem a violência doméstica, o empoderamento feminino, sua independência e, inclusive, sua liberdade sexual, do seu corpo e do seu sexo. Numa época em que os valores femininos estão sendo postos a teste, principalmente na cultura popular após o lançamento de obras eróticas infames como a série 50 Tons de Cinza, que criaram e promoveram às mulheres púdicas e aos homens machistas uma ilusão submissa e fetichista deturpada ao ponto de fazer qualquer mulher que diga "eu adoro esse livro" simplesmente favorecer de maneira insidiosa o seu próprio abuso e até mesmo sua própria violência.

Assim como a brilhante abertura, todo o resto do filme perdura nessa corda bamba entre o prazer e a violência, até que ponto a fantasia e o fetiche são aceitáveis, e até qual limite devemos ir para satisfazer aquilo que originalmente entitula seu filme mais conhecido: o instinto básico.

Verhoeven não evita nos chocar com o explícito, e é com isso que ele nos faz pensar sobre essas questões de maneira bastante crua. E o mais interessante disso tudo é que, com essas ferramentas, ele consegue criar um dos suspenses eróticos mais refinados a serem lançados em circuito comercial das últimas décadas. Talvez pelo cenário francês, onde tudo pareça ser bastante civilizado e refinado em meio à língua mais romântica do mundo, talvez por lidar com personagens bem sucedidos e que nos remetem aos luxos e desfrutes da alta sociedade. Se o cenário fosse o oposto, essa sensação poderia não ter o mesmo requinte, mas a agonia, o medo, o misto da paranóia com a obsessão e a explícita violência não precisam de gênero, cor e muito menos classe social. Independente do cenário, esse é um dos pontos fortes do roteiro, baseado no livro Oh... (2012), do francês Phillipe Djian. Até porque a história não lida apenas com isso ou fale somente sobre isso, pelo contrário, Michelle está em uma espiral desenfreada de infortúnios familiares, profissionais, sociais e pessoais. E o melhor de tudo, não há um momento sequer de redenção da personagem.

Michelle é uma personagem bastante complexa e muito bem desenvolvida no contexto do filme, que teve (e ainda tem) que lidar com um massivo assédio moral por conta da deturpada publicação de uma foto em jornais e emissoras de TV quando era adolescente, que ela classifica posteriormente como uma imagem erótica e louca em um momento errado. Em outras palavras, a redução do caráter de uma pessoa pelo seu gênero.

Lidar com o ódio e a rejeição durante décadas a deixaram ser como é: uma mulher ambiciosa, exigente, que reprime sua sensibilidade e emoções, que consegue ignorar abusos e passar por cima de desaforos com tranquilidade, mas ainda sim um tanto vingativa e perversa. No geral, seu comportamento feminista, independente e até libertário é bastante parecido com o da protagonista do chileno Gloria (2013), mas há um lado mais sombrio em Michelle, um semblante de que a qualquer momento possa cometer uma grande insanidade, tal qual seu pai no passado. É por isso que, sem titubear, ela passa por cima de qualquer pessoa, sem remorsos ou arrependimentos, e Isabelle Hupert consegue vagar por toda essa complexidade com uma maestria ímpar, nos deixando confusos quando sua personagem está feliz ou simplesmente sendo ardilosa, quando está triste ou simplesmente sendo irônica ou sarcástica.

O momento em que vive não poderia ser mais moderno, já que ela, em sua meia idade, é a Diretora Executiva de uma importante produtora de jogos eletrônicos, um setor conhecidamente dominado por homens jovens. Separada de seu marido porque este a violentou fisicamente, agora mora sozinha em uma mansão. Sua vida se resume a trabalhar; tentar resolver seus problemas com seu filho; lidar com a pressão social de um pai criminoso na cadeia; ter um caso com um homem no qual já perdeu o interesse; e a criticar o noivado de sua mãe com um garoto de programa, enquanto ela mesma flerta com o marido jovem de sua vizinha católica e submissa.

Assim como sua própria mãe a define, Michelle é uma vadia. Ela não tem medo de ser uma. Também não tem medo de ser desagradável ou mortalmente sincera. E por mais que em alguns momentos possamos pedir pelo amor de deus para que ela, ao menos, peça desculpas ao menos uma vez, isso nunca acontece. Ao contrário, ela comete algo mais provocativo ainda. E esse comportamento da personagem é exatamente para deixar claro que ela é a única dona de si e de suas próprias verdades, e violar isso é um crime, no qual ela mesma decidirá o que fazer, até mesmo sobre seu próprio estupro. Por isso que a razão de ela não ter um momento sequer de redenção seja tão prazeroso, pois isso é o que a fortalece como personagem.

Sua pessoal caça ao seu estuprador a leva para uma jornada desafiadora e na já dita espiral de infortúnios. O misto de paranóia e obsessão a deixam presa numa memória repetitiva, e como numa Síndrome de Stocolmo, por um lado ela quer fazer sua justiça, mas por outro fica obcecada por aquela figura anônima. Trocar as fechaduras de casa ou comprar sprays de pimenta são apenas artifícios para sua autonegação, porque no fundo ela está dividida entre o temor de um novo ataque e a excitante espera dele. O anonimato, o fator inesperado, são elementos que começam a crescer dentro de si como uma fantasia. Mas é quando ela é atacada pela segunda vez que percebe que a fantasia pode ser prazerosa, mas a realidade não tem o mesmo sabor. É como fantasiar ser submetida a Christian Gray por ele ser rico e bonito nos livros, até a realidade transformar qualquer pessoa como ele em um monstro perverso e doentio.

A violência que Michelle sofre tem vários sifnificados. Por um momento, pela estranha fixação sobre a situação incomum sofrida numa incapacidade de se subestimar por conta disso, como também numa forma de querer se punir por suas pequenas perversidades em um segundo momento, ou até mesmo tentar aflorar sentimentos e sensações que ela não consegue mais. É no segundo momento que, embora possa não parecer, ela volta a ter domínio da situação. De violentada submetida, ela passa a ser a dominadora subversiva. Na verdade, poderá haver diferentes interpretações para quem assistir. O interessante é que essas interpretações sejam além do que a própria imagem ou as situações pareçam definir, porque o roteiro oferece muito mais do que isso, e Verhoeven consegue transmitir o mesmo, deixando argumentos longe de qualquer superficialidade.

Quando Michelle questiona ao violentador o motivo de tudo, a resposta dele é simples, tanto para ela quanto para ele, pois ele mesmo fará a mesma pergunta posteriormente. E mesmo que ele não tenha resposta, e que ambos pudessem ter outras alternativas, o espectador saberá que o fim foi necessário, pois define a natureza de ambos.

Verhoeven acerta em todos os pontos e oferece um produto final bem feito em todos os aspectos, como se tivesse cozinhado e montado o mais fino prato por horas e sem qualquer pressa. Apesar de lidar com temas fortes e atuais, há uma certa sobriedade em tudo, já que algumas subtramas acabam levando a um humor contido para dar tempo do espectador respirar e digerir, o que é ótimo quando não feito de maneira banal ou exagerada. De exagerado mesmo é apenas a constante provocação do diretor, algo que sempre fez parte de seus trabalhos, mas nunca tão efetivo como é neste filme.

CONCLUSÃO...
Elle entra na lista dos melhores de 2016, e o melhor do gênero a surgir nas últimas décadas. É Verhoeven dando a volta por cima e fazendo seu melhor trabalho depois de sequentes fiascos. Ousado e chocante, nem por isso deixa de ter sua sutileza em um trabalho que reune as principais características do diretor.
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