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quarta-feira, 9 de outubro de 2019

NÃO PRECISAMOS DE BATMAN...

★★★★★★★★★☆
Título: Coringa (Joker)
Ano: 2019
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Todd Philips
Elenco: Joaquim Phoenix, Leigh Gill, Zazie Beetz, Robert De Niro
País: Estados Unidos, Canada
Duração: 122 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
O comediante Arthur Fleck não consegue se socializar na Gotham em que vive, uma cidade perturbada por corrupção e miséria da classe trabalhadora. Desistindo de lutar contra si mesmo e seus delírios, sua verdadeira personalidade começa a finalmente evoluir e tomar conta.

O QUE TENHO A DIZER...
Ao longo das décadas, Coringa sempre foi visto como um vilão caricato. Seu lado cômico sempre teve mais exposição do que o seu lado trágico. Das histórias em quadrinhos mais amenas, do seriado dos anos 70, até mesmo na interpretação de Jack Nicholson no filme de Burton, sua caricatura jocosa roubava mais as cenas do que suas crueldades mambembes.

Com o tempo ele foi ganhando outras densidades e camadas, ao ponto de ser considerado o vilão mais controverso e o mais complexo de todo o universo dos quadrinhos.

Batman sempre foi um coadjuvante de seus vilões, o que justifica Heath Ledger roubar cada frame de O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008), numa caracterização sombria do Coringa até então inédita no cinema, mas nos quadrinhos e nos video games já existia.

Depois de Ledger, a Warner ficou receosa em trazer o personagem de volta tão cedo, demorando 8 anos para resgata-lo em Esquadrão Suicida (Suicide Squad, 2016). A caracterização ultra exagerada de Jared Leto causou mais constrangimento do que satisfação, um revés na vida de um personagem que, até aquele momento, só havia colhido louros do público.

Com um Universo Cinematográfico feito às pressas e que afundou tão cedo quanto foi criado, Warner/DC aboliu a idéia e decidiu voltar à velha forma de produzir filmes com histórias independentes que possam virar uma franquia própria. E para retomar esse cenário, nada tão esperto do que dar a Coringa essa função, porque o Universo Batman sempre foi e será a carta na manga do estúdio toda vez que se encontrar em um beco sem saída.

Quando Joaquin Phoenix foi anunciado como o novo responsável pela encarnação do personagem, muitos torceram o nariz. Com Ledger aconteceu o mesmo. Na época muita gente o achava novo demais e inexperiente demais para dar uma densidade mais sombria e violenta, e todos se enganaram. Alguém também lembra de como Hugh Jackman foi atacado sem causa quando o escolheram para Wolverine no primeiro X-Men? Ou Gal Gadot para ser a Mulher-Maravilha? Pois bem... O preconceito é sempre derrotado no fim.

Tanto é assim que, Jared Leto, que parecia perfeito para interpreta-lo, com uma base de fãs que estouraram rojões quando o papel foi dado a ele, de repente viram suas bexigas de festa murcharem sem qualquer assobio.

Mas para quem já conhece Joaquin Phoenix de outros carnavais, sabia que podia esperar o melhor. Um ator sempre muito introspectivo e completamente fora dos padrões hollywoodianos, longe da imagem estrelista de seus outros colegas, é considerado por mérito um dos melhores de sua geração, se não for o melhor. A própria figura do ator, bem como sua biografia cheias de altos e baixos, trazem embutidos pesos de uma sociedade exigente e alienada, ignoradas e vencidas com seu talento. Era praticamente impossível não esperar do ator nada menos do que uma interpretação digna e respeitosa. Mas como disse, era algo esperado para quem já o conhece. Um conceito de fato.

Ele consegue ir além. Sua rendição a Coringa ultrapassa o visceral, e o ator simplesmente desaparece, e em cena há apenas Arthur Fleck, um homem pobre, solitário, incompreendido, explorado e violentado diariamente das mais variadas formas numa Gotham City muito longe de ser aquela futurística e próspera metrópole que conhecemos, apesar de sempre corrupta e violenta.

No meio de uma crise social que se estabelece na cidade, onde a maioria da população se rebela contra os privilégios da burguesia, doenças sociais se estabelecem, como a polaridade, o individualismo, a falta de empatia e a capacidade de discernimento da realidade. Sim, parece um retrato muito familiar do que estamos vendo hoje na realidade, o que soa como um alarme às consequências do nosso extremismo.

Arthur se torna uma vítima disso tudo, desencadeando conflitos pessoais que alimentam uma psiquê naturalmente perturbada, a qual ele trava uma batalha diária consigo mesmo para manter o resto de sanidade que lhe resta com auxílio de medicamentos gratuitos cuja distribuição foi interrompida pela Assistencia Social na falsa justificativa de contenção de gastos.

É quando o personagem entra num vórtice que o levará sem volta ao mais profundo abismo de si mesmo, e num paradoxo, e lá que encontrará a própria liberdade ao não mais oprimir o que é, ou a não mais se sentir preso a obrigações impostas. E se aceitar de fato como é, por pior que ele saiba que assim será.

No momento que o personagem abraça a existência de Coringa, é quando descobrimos que Arthur era um alter-ego que oprimia um ego dominante, anarquista e psicótico que sempre esteve presente, mas não encontrava motivações para reinar em si.

E como numa metainformacao, o filme autojustifica sua violência e o comportamento cruel e violento do personagem a partir daí, como a querer explicar que a violência e a perversidade das pessoas não ocorre por influência de algo, ou alguém, mas é motivada por um agregado de fatores que apenas engatilham algo que já está latente no psiquê.

A pessoa que já tem tendências a ser violenta ou psicótica, assim o será. Não é um filme, uma música, ou uma influência qualquer que o fará, da noite para o dia, agir dessa forma. Qualquer motivo é um motivo e uma motivação para isso. Por isso que atribuir a filmes a culpa por surtos violentos é leviano, porque é justificar de forma simplista e superficial problemas sociais muito mais sérios e profundos ignorados, banalizados e negligenciados pela própria sociedade. Por essas e outras que enxergo, dentro dessas razões, a metainformação implícita no longa, algo que psicólogos e psiquiatras pelo mundo já bem explicaram a respeito.

Coringa é um filme perturbador e provocativo como há muito tempo o cinema estadunidense - não necessariamente hollywoodiano - não fazia. De forma implícita e explícita encontramos nele material para inúmeras discussões. O diretor Michael Moore chegou a considerar o filme uma obra de arte próxima aos controversos filmes de Kubrick, como Laranja Mecânica, algo que, dentro de suas devidas proporções, não é exagero.

O diretor Todd Philips, que ficou famoso na comédia com a trilogia Se Beber Não Case, consegue fazer algo brilhante e desafiador que poucos diretores ousaram depois do próprio Kubrick. Além de uma fotografia belíssima dentro de sua esquisitice, que evita o desfoque de segundos planos assim como Kubrick o fazia, a composição de muitas cenas chega a ser até poética, como no momento em que Arthur está travestido de palhaço, caído ao chão em um beco, e da flor de seu paletó escorre a água suja de sangue. A morte de um palhaço, o fim da graça, a ingenuidade que se esvai. E cenas memoráveis como essa, e outras até mais complexas, são vistas constantemente.

O mais interessante é como o diretor desafia a seriedade e a (in)capacidade do espectador de fazer analogias com a própria realidade. Todd traz para o filme suas experiências da comédia pastelão, mas sem banaliza-las. Muitas são as vezes em que as cenas tem construções cômicas, mas cujos elementos que as constróem contemplam a crueldade, a tragédia ou preconceitos latentes do ser humano. Ele desafia as pessoas a absorverem as mensagens além do entretenimento óbvio. Todo surto do personagem não é em vão, e toda violência não é gratuita naquilo que o filme desenvolve ao mesmo tempo que critica.

Não é à toa que há um momento em que Arthur entra em um cinema durante a exibição de Tempos Modernos. Enquanto toda a burguesia de Gotham gargalha com as palhaçadas de Chaplin, do lado de fora uma rebelião proletária acontece. Tempos Modernos, quando assistido com seriedade, não é um filme cômico. Ao se isolar a caricatura e a performance circense de Charles Chaplin, temos um filme triste e trágico sobre uma realidade brutal que nos atinge há séculos.

Coringa segue esse mesmo princípio, porém atualizado. E de uma forma até assustadora, presenciei uma reprodução desta mesma situação no momento em que Arthur assassina friamente seu ex-colega de trabalho na frente de outro ex-colega. A cena levou mais da metade da platéia a gargalhadas, e o resto a olhar com perplexidade os que gargalhavam, chocados com a falta de sensibilidade e com a frieza com que interpretaram uma cena na qual todos elementos isolados não tinham a menor graça. Situação que se repetiu ao longo de todo o filme. Tão chocante quanto as gargalhadas sociais dos burgueses de Gotham, foram as gargalhadas de uma platéia sádica e preconceituosa, tudo aquilo que Arthur se rebela ao longo de sua tortuosa jornada.

Propositalmente ou não, o diretor conseguiu fazer com que o comportamento humano das pessoas frente ao filme se tornasse mais chocante e perturbador do que o próprio filme em si. E se apenas por isso o filme não for visto como um produto que desafia o seu público a enxergar a sua própria realidade e comportamento por outros ângulos, então o propósito do cinema como algo além do entretenimento definitivamente está a beira do fim.

A dor que Phoenix expressa no personagem através de uma gargalhada gutural sofrida e dolorosa, é a expressão do fardo que ele carrega em ser o que é, e que a sua existência, assim como a de Batman, o maniqueísmo do herói e do vilão, do bem e do mal, só existe porque nós os alimentamos diariamente, porque no fundo, tanto um, quanto o outro, compartilham das mesmas dores e problemas.

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