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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

BIRDMAN LEVOU, MENOS MICHAEL KEATON...

Neste ano, entitulado popularmente como Oscar do Desgosto, o título foi bastante coerente por ter sido o ano das maiores injustiças. Muitos filmes e atores não foram indicados, outros até bons foram, mas ocuparam o lugar de melhores. Uns foram premiados, enquando outros que mereciam muito mais, não foram.

Isso não é uma história nova na premiação, mas em um raro ano com tantos evidentes talentos e produções de imensa qualidade, o cuidado nos votos da Academia deveriam ter sido maiores e não apressado e de última hora, com pareceu ter sido.

Foi também o ano em que houve uma comoção social bastante necessária - e um tanto tardia - entre as atrizes que resolveram expressar seus descontentamentos frente à indústria. Uma "queima de sutiã" em proporções muito menores, mas que chamou a atenção do mundo do entretenimento quando finalmente exigiram a igualdade de valores quando se recusaram a responder determinadas perguntas de cunho sexista, como a roupa que vestem, as jóias que usam ou dietas que fazem, quando para os homens os repórteres fazem perguntas mais profissionais e interessantes. Estava mais do que na hora, principalmente em um ano onde a discussão de culturas inúteis como 50 Tons de Cinza faz sucesso e diminui mais ainda a atitude feminina na sociedade, pois embora Hollywood seja explicitamente machista, racista e sexista e os homens brancos dominem as categorias técnicas, a verdade é que são as mulheres quem dão densidade àqueles considerados os maiores títulos, além de serem elas a maioria do público dos cinemas. Não foi à toa que Patricia Arquette finalizou seu discurso falando sobre isso e a igualdade salarial entre os sexos no meio de todo o apoio exaltado por Meryl Streep, até porque isso foi um dos temas mais discutidos frente a um dos e-mails vazados de executivos da Sony.

Apresentado este ano pelo comediante/ator Neil Patrick Harris, não chegou a ser ultrajante como costuma ser, mas também não chegou a ser leve, moderno e empolgante como nos dois anos de Ellen Degeneres. Foi insosso, com piadas chatas e sem efeitos, sem risadas. Mas de certa forma foi melhor do que ouvir as piadas geralmente ofensivas de sempre, tirando o sarro e a pouca credibilidade que resta do cinema Hollywoodiano, enfiando no meio produções e pessoas que levam tudo aquilo muito a sério.

Chamar a festa de entediante já está tão chato e batido quanto nomear Meryl Streep (quase) todos os anos, e não tem como não ser. Para deixar tudo mais rápido e ágil, seria necessário tirar algumas das categorias técnicas para premiá-las em uma cerimônia formal à parte, como acontece com as categorias ligadas à ciência e desenvolvimento tecnológico relacionado ao cinema, que é outro tipo de linguagem que não se adequa dentro da proposta do evento. Mas tirar as categorias técnicas não seria justo porque um filme não é feito apenas por atores famosos ou um diretor renomado, e essas categorias merecem tanto destaque quanto.

Foi um ano difícil de fazer uma escolha em algumas categorias, principalmente para o público que acompanhou os filmes e compreende o mínimo necessário sobre cinema para comentar consideravelmente sobre o assunto. Tudo piorava quando Birdman, Boyhood e O Grande Hotel Budapeste estavam juntos, as três maiores produções do ano que se destacaram por qualidades bastante singulares.

Tivemos as pequenas e grandiosas oportunidades de ovacionarem o filme Selma para compensar seu esquecimento na premiação, filme que narra a marcha de Luther King pela igualdade social até Montgomery.

Selma foi produzido por Brad Pitt, que se empolgou com a consagração de 12 Anos de Escravidão, outro filme de temática racial que ele também produziu. Oprah Winfrey também está entre os produtores, celebridade que sempre se mostra uma incansável ativista social pela igualdade de diretos entre negros e brancos com muito entusiasmo, mas que insiste em ignorar o fato de que Hollywood é racista. Eu ao menos nunca a vi fazer qualquer declaração sobre isso, até mesmo por um motivo obvio: há uma dupla via de interesses aí. Hollywood necessita de Oprah pra promover a falsa idéia de que os Estados Unidos é tão igualitário que uma das personalidades mais influentes do país é uma mulher... e além de mulher, é negra. E talvez a única depois de Michelle Obama. E Oprah ganha muito dinheiro com tudo isso e não cairia bem falar mal de sua maior fonte de renda que é a própria mídia norte-americana.

Por um lado temos Brad Pitt, que raramente é visto contracenando com negros, mesmo em outros filmes já produzidos por ele e sem qualquer temática racial, como Guerra Mundial Z, um estrondoso sucesso que encheu sua produtora de dinheiro, mas não havia um negro no elenco, e se houve foi tão figurante que deve ter morrido logo nas primeiras cenas. Por outro lado temos Oprah, que luta pela igualdade, mas só produz filmes com pesadas temáticas raciais e nada além disso. Ambos juntos fortalecem ainda mais as diferenças. Uma verdadeira hipocrisia se analisado com mais profundidade, pois a contrariedade do que falam com o que fazem é muito grande.

O esquecimento de Selma na premiação novamente ergueu a questão dos negros não terem espaço nas categorias, uma dúvida que sempre surge apenas quando filmes com temáticas raciais aparecem, como se atores negros só existissem para representar papéis de escravos ou injustiçados sociais. A diferença de rotatividade entre artistas brancos e negros é tão grande que todos os anos apresentadores convidados e cantores brancos são muito mais variados do que os negros, que são praticamente os mesmos, como Jennifer Hudson, Viola Davis, Octaviana Spencer e agora Lupita N'yongo, que já viraram regras da cerimônia, como se fizessem parte de um casting previamente contratado para cumprir a cota.

Mas deixando os problemas e as incoerências sociais e da premiação de lado, de certa forma era esperado Grande Hotel perder em todas as principais categorias. Só a maquiagem feita em Tilda Swinton já garantiu a ele ao menos a estatueta de Maquiagem, mas acabou levando mais dois prêmios técnicos ligados ao deslumbre visual, tal qual são todos os filmes de Wes Anderson. O filme também levou uma estatueta para a trilha sonora, merecidíssimo. Prevejo que Anderson será um daqueles diretores injustiçados, que terá uma deslumbrante carreira de filmes excelentes, mas nunca receberá um Oscar.

Espero do fundo do coração que isso não aconteça. Esse ano ele chegou muito próximo, estava apenas a dois degraus de sua consagração. Uma pena que os dois degraus eram Birdman e Boyhood.

Por mais magnificamente belos que sejam os filmes de Anderson, não dava para competir com todo o circo técnico de Birdman e a simplicidade da vida de Boyhood. Birdman e Iñarritu levaram Melhor Filme e Diretor, prêmios válidos porque o trabalho realmente foi difícil e desafiador para qualquer cineasta. Muita gente pode até não ter gostado do filme, e isso se limita ao público leigo, mas para aqueles que compreendem as diferentes camadas técnicas utilizadas pelo diretor, percebe a grandiosidade do filme que também é, de certa forma, uma grande homenagem ao cinema e ao teatro.

Boyhood e Linklater sairam chupando o dedo, com excessão de Patricia Arquette, que levou o prêmio de Atriz Coadjuvante... uma pena, acredito que haviam melhores, como Emma Stone ou Laura Dern. O público comum o considerava o melhor, mas é aquela coisa... a fama faz a cama.

Lady Gaga surpreendeu na magnífica e comedidíssima apresentação, mesmo que alguns tons acima do necessário, mas finalmente caracterizada adequadamente para homenagear os 50 anos de A Noviça Rebelde e, claro, através de um controle emocional e vocal raro de se ver na história da apresentação, aproveitou a oportunidade de mostrar a Hollywood que ela também pode ser uma estrela de um grande musical.

Mas a grande surpresa e a maior injustiça da noite foi Michael Keaton não ganhar o prêmio de Melhor Ator, que era algo quase certo. Foi um espanto para muitos ouvir que Eddie Redmayne foi o vencedor. E isso foi o Oscar dando a sua única pitada de imprevisibilidade do ano, justo numa categoria que não merecia isso. Não que Redmayne não tenha um excelente desempenho, mas ele ainda é jovem e Keaton merecia o retorno triunfal. Como Rubens Ewald comentou ao vivo durante a premiação... "não se faz isso". E dentre todos os desrespeitos da Academia, este foi realmente um dos maiores e desnecessários do ano.

Talvez tenha sido a Academia endossando que não simpatizava com a idéia. Uma pena novamente.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

COMO SE SER RUIM JÁ NÃO BASTASSE...

Título: 50 Tons de Cinza (50 Shades Of Grey)
Ano: 2015
Gênero: Romance
Classificação: 16 anos
Direção: Sam Taylor-Johnson
Elenco: Dakota Johnson, Jamie Dornan
País: Estados Unidos
Duração: 125 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma jovem passa a se envolver com um um homem socialmente muito bem posicionado que aos poucos a envolve em um jogo sexual de dominação e submissão.

O QUE TENHO A DIZER...
Que a saga Crepúsculo fizesse sucesso, tudo bem. A maioria do público que o consumiu era de adolescentes com os hormônios saindo pelos poros, desesperados pela pobre tensão erótica que envolvia os dois protagonistas, numa época em que a sexualização começa cada vez mais cedo.

Mas por mais facilidade de acesso que temos hoje a conteúdos adultos, o público ainda demonstra preferir filmes onde a sexualização seja implícita ou menos explícita, que fique sempre naquela linha tênue da proibição, mas sem ultrapassá-la, tal qual os filmes da década de 80/90, como 9 1/2 Semanas de Amor (1986), Insinto Selvagem (1992),  Proposta Indecente (1993), dentre outros. Filmes que lotaram os cinemas convencionais em reflexo de que a sociedade, por mais que demonstre-se puritana, tem sempre no fundo fantasias e aquele desejo contraventor.

É muito mais fácil pararmos em um canal que transmite um filme erótico do que um que exibe um filme pornográfico. O explícito confronta nossa própria moralidade. Filmes mais erotizados que chegam aos cinemas são as raras oportunidades dos indivíduos reduzirem essa culpa moral e assumirem a existência de uma devassidão contida, mas que não é julgada porque é coletiva. Se você vai ao cinema para assistir isso, então nada lhe dá o direito de falar de mim que também vou.

E 50 Tons de Cinza surgiu para provar novamente isso, além de demonstrar que também não há alívio para a mediocridade, e que as pessoas que consumiram Crepúsculo ontem, são as mesmas que consomem a trilogia erótica de Erika Leonard James hoje.

Esta associação poderia soar estranha se não fosse o fato de que, antes de ser famosa, E. L. James escrevia uma fanfiction sobre Crepúsculo através do pseudônimo/nickname de Snowqueens Icedragon. Quando a história começou a tomar um rumo erótico demais, ela abandonou Bella e Edward, e então Grey e Anastasia surgiram.

No fatídico momento em que 50 Tons inesperadamente se tornou o fenômeno literário de 2011, um grito de socorro ecoou. Deixando os conservadores e o puritanismo de lado, o que mais se propagou a respeito foi o fato de uma série anti-feminista, de teores claramente machistas e sexistas não apenas ter sido pobremente escrita por uma mulher como foi consumida avidamente por outras mulheres. A trilogia já vendeu mais de 100 milhões de cópias pelo mundo, e desde seu lançamento foi possível observar o retrocesso dos poucos passos da evolução feminina na sociedade em uma regressão a tempos medievais.

Estar sentado no metrô, no ônibus ou em um café com a capa dos livros de James à mostra agora soa moderno e descolado, mas ainda reina uma certa vergonha e receio fazer o mesmo com capas em punho de títulos como um A Casa dos Budas Ditosos (de João Ubaldo), um Sexus (de Herny Miller), ou um 120 Dias de Sodoma (de Sade). Mais vergonhoso ainda se for educativo e explicitamente sobre o assunto, como o clássico Vamos Falar Sobre Sexo, da outrora sexóloga Martha Suplicy.

Mas já que é pra deixar a intelectualidade de lado, a gente pode ir mais baixo ainda, em literaturas bem baratas e de vocabulários bastante similares, como a série Sabrina, Julia e Bianca, romântica e cafona nos mesmos 50 tons. Pra quem quiser ser mais ousado tem até um livro bem antigo que muito me excitava na adolescência chamadado O Circo do Prazer, talvez o mais próximo de uma literatura verdadeiramente pornográfica, bizarra e pervertida que pude chegar na época. Oops... tem "PRAZER" no título, a sirene da censura, da moralidade e dos valores acabou de gritar. Não pode.

"Quero deixar claro que sou uma feminista. Quem comanda meu escritório é uma mulher. A roteirista e a diretora deste filme são mulheres. Sou pró-igualdade de gênero no pagamento de salários. Agora, não podemos esquecer que mulheres, feministas como eu, também têm fantasias, e conquistamos o direito de tê-las"

A citação acima é da própria autora. Esta é sua forma bastante juvenil e desinformada de defender seu trabalho e seu pensar. Como se "ser feminista" significasse apenas o fato de ser rodeada por mulheres e outras coisas que se tornam muito banais no contexto de observação da escritora, como a mera igualdade de salário. Antes os ideais feministas fossem tão simples assim.

Obviamente que a autora nada sabe sobre isso, pois até mesmo uma feminista bem preguiçosa teria elaborado algo melhor.

Se uma afirmação como essa partisse de escritoras como Simone de Beauvoir e Virginia Wolf, acreditem, elas nunca figurariam entre as escritoras feministas mais influentes da história. Eu imagino a cara de Clarice Lispector numa situação dessas. Ela teria engolido 50 cigarros sem mastigar.

Mas não é necessário ir tão fundo. A gente pode se manter mais na superficialidade pop, como o esforço inútil de Madonna nos anos 90 ao expor Dita, o seu alter-ego dominatrix, e chocar a sociedade com a idéia de que não é um falo que manda, mas uma mulher decidida de suas vontades e desejos. Nem mesmo Rachel Pacheco, a Bruna Surfistinha, que trabalhou como prostituta por vários anos, servindo a fantasia de centenas de homens e mulheres sem espaço para qualquer recato, experimentando tudo do possível e impossível, chegou a ser tão diminuta nesse pensar. Seu livro, O Doce Veneno do Escorpião, que conta suas aventuras e experiências sexuais de forma bastante natural e popular, não chega, nem perto, de ser tão descartável e infame como 50 Tons.

É aí que percebemos quão pequena é a série de Mr. Grey, e como isso demonstra claramente que o sexo, para a maioria das mulheres, ainda é algo desconhecido e inexplorado por elas mesmas, ao ponto de se empolgarem com tão pouco, vendo nesses livros a quintessência da literatura erótica e da "informação sexual", quando tudo nada mais é do que apenas uma variação de dicas e truques publicados em revistas de prateleira com equivocados títulos do tipo: "COMO PROPORCIONAR PRAZER AO SEU HOMEM". Sim, como proporcionar prazer ao homem, ao macho, ao sexo forte e dominador. Tudo sempre feito para ele. Casa limpa, roupa lavada, comida feita e pernas abertas no fim do dia.

Ou seja, é tudo uma visão mais adulta e pornográfica dos mesmos contos de fadas que as mulheres ouvem desde criança e crescem ludibriadas, sem enxergar de fato toda a imposição social e machista que as oprimem por todos os lados, que as fazem crescer na fixação de ser uma obrigação atuarem como personagens frágeis e submissas, cujas vontades são dominadas e direcionadas por um príncipe encantado ou algo que o represente. Mulheres com prazeres subjulgados, numa mutilação psicológica tal qual a mutilação física sofrida pelas pobres coitadas em Mali ou Gambia. Ou seja, o endosso de que o mundo é dos homens e de que o sexo feminino é e deve ser escravizado, tal qual o contrato que Anastasia assina.

Isso tudo definitivamente é nada feminista e de forma alguma expõe os prazeres, vontades e fantasias sexuais das mulheres, como inadvertidamente defendeu a autora.

É óbvio que existem mulheres que gostam da submissão, assim como existem homens que também gostam, mas esses tipos são excessões. O que estranha é o fato de mais de 100 milhões de pessoas terem popularizado uma idéia que na vida real nem sempre culmina ao romantismo, mas sim à violência feminina, ao abuso sexual e finais bastante infelizes que a sociedade moderna sofre em combater porque tempos produtos como esse no mercado o tempo todo.

Claro que Hollywood não iria perder tempo com isso, e a adaptação foi logo encomendada. Dirigido por Sam Taylor-Johnson, fica complicado notar até que ponto os problemas do filme são responsabilidades dela. Primeiro porque ela não havia dirigido nada muito relevante antes além de um longa e um curta metragem que concorreram ao BAFTA em 2009 e 2010. Segundo porque a autora também foi a roteirista, e quis ter total controle sobre a produção do filme, atrapalhando as filmagens e discutindo com a diretora por inúmeras vezes. Os boatos sobre o clima desagradável logo se espalhou pela mídia ao ponto de Taylor-Johnson ter recusado o convite de dirigir as demais continuações.

O filme foi recorde instantaneo de bilheteria, arrecadando mais de US$200 milhões no mundo em seu primeiro final de semana de exibição. Porém, a crítica o desprezou. No IMDb o filme já foi avaliado por mais de 60 mil pessoas e recebe atualmente uma nota média de 4.8. Então qual a razão de algo tão ruim fazer tanto sucesso? Simples: as pessoas querem visualizar o sexo que leram, mas saem frustradas do cinema.

Mostrado pela primeira vez no Festival de Berlim, os críticos não foram discretos. Os diálogos forçados e as cenas sexuais de abordagem sadomasoquista sempre muito limpas e moralizadas arrancaram gargalhadas dos 350 jornalistas que avaliavam a exibição.

Para evitar muito do que o livro chulamente descreve, utilizou-se outro artífice mais adorado pelo público feminino: o romance. Mas os personagens são sem graça. Como se já não bastasse o material, a protagonista também é muito tola, como a maioria das heroínas de filmes do gênero são. Aí temos o Sr. Grey, representado por um ator fraco, inexpressivo, com uma voz irritante e desconjuntada, que não convence nem como príncipe da sucata, e muito menos como o sadomasoquista dominador em questão. Sua personalidade é rasa, com traumas aleatórios pra justificar suas perversões. Tenta manter uma postura austera e muito séria do homem que não gosta de romance, mas gosta de espancar, só que não perde oportunidade de ser contraditório e mostrar que no fundo ainda há um homem muito romântico enquanto Anastasia suspira, geme, ofega, murmura, ruboriza e tenta encarnar a mais perfeita forma da mulher coisificada, a jovem adulta que se comporta como uma ingênua colegial para atingir a libido do público masculino em tiro certeiro.

Enfim, é uma adaptação tão inútil e descartável que não mereceria nem uma resenha. Para quem já assistiu os filmes de Catherine Breillat, que consegue transformar a fantasia pornográfica em arte, presenciar a existência de 50 Tons é como ir ao inferno e voltar. E o mais revoltante de tudo é ouvir pelas ruas as mulheres dizerem coisas do tipo: "se um homem bonito e rico como ele aparecesse na minha frente eu faria qualquer coisa". É claro que a pessoa que diz isso está imersa na fantasia da história, mas e se no caso ele fosse feio ou pobre, aí sim seria abuso sexual, atentado ao pudor, estupro, violência feminina e o diabo a quatro. Na verdade, é tudo isso quando algo de fato acontece, independente de ser feio ou bonito, rico ou pobre. Não digo que os livros ou o filme incitam a violência, eu não acredito nisso, mas eles tem, sim, a responsabilidade na perpetuação da redução do caráter feminino na sociedade da pior maneira.

CONCLUSÃO...
Eu poderia excluir aqui aqueles que dizem que assistiram ao filme ou leram os livros simplesmente como entretenimento barato pra passar o tempo tal como assistir Malhação depois de um estafante dia de trabalho, mas isso virou uma desculpa tão comum e recorrente que as pessoas podem até não ter vergonha de colocar o livro no carrinho de compras ou pagar R$30 no cinema, mas está nítido que elas morrem de vergonha de admitir terem perdido tempo com tanta porcaria. Sabe aquela desculpa de "eu não assisto esse programa, mas vi enquanto mudava de canal"? É bem isso.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

NÃO DESCE NEM COM GRAVIDADE...

★★★★
Título: Interestelar (Interstellar)
Ano: 2014
Gênero: Drama, Ficção Científica
Classificação: 14 anos
Direção: Christopher Nolan
Elenco: Matthew McConaughey, Anne Hathaway, David Oyelowo, Michael Caine, Matt Damon, Jessica Chastain
País: Estados Unidos
Duração: 169 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
A Terra se voltou contra os próprios humanos, as plantações morrem e tudo está sendo tomado pela poeira. A única alternativa para preservar a vida humana é enviar um aposentado piloto da NASA para sua última missão espacial que não terá qualquer perspectiva de volta.

O QUE TENHO A DIZER...
"O universo é cheio de fatos facinantes. Cheio de coisas impressionantes para contemplar como, por exemplo, o tamanho de nossa Galaxia. A luz viaja a 300.000km/s e mesmo assim demora 100.000 anos para um simples feixe atravessar toda a Via Lactea. Nossa Galaxia, como bem disse Carl Sagan, é apenas uma entre bilhões e bilhões. A imensidão do espaço é inimaginável".

Esse trecho acima, de outro comentário publicado sobre o filme, resume muito do que Interestelar deixa de ser. Toda a imensidão do universo e suas belezas admiráveis são coadjuvantes. É como ter Sex And The City sem Nova York, Ginger Rogers sem Fred Astaire, ou Gravidade sem Sandra Bullock.

Dirigido, escrito e produzido por Christopher Nolan. O roteiro é em parceria com seu irmão Jonathan. É uma ficção científica dramática espacial que discutirá, dentre várias coisas, viagem no tempo, física quântica, dimensões paralelas e o futuro da exploração espacial. O diretor acabou incluindo o físico teórico Kip Thorne na produção para servir como consultor sobre o tempo espacial, já que é o tema mais recorrente no filme. Dessa forma ele manteria as reproduções sobre o Buraco Negro ou sobre o Buraco de Minhoca os mais próximos possíveis daquilo deduzido na intenção de serem criados e mostrados no filme com base na ciência e não na imaginação dos roteiristas.

Assim como Nolan fez em seus filmes anteriores, como na trilogia Cavaleiro das Trevas e no superestimado A Origem (2010), há referências bastante diretas de outros filmes, como Wall-E (2008), Contato (Contact, 1997), Alien (1979), e claro, 2001 (1968), que evidentemente é uma regra referencial em toda ficção científica que se preze.

O que os roteiristas fazem é pegar os elementos mais importante de cada um desses filmes (e outros também), juntar tudo em uma coisa só e dar uma nova roupagem. É exatamente o mesmo processo criativo que Nolan utilizou em A Origem, que na verdade é uma cópia bem modificada de Matrix (1999).

Toda a produção foi mantida em sigilo contratual, ninguém envolvido na produção poderia comentar sobre o filme. Essa é uma velha tática do cinema para aumentar aquilo chamado de "buzz" e superlotar as salas de cinema para arrecadar na bilheteria o valor mais próximo possível de seu orçamento logo na estréia. Tudo isso aconteceu, e as pessoas compraram muito bem toda a idéia um tanto desnorteada e sem a mesma desenvoltura narrativa da trilogia do diretor sobre o homem morcego. Tanto que Interestelar tem hoje uma pontuação média de 8.6 no IMDb, com mais de 430 mil avaliações. Como bem disse Rubens Ewald: "O espectador ocasional é que decretará a sentença (do filme ser bom ou ruim). Preguiçoso como ele costuma ser". E a preguiça é no fato do público leigo ou ocasional pouco se importar em analisar os pormenores daquilo que assiste e também pelos fãs se deixarem levar pela extrema parcialidade. Essa pontuação é (pasmem) maior que de seu antecessor mais próximo, Gravidade, no qual Interestelar tenta ser visual e tecnicamente bastante similar, mas está anos luz de ter o mesmo grandioso impacto e ser o mesmo grandioso espetáculo.

O filme começa muito bem e muito ruim ao mesmo tempo. Inicia num tom meio documentado por conta de alguns depoimentos que deixam um suspense meio obscuro no ar, além de toda a ambientação rural norteamericana e as casas vulneráveis nos milharais ajudarem na ambientação distópica e um tanto sinistra. Essa atmosfera inicial é muito parecida com a que M. Night Shyamalan fez em Sinais (Signs, 2002), naquela sensação de que parece que os personagens estão sendo observados o tempo todo, de que algo está próximo, mas não se vê. Até a trilha sonora com poucas variações, baixa e constante ao fundo pra deixar a atenção do espectador mais desperta é utilizada da mesma maneira. Mas nada incomoda, tudo é feito muito bem e se fosse pra ser um filme de terror, ele teria começado de forma brilhante.

Mas aí algumas gafes começam a aparecer logo nos primeiros vinte minutos de filme, como o personagem de Matthew McConaughey ter diversas colheitadeiras gigantes e automáticas, mas sem qualquer explicação (nenhuma mesmo), elas deixam de realizar o trabalho programamado para terem vontade própria, como um poltergeist, só pra causar um frisson paranormal que não existe. Depois disso o protagonista descobre uma base ultra secreta que ninguém poderia achar. Ninguém! Ele pergunta o que é tudo aquilo mesmo com uma bandeira gigantesca escrita em letras garrafais "NASA", bem do seu lado direito. Outro problema é que o filme se passa em um futuro onde a tecnologia é tão evoluída que o protagonista consegue invadir o sistema de um drone militar e dominá-lo com apenas um touchpad, mas um dos integrantes da equipe da NASA custa a acreditar que alguém pudesse encontrar a base ultra secreta situada ao ar livre no meio de uma planície. Então pra este caso vamos julgar (apenas julgar) que o Google Earth ainda não tivesse sido inventado no futuro do filme. Aí tem a NASA, que dispõe de umas caixas de fósforo gigantes que eles chamam de robôs, que se locomovem como se estivessem sobre muletas quando um par de rodinhas podia ter facilitado muito a vida dessas máquinas e da equipe de efeitos especiais porque é pra isso que a roda foi inventada. Mais engraçado é que, quando o personagem se apresenta, todos da equipe sabem que ele foi um antigo piloto da NASA, mas todo mundo faz boquinha de siri e trata ele como um meliante só pra ter aquele momento "TE PEGUEI EM HOLLYWOOD, VAMOS PARA O ESPAÇO".

Sério, tudo isso em menos de 20 minutos...

Para um filme que quis ser muito sisudo, todas essas pequenas faltas de atenção chegam a ser ultrajantes, diminuindo bastante sua credibilidade pra quem é mais atento, e toda a excelente ambientação do início é logo esquecida. A partir daí o filme deixa a atmosfera Shyamalan de lado pra entrar na ficção científica de fato, o que é sempre um grande desafio.

Há um risco muito grande em falar sobre algo que se desconhece. Sobre o que desconhecemos, ou deduzimos com bases científicas, ou inventamos com base na imaginação. No caso desse filme, Nolan deduz e se baseia em teorias científicas apenas quando o filme precisa apertar o passo pra se resolver, e inventa a maioria das coisas na maior parte do tempo com muita pouca coerência com a realidade para preencher minutos extras. Inventa e inventa feio! Inventa rude com explicações que explicam nada porque ninguém vai entender metade do que eles teorizam em cena. Quando o roteiro para de inventar, ele cai no melodrama, como na cena em que o protagonista discute com a personagem de Anne Hathaway qual a melhor decisão tomar entre os planos A e B. Outra coisa que se percebe é que, como dito acima, toda essa imensidão do universo é desperdiçada em subtramas paralelas que se passam na Terra para evidentemente encomizar nos efeitos especiais e dar saltos temporais na ambientação espacial.

Tudo se torna uma bagunça que pode ter algum certo fundamento para os aspirantes a físicos quânticos espalhados por aí, mas para a audiência leiga é tudo simplesmente um festival impressionante de "qualquer coisa no espaço". 

Os personagens muitas vezes não fazem sentido, como a rebeldia interminável da filha do protagonista, a resolução extremamente banal do personagem de Matt Damon que entra e sai do filme como se tivesse no início de carreira, ou a incrível determinação do protagonista em querer salvar a humanidade a qualquer custo (a figura do "pai herói", também sempre explorada nos filmes de Shyamalan). Se o fim do mundo fosse inevitável e você tivesse que escolher entre salvar a humanidade ou passar o resto desses dias com o que resta de sua família, o que você faria? É uma pergunta bastante complexa que o protagonista em momento algum pensa a respeito.

Acredito que nada dói tanto quanto os exageros espaciais e clichés do gênero como as viagens que eles fazem entre um planeta e outro como se fosse algo do tipo "OK, vamos dar uma paradinha lá no shopping". E claro... o combustível que sempre está no fim no trajeto da volta. O momento "let it go", bem similar ao de Gravidade também deixa nítido que, direta ou indiretamente, a produção tenta pegar carona no sucesso do colega. Mas nada é tão impressionante como tudo ser resolvido e descoberto no último minuto, até as mais absurdas e inacreditáveis coisas, como as feitas pela personagem de Jessica Chastain.  E mais... se os humanos do futuro ficam tão poderosos ao ponto de conseguirem controlar o poder da gravidade como cordas de piano entre as diferentes dimensões, como é que não fizeram isso para evitar a Terra de se voltar contra os humanos do passado? Pensando nas teorias que o próprio filme mostra, seria tudo super simples assim, não é? Pois é... mas Nolan prefere complicar pra enganar tonto. E é por essas razões que eu passei a maior parte do filme me questionando: "Isso é sério mesmo?"

Na narrativa confusa, nos altos e baixos dramáticos pra tentar manter o espectador atento e um final bastante sentimental do jeito que o cinema Hollywoodiano está acostumado a fazer, muita gente vai terminar o filme com lágrimas e sem ar, igual quando Titanic foi lançado, mas depois de alguns dias é muito provável que a ficha caia no fato de que ele é uma das grandes bobagens de 2014.

De qualquer forma é um filme com algumas concepções visuais bem interessantes, mas a nuvem congelada... olha... aquilo é a gota d'agua, principalmente em um filme que fala incansavelmente sobre a física e a gravidade. Só não parei de assistir neste momento porque eu queria ver até onde a desgraça ia.

E foi longe. Nolan literalmente se perdeu nas idéias e acreditou no maravilhoso potencial da ignorância alheia de consumir bem qualquer coisa. O resultado é um filme desagradável, longo demais, que mais se perde do que se encontra, e desperdiça conceitos interessantes para divagar no absurdo para o bem do drama espacial e da redundancia.

CONCLUSÃO...
Christopher Nolan tem se especializado em dar grande complexidade desnecessária a seus filmes para enganar gratuitamente o espectador e faze-lo ter a sensação de que o assunto é realmente muito sério e complexo. 

sábado, 7 de fevereiro de 2015

SURPREENDE...

★★★★★★★
Título: Cake
Ano: 2014
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Daniel Barnz
Elenco: Jennifer Aniston, Adriana Barraza, Anna Kendrick, Sam Worthington, Felicity Huffman, William H. Macy, Chris Messina, Lucy Punch
País: Estados Unidos
Duração: 102 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma mulher que sofre de dores crônicas depois de um grave acidente fica um tanto obcecada com o suicídio de uma garota que frequentava o mesmo grupo de apoio de pessoas que sofrem do mesmo problema, se aproximando da família da falecida e também se questionando se todo o sofrimento diário é válido.

O QUE TENHO A DIZER...
É impressionante como existem atores que podem demorar praticamente o tempo de quase uma vida para sair da zona de conforto e mostrar um grandioso trabalho, como Jennifer Aniston faz neste filme. Dizer que em Cake ela finalmente mostra que pode atuar é algo bastante cruel e, com certeza, uma heresia para os milhões de fãs xiitas conquistados pela ultra exposição que teve durante os dez anos de Friends. Mas a verdade é que, sim, talvez seja o filme no qual Aniston prova pela primeira vez ser capaz de abandonar o fabricado estereótipo da mulher moderna e engraçada das comédias românticas que sempre fez e abraçar uma personagem com uma densidade muito maior em todos os sentidos, se livrando, inclusive, de maneirismos e vícios de interpretação que podiam causar um certo charme no seriado que a revelou, mas que no cinema sempre aparentaram comodismo.

Ao longo da carreira da atriz, é impossível ignorar o fato de que Hollywood tentou a todo custo explorar sua popularidade de forma abusiva. Venderam uma imagem da atriz que todos compraram sem objeção ou questionamento. Isso não apenas impediu qualquer situação que mostrasse uma Jennifer diferente daquela de vítima-da-separação-de-Brad-Pitt, como também a estagnou. E dessa forma essa imagem se refletiu em sua carreira com filmes fracos, esquecíveis e interpretações que nada mais foram do que variáveis de Rachel Green.

Como ela mesma afirmou, Cake é um filme que há muito tempo ela procurava fazer, talvez para, justamente, fugir dessa saturada exposição, deixando para trás a leva de papéis similares que a levaram para lugar nenhum.

Essa tentativa desesperada da atriz de correr contra o tempo perdido tem sido bem nítido nos últimos anos, como em seu papel de patroa má e ninfomaníaca em Quero Matar Meu Chefe (Horrible Bosses, 2011/2014), que apesar do esforço é descartável e até ultrajante. Ou no recente Sem Direito A Resgate (Life Of Crime, 2014). Mas como sempre, nada além de um burburinho sem força suficiente para se sustentar tanto quanto é seu papel neste filme. E vale-se dizer, nada que ela tenha feito chega próximo ao desempenho que ela mostra aqui.

Claire Bennett é uma advogada aposentada e viciada em analgésicos, pois sofre de dores crônicas depois de inúmeras cirurgias ortopédicas após sobreviver a um grave acidente no qual perdeu seu filho e ganhou dezenas de pinos e cicatrizes por todo o corpo. As dores que sente não são apenas físicas, mas também emocionais por conta da ausência do filho, que resultou na separação de seu marido, e na solidão que agora enfrenta, já que ela extravasa as insuportáveis dores constantes em atitudes tempestivas que afastam as pessoas que não a conhecem, sendo constantemente criticada e sempre gentilmente solicitada a procurar auxilio de outros profissionais, pois os que já auxiliam não a toleram, com excessão de Silvana, sua dedicada cuidadora. A gravidade de sua situação também a faz ter uma visão bastante pessimista do mundo e de que os problemas e as dores de outros são sempre menores e irrelevantes quando comparadas com a sua. Um pensamento um tanto egoísta, mas absolutamente compreensível devido ao pesadelo de viver o resto da vida dependente de drogas analgésicas que pouco fazem efeito e sempre esgotada de cansaço, pois as dores são tantas que nunca há posição confortável o suficiente para meia hora de sono.

O que se esperaria de um filme com uma temática dessas seriam situações bastante clichés para apelar no tom dramático, mas a personalidade da personagem não deixa isso acontecer, mesmo quando o diretor erra a mão e tenta manipular as cenas para o lado mais fácil de conquistar o público.

Apesar de todo o sofrimento, ela ainda é dura e persistente e não se vitimiza pelas limitações. E nesse ponto Aniston se bem sucede, oferecendo momentos bastante impressionantes, como na excelente sequência em que visita o marido da colega suicida pela primeira vez fingindo não ter nenhum problema. Ela é tão precisa nos detalhes que notamos a batalha que ela trava com seu próprio corpo, movimentando-se com uma fluidez mecânica e expressando com muita sutileza em seu semblante as dores sentidas, extravasando-as em falsos sorrisos e exaltações engasgadas, como também acontece em outra ótima cena em que visita sua médica fingindo ter tido melhoras, tratando-a com muito entusiasmo e atenção para conseguir que os analgésicos sejam receitados. Chega a ser brilhante e muito equivalente com o nível de interpretação de Marion Cotillard em Ferrugem e Osso (De Rouille Et D'os, 2012).

Para aqueles que desacreditavam ou nem menos imaginavam que Aniston poderia ser tão técnica e viceral em um papel, Cake é um excelente trabalho que irá convencer até os mais relutantes, como eu. E não é exagero traçar tantos elogios pela sua atuação, pois é surpreendente não apenas pelo resultado que ela oferece, mas também por ser algo inesperado. Tudo é sempre muito contido, como um grito embaixo d'agua, e muito limitado mesmo no meio de um amplo cenário, dando a impressão de que a imagem projetada é muito menor do que se mostra.

O filme segue a atual tendência nude que atingiu o cinema e a televisão com peso em 2014, em que atores ou diretores optam pela total ausência de maquiagem para levar ao espectador maior veracidade dramaturgica. Diz-se em Hollywood que para uma atriz ser respeitada ela deve ser "enfeiada", e com Aniston não poderia ter sido diferente. Aqui ela não aparenta envelhecida, como alguns reviews apontam, pois o que vemos é o que ela realmente é aos 46 anos. Não é chocante vê-la assim, muito pelo contrário, é natural e coerente. Claro que a iluminação se esforça para compensar a ausência de maquiagem e deixar tudo muito mais marcado e pesado como deveria, mas os resultados naturais também são visíveis mesmo nesse esforço, e muito bem vindos.

Infelizmente o filme não faz jus ao desempenho da atriz, que parece levar todo o longa da sua própria maneira, pois o roteiro fraco, com desenvolvimentos bastante simplórios e desnecessários acabam não se aprofundando na vida de Claire e dos fatos cruciais de sua história como devia. A princípio isso é interessante, já que passa ao espectador essa difícil sensação de remoer um doloroso passado, mas o arco dramático pede resoluções e explicações em algum determinado ponto da história. Ao invés disso acontecer, o roteiro de Patrick Tobin prefere dar atenção a acontecimentos paralelos banais que entram e saem da história sem relevância, cabendo ao espectador deduzir muito do que não é mostrado e fazer o resto do trabalho que o roteirista não fez, como na relação sem uma resolução satisfatória entre Claire e Annette (Felicity Huffman), a psicóloga do grupo; ou qual é de fato a relação e os pormenores entre ela e Jason (Chris Messina), seu marido; ou a razão narrativa da aspirante a atriz entrar na história; ou as aparições de Nina (Anna Kendrick), representando a consciência da personagem, algo já bastante batido e que também podia ser evitado. Até mesmo a relação que ela desenvolve com Roy (Sam Worthington) podia ter sido mais lenta e convincente, e que da mesma forma não é resolvida de forma satisfatória. Todas essas situações, quando analisadas com mais detalhes, parecem mais funcionar como rascunhos de um trabalho inacabado. Nem mesmo o vasto e talentoso elenco foi aproveitado como devia, e cada um deles dá o ar da graça como se estivessem fazendo participações especiais em filmes da Rede Globo, de tão rápidas e irrelevantes que são. No fim o filme passa a impressão de durar muito mais do que apenas 102 minutos, atrapalhando até mesmo o impacto da cena final, que poderia ter sido muito mais impressionante como pretendia caso o roteiro tivesse sido mais maduro e menos disperso.

Não é um filme com um nível que poderia ter, mas ainda sim belo por conta de uma interpretação que não se diminui com os defeitos que ele apresenta. Na verdade é um dos raros momentos em que uma interpretação consegue ser tão forte que ofusca todos os demais elementos.

Aniston concorreu ao Globo de Ouro de Melhor Atriz Drama, mas perdeu. Acreditava-se que ela teria uma vaga garantida na categoria de Melhor Atriz no Oscar 2015, mas foi ignorada. Atualmente esse fato tem sido considerado como mais um na lista das maiores injustiças da Academia nos últimos anos.

CONCLUSÃO...
Certamente um divisor de águas e épocas na carreira da atriz. Embora a crítica deveria ser sobre o filme como um todo, é Aniston quem rouba até mesmo os comentários. Desempenho impressionante e inesperado que deve ser visto pelos seus fãs e, principalmente, por aqueles que não são.

"UM HOMEM HONESTO ESTÁ SEMPRE COM PROBLEMAS"

★★★★★★★★★☆
Título: As Confissões de Henry Fool (Henry Fool)
Ano: 1997
Gênero: Drama, Comédia, Suspense, Policial
Classificação: 16 anos
Direção: Hal Hartley
Elenco: Thomas Jay Ryan, James Urbaniak, Parker Posey, Maria Porter
País: Estados Unidos
Duração: 134 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Henry é um homem sem rumo que cruza o caminho de Simon para salvá-lo de uma vida sem perpectivas. Através da literatura, Henry abre a Simon portas para um mundo de percepções que ele nunca havia visto antes. E os dois, cada um de seu modo, serão grandes agentes transformadores de uma sociedade estagnada e inapta a mudanças significantes.

O QUE TENHO A DIZER...
"Um homem honesto está sempre com problemas". Esta é a grande primeira frase de impacto de Henry Fool, e sem dúvida alguma a definição de todo o filme e dos personagens principais. "Lembre-se disso", continua ele.

As Confissões de Henry Fool é a primeira parte de uma inusitada trilogia de Hal Hartley. As outras duas sequências são Fay Grim (2006) e Ned Rifle (2014).

Este filme pode ser qualquer coisa, menos algo preso a um único gênero. A narrativa marcha entre diálogos literários, divagações artísticas, políticas e culturais. Fala sobre relações sociais, amizade, lealdade e o apoio familiar. Consegue ser uma comédia dramática, um suspense poético e uma ode à liberdade de ser, agir e pensar, ao mesmo tempo que é cheio de momentos ora instrospectivos, ora de um incomum entretenimento.

O que faz desta uma pequena grande obra de arte do cinema independente norteamericano são essas suas diferentes nuances nos mais de 120 minutos de uma história incomum, cheia de referências e camadas que se aglomeram cada vez mais durante o desenvolvimento.

O personagem Henry Fool (Thomas Jay Ryan) possui uma característica libertina e até um tanto anarquista. Contrário a regras e convenções ditadas pela sociedade e seus sistemas, nômade e solitário, um pensador do mundo que aparece a Simon Grim (James Urbaniak) como uma salvação e resolve se instalar no porão de sua casa sem pedir licença para finalizar aquilo que ele considera a sua "confissão", o seu "opus".

Simon, por sua vez, é um lixeiro igualmente solitário, um indivíduo desajustado bastante conformado com a total falta de perspectiva de uma vida monótona e repetitiva. Está tão imerso e recluso nesta vida inexpressiva que ele pouco fala. Vive dia e noite com seu uniforme, talvez por não distinguir mais a rotina do trabalho de suas horas de folga, ou talvez porque acredite ser a única forma de demonstrar para a sociedade que ele é um cidadão trabalhador e digno, pois é isso que ela cobra. Ele sustenta sua mãe depressiva e sua irmã, Fay (Parker Posey), uma mulher entre os vinte e trinta anos que faz nada além de lembrar sua mãe dos remédios e pensar em sexo.

Henry também está sob liberdade condicional, já que passou sete anos preso por ter sido flagrado fazendo sexo com uma garota de 13 anos. Ele não conseguiu evitar as insinuações da garota porque, segundo ele mesmo diz, ela sabia brincar com suas fraquezas mais profundas. E por uma tarde de transgressão, foi estigmatizado e rotulado como um pedófilo, caindo em uma conspiração da sociedade que se aproveitou da situação para denegrir o que ele fazia e pensava.

Esta grande revelação do personagem é crucial para colocá-lo em uma posição na hitória não de ameaça, mas de certa dúvida, a de que nem sempre temos o controle sobre nossas vontades, por mais que elas ofendam a realidade que vivemos. Henry não esconde e muito menos ignora seus vícios, mas o seu pensamento é tão coerente e verdadeiro que suas trangressões deixam de ser parte do lado social mais conservador para serem compreendidas como a essência de um homem livre, movido pelas suas vontades, nunca desperdiçando as oportunidades que aparecem a sua frente.

Henry é um personagem catalisador, um agente modificador do ambiente que está. Sua personalidade excêntrica e controversa, junto com seu pensamento verdadeiro e libertário, derivado de observações sobre uma realidade constantemente controlada, coloca aqueles ao seu redor a questionarem suas percepções. É isso o que acontece com Simon, que inspirado e motivado por Henry, passa a escrever poemas que, de igual forma, alteram o comportamento daqueles que os leem, como em um conto de fadas.

Em nenhum momento o espectador tem acesso a qualquer um desses poemas, mas a reação dos personagens após lê-los já é o suficiente para percebermos que a linguagem é tão forte e precisa que conhecer seu conteúdo é desnecessário. Claro que a curiosidade de saber porque a maioria facilmente se choca com o que lê e por que consideram seus poemas imorais e pornográficos é uma constante durante todo o filme, mas ao mesmo tempo dispensável, justamente para dar a impressão de ser algo tão grandioso que não seríamos capaz de sequer imaginar como seja.

Para quem conhece, é impossível não associar Henry e Simon, e Simon e a sociedade, com a repercurssão social que os poemas de Marques de Sade causaram no século XVIII, o qual escreveu a maioria de suas obras enquanto encarcerado por causar comoções sociais em seus textos que explicitavam o imaginário mundano da sociedade da época. Até mesmo a forma libertina de Henry pensar e agir pode ser uma referência ao escritor e filósofo. Mas tudo para por aí, ao contrário de Sade, tanto ele quanto Simon não possuem uma natureza cruel e egoísta, muito menos perversa. Pelo contrário, ambos demonstram que não teriam coragem sequer de violentar um inseto.

Os argumentos fundamentalistas de ambos, seja Henry com sua voz, seja Simon com suas palavras, incomodam a sociedade, movimentando-a fora da ordem convencional, conquistando tanto admiradores quanto a repulsa dos conservadores e doentes sociais.

Tudo é construído de forma bastante poética, em cenas elaboradas como um cenário teatral, mas honestas e naturais devido a ambientação intimista. O diretor consegue criar vários momentos onde literalmente nos desligamos do filme para nos questionar se o que vivenciamos no nosso real cotidiano é algo coerente. Seja no fato de aceitarmos imposições externas que partem de pessoas que nem ao menos conhecemos, ou por aquelas outras que realmente desconhecem completamente qualquer princípio moral e suas funções sociais de fato.

No fundo Henry e Simon são vítimas de uma sociedade de pessoas culturalmente homogeneizadas e modistas. Homens honestos em suas idéias e ideais, mas que colhem o amargo fruto de tudo isso, plantada por uma sociedade cega e incoerente.

Embora a sensação de descrença e impotência sejam muito grandes durante o filme, tudo isso no fim acaba sendo muito bem recompensado. Não por um final feliz e Hollywoodiano como poderia ser, mas por tantas mudanças terem acontecido e serem possíveis de acontecer, tanto aos personagens quanto para quem os assiste.

CONCLUSÃO...
Não é à toa que Henry Fool é considerado uma das poucas e genuínas obras de arte do cinema independente norteamericano, que mistura linguagem literária com a do cinema. Um filme que, através dos diferentes gêneros e temas abordados, consegue aquele raro fenômeno de despertar naqueles que assistem o interesse pela busca daquilo que realmente seja relevante na vida, o questionamento e a introespecção que podem levar a mudanças. Tudo isso por conta do poder das palavras contidas nele, e de como subestimamos nossa própria observação sobre as coisas.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

ATÉ ONDE CHEGAR PELO SONHO AMERICANO...

★★★★★★★★
Título: O Ano Mais Violento (A Most Violent Year)
Ano: 2014
Gênero: Suspense, Drama, Crime
Classificação: 16 anos
Direção: J.C. Chandor
Elenco: Oscar Isaac, Jessica Chastain, David Oyelowo, Albert Brooks
País: Estados Unidos
Duração: 125 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um imigrante que luta para manter seus negócios e proteger sua família da forma mais íntegra possível em uma cidade liderada por corruptos e criminosos, naquele que foi o ano mais violento de Nova York.

O QUE TENHO A DIZER...
O filme é dirigido e escrito por J.C. Chandor, que já havia concorrido ao Oscar por melhor roteiro original em 2012 no seu filme de estréia Margin Call (2012).

Assim como no seu filme de estréia, temas econômicos e políticos voltam a ser tratados nesse filme, não necessaria e diretamente sobre eles, mas relacionados de alguma forma, já que a história se passa em Nova York, no ano de 1981, e mostra a jornada de Abel Morales (Oscar Isaac), um imigrante ambicioso que sonha em alcançar o grande sonho americano de engrandecer seu império através do suor do próprio rosto.

As coisas começam a dar errado quando ele, sua família e seus negócios também se tornam vítimas do crime organizado e de uma violência indiscriminada que se movimenta pela cidade, além da corrupção que se fortalece com todos esses acontecimentos desastrosos que dão início a um efeito dominó que ameaçam todo o patrimônio que Abel e sua mulher, Anna (Jessica Chastain), construíram ao longo dos anos.

A grande sacada deste filme, e que Chandor consegue desenvolver brilhantemente, é a dificuldade do personagem em conduzir seus negócios e sua vida da maneira mais correta possível. Abel é um homem íntegro, de boa índole, um patrão respeitado que treina e se preocupa com seus funcionários, cumpre sua obrigações civis, evita desentendimentos, é um pai presente e tenta solucionar seus problemas da maneira mais pacífica possível, sempre com discursos honestos, construtivos e motivadores. Ele é incapaz de ameaçar, ser ofensivo ou reagir com violência. Já Anna é o oposto, a qual acredita que as dificuldades que todos estão passando no momento é justamente pela falta de uma austeridade mais ofensiva de Abel e de sua capacidade de combater a violência com a violência, algo que ele se recusa sem espaço para discussão.

Desde o início do filme, com sua trilha sonora contida e constante, como um ruído incômodo, é possível sentir a tensão e a densidade da desesperadora situação em que Abel Morales se encontra. Seu nome, que poderiam significar "poder" (do inglês "able") e "moral" (de "morales"), são os temas principais nos quais toda a trama é construída. O personagem possui ambos adjetivos, tanto no nome quanto em sua persona, mas ainda sim não são suficientes. O roteiro consegue criar muito bem o emaranhado processo do personagem em lutar contra os fatores agravantes sem qualquer sucesso, e que tudo começa a dar certo apenas quando ele mesmo passa a ignorar suas próprias convicções.

Dentro de toda a máfia controladora que a todo custo tenta derrubá-lo dos negócios, ou as dificuldades judiciais que ele enfrenta com o promotor da cidade que o investiga há três anos devido a denúncias que nunca são comprovadas, o pesadelo parece nunca ter fim. Junta-se a isso a violência que não consegue ser controlada e a inexistência de meios legais eficazes que protejam seus funcionários dos saqueadores, a empresa da falência e a sua família da miséria. Abel é pressionado por todos os lados, exposto a uma constante tentação em resolver seus problemas através das vias mais fáceis da corruptividade. É como se o meio o obrigasse de todas as formas possíveis a ceder, e finalmente se tornar exatamente aquilo que sempre condenou.

A tensão desenvolvida por Chandor é angustiante. Ele utiliza tecnicas de roteirização não linear para construir o suspense, revelando situações e fatos não de forma progressiva com a história, mas de acordo com progressão da atmosfera apreensiva que ele cria, o que dá aquela sensação de que cada novo fato revelado ou esclarecido ao espectador são cavas mais fundas no buraco que o personagem se encontra. Oscar Isaac, que foi recentemente visto em As Duas Faces de Janeiro (The Two Faces Of January, 2014) realmente dá uma maior profundidade ao personagem do que ele aparentemente teria, tal qual fez no seu filme anterior. Jessica Chastain tem dispensado comentários, seus últimos trabalhos, mesmo que em filmes não tão bons, tem sido muito interessantes. Vê-la recentemente em Dois Lados do Amor (The Disappearance Of Eleanor Rigby, 2014) e depois neste filme, a diferença é impressionante. Ela não chega a ter a finesse e a técnica um tanto britânica da australiana Cate Blanchett, mas ela consegue se transformar bem entre um papel e outro tanto quanto. Sua participação também não chega a ser muito grande no filme. É grande no início, mas perde espaço na segunda metade do filme. Mesmo assim ela é uma importante peça em toda a trama, pois sua personagem é filha de um gângster, o que não a caracteriza como uma criminosa, mas suas atitudes tem propósitos muito certeiros e justificáveis, bastante questionáveis também, sendo ela a outra polaridade do imã e a verdadeira grande influência nas decisões de Abel. Ou seja, Anna é uma personagem bastante grandiosa e importante que transcende o tempo que aparece na tela, a grande mulher por trás de um grande homem.

Apesar de alguns momentos ele parecer bastante confuso pela falta dessa linearidade, além de algumas outras situações um tanto confusas que realmente colocam em dúvida essa tal integridade do personagem, o filme sem dúvida mostra aquela realidade que já bem conhecemos, a de que não há honestidade e integridade suficiente que consiga combater as doenças sociais nas quais todos estão vulneráveis. E embora 1981 realmente tenha sido estatisticamente o ano mais violento de Nova York, o título também remete à violência moral sofrida pelo personagem, e de que é possível evitar qualquer desastre, mas é impossível evitar o mundo corruptível, o que nos faz voltar a considerar o lamarckismo de que o meio é o grande responsável por transformar o homem que vive nele, pois é nos momentos finais do filme e na forte expressão no olhar de Abel de que, por mais que ele quisesse, para dar continuidade a seus planos, ele não podia impedir o pior de acontecer. É então que temos o endosso de que o personagem, enfim, entrou em um caminho sem volta.

CONCLUSÃO...
Não dá pra negar que o filme consegue desenvolver muito bem o processo de transformação do personagem e como o mundo corruptível realmente consegue corromper até os mais fortes e relutantes, fazendo de O Ano Mais Violento uma explicação óbvia em forma de longa metragem sobre a vulnerabilidade das pessoas frente às amoralidades que as rodeiam.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O XEQUE MATE DE CRONEMBERG...

★★★★★★★★
Título: eXistenZ
Ano: 1999
Gênero: Ação, Suspense, Comédia
Classificação: 16 anos
Direção: David Cronemberg
Elenco: Jennifer Jason Leigh, Jude Law, Willen Dafoe, Iam Holm, Sarah Polley
País: Canadá, Inglaterra
Duração: 97 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma importante projetista de jogos de realidade virtual organica passa a ser perseguida por um grupo de fundamentalistas contrários à biotecnologia utilizada e a deformação da realidade. Durante sua fuga, a única cópia de seu mais recente jogo, chamado eXistenZ, pode ter sido danificado. Para descobrir isso, ela deverá se conectar a ele e jogá-lo para descobrir se algum dano em sua programação tenha ocorrido.

O QUE TENHO A DIZER...
Ao longo de sua carreira, David Cronemberg deixou evidente sua fixação sobre a relação dos homens com a tecnologia numa proporção equivalente ao próprio avanço dela mesma. Isso se tornou praticamente uma obsessão por conta da frequência com que ela é tratada em seus filmes, seja diretamente, como acontece aqui, ou em Videodrome (1983), ou em A Mosca (The Fly, 1986), como também até em outros títulos onde o tema foi abordado indiretamente, como no seu mais recente Cosmopolis (2012).

Portanto, a tecnologia como um assunto corriqueiro e cotidiano não é apenas uma regra como parte de seu estilo, como uma preocupação pandêmica. Raramente, entre um filme com uma abordagem diferenciada ou outra, como Marcas da Violência (A History Of Violence, 2005) ou Senhores do Crime (Eastern Promises, 2007), acaba não havendo espaço para isso, mas não significa que ele tenha esquecido.

eXistenZ surgiu numa época muito propícia e de transição para o novo milênio. Realmente um período onde eram debates mundiais questões sobre a tecnologia, os computadores, a internet, o "boom do milênio", a transformação dos jogos eletrônicos em grandes centros de entretenimento, as realidades virtuais e até que ponto o homem estaria disposto a transformar a tecnologia em uma extensão do seu prazer. Acreditava-se na época que a realidade virtual estava mais próxima do que imaginavam, e algo que também assombrava muita gente por ser um mundo completamente desconhecido. Um tema sempre discutido no cinema, seja em Tron (1982), O Passageiro do Futuro (The Lawnmower Man, 1992), Matrix (1999), O 13º Andar (The 13th Floor, 1999), dentre diversos outros que não me lembro agora.

Das discussões recorrentes nos filmes do diretor canadense, ele sempre pautou de forma um tanto religiosa que o futuro dos homens será buscar novas formas de prazer, ou novas formas de intensificá-lo. Foi o que ele cruelmente fez com Crash (1996), talvez o seu filme mais controverso por ir tão fundo no tema de forma patológica e autodestrutiva.

Cronemberg conseguiu levar para a tela o lado mais insano e perverso do ser humano sobre o prazer sexual, sempre mantendo uma coerência assustadora com a realidade, de forma que os personagens nunca impõem suas vontades aos outros como a doutrinar os inocentes, são eles mesmos quem escolhem se aprofundar neste labirinto fisiológico tão instintivo e primitivo. Seus filmes são complexos, muitas vezes difíceis de serem assistidos, que facilmente tendem a despertar a repulsa, mas ainda sim objetos de discussão coerentes com a contemporaneidade.

eXistenZ é parte disso, e figura entre os clássicos do diretor. Mais visceral e atordoador do que seu colega pop Matrix, lançado no mesmo ano, Cronemberg joga para o público a responsabilidade de uma realidade aumentada e sem limites. A busca de diferentes prazeres através de alternativas responsáveis por fazer os homens perderem o seu próprio controle tal qual uma droga intoxicante qualquer. Não é à toa que no filme todos os equipamentos possuem texturas orgânicas familiares, mas nada convencionais, que se assemelham a protuberâncias ou orifícios humanos. Há também o medo de alguns personagens pela chamada "penetração cirúrgica", já que cientificamente um dos medos natos do homem é a corrupção de seu próprio corpo, ou seja, a invasão de corpos ou objetos estranhos, como um caco de vidro, uma ferpa, uma agulha ou um falo. O estupro propriamente dito. Isso é proposital para que Cronemberg deixasse evidente até que nível o ser humano está disposto a atingir para adquirir novos estímulos além das formas tradicionais de buscar o prazer, que com o tempo perderam a graça (segundo o que ele, talvez, implicitamente propõe).

O diretor não chega a discutir o prazer em suas formas perversas como o masoquismo, a laceração e submissão da forma como fez em Crash, ao contrário disso, ele sugere que o prazer carnal não existirá mais no futuro. No lugar disso, iremos atrás de outras experiências que possam nos satisfazer constantemente de outras formas, como as possibilidades de criar e destruir, mandar e desmandar, ter o controle e o poder de absolutamente tudo. E o único lugar onde podemos ter tanta autonomia é apenas no mundo virtual, considerado pelo diretor um espaço democrático, pois dá oportunidade a todos de serem e experimentarem o que quiserem, algo que se mostrou verdadeiro com o âmbito que a internet tomou no cotidiano das pessoas.

Ao longo do filme os personagens já não sabem mais se o que acontece é parte do jogo ou da realidade, essa situação não apenas é imersiva como confusa por conta da irresponsabilidade de ultrapassar os limites que eles mesmos desconhecem e a possibilidade de serem tão onipotentes. Por isso, de certa forma, o filme também lida com a religiosidade e o poder no questionamento do ser humano ser ou não capaz de se aproximar de seu próprio criador. É por essa razão que um dos objetivos principais do jogo eXistenZ dentro da história do filme é a "morte ao demônio", que se refere ao projetista desenvolvedor daquela realidade virtual. Ou seja, morte ao humano que se passa por deus. Tanto que a referência a isso está no próprio título do filme, onde "isten" significa "deus" em hungaro.

O que é mais interessante de toda a produção é que, mesmo sendo de 1999 e falando de um futuro tecnologico ainda bastante distante, não há aquela sensação de produção datada. Toda a direção de arte é bastante neutra, e Cronemberg foi inteligente o bastante ao falar do futuro e da tecnologia utilizando a nossa própria realidade para isso. É como se ele também quisesse nos mostrar que o nível de fidedignidade com a nossa realidade será tão grande ao ponto de ser impossível distinguir onde está a linha que separa os dois mundos. Além disso, ele também utiliza suas esquisitas angulações de câmera para dar um certo tom de deboche, uma sátira surreal da nossa realidade, como sonhos desconexos, responsáveis também por destacar devaneios que o mundo virtual possa apresentar, como erros, ou "bugs" do sistema, algo similar ao gato preto em Matrix.

Há também um humor negro muito presente dentro deste contexto satírico no intuito de enfatizar absurdos que realmente não fazem parte de nosso cotidiano, como o nojento e ao mesmo tempo engraçado momento em que o personagem de Jude Law monta uma arma orgânica com restos encontrados em um ensopado e a carrega com os dentes de uma prótese que ele tira de sua própria boca e diz: "eu não uso ponte, meus dentes são perfeitos". São esses elementos que diferenciam as realidades sobrepostas e situam o espectador dentro dos diferentes mundos (além do próprio cabelo da personagem principal, que é liso quando no mundo real e frisado nos mundos virtuais, mas isso você pode fingir que não leu).

Se o diretor é ou não um jogador de verdade, não dá pra saber, mas ele soube encaixar elementos muito característicos de jogos que obrigam a interação do jogador com personagens não jogáveis. Um dos momentos mais evidentes disso é quando é citado o looping de ação de um dos personagens "não jogáveis" da história, que entra numa sequência de ação repetida até que o personagem principal dê o comando exato para que o sistema compreenda que uma ação foi realizada e seja dada uma ordem para a próxima etapa. O diretor é tão meticuloso nos detalhes que o filme também é um prato cheio para qualquer gamer nerd de plantão. E acreditem, na época em que o filme foi feito, eram pouquíssimos os jogos de mundo aberto como é proposto no filme, e os que existiam ainda eram muito limitados. Muitos jogos hoje chegaram bem próximos ao sistema proposto no filme de um mundo aberto, interativo e com objetivos a serem alcançados, aumentando a interatividade de ações entre jogadores e o mundo virtual ao ponto de perdermos a completa noção de tempo e espaço, tamanha a imersão. Ou seja, sem querer, Cronemberg conseguiu levar para a tela boa parte daquilo que os jogos se transformaram hoje. Claro que para chegar ao nível de realidade do filme, há muito futuro pela frente ainda, mas a essência interativa dele já existe de certa forma.

Vale muito ser assistido mais de uma vez para que a atenção seja dada a pequenos detalhes antes ignorados. Dezesseis anos depois ainda entramos na atmosfera do filme como entramos nos jogos de hoje, mas Cronemberg vai além e nos leva a uma paranóia crescente desenvolvidas com efetividade até os créditos finais numa realidade sufocante. Só não sabemos qual realidade é essa, e esse é o grande cheque mate de Cronemberg sobre nossas percepções. Será que um dia chegaremos a este ponto?

CONCLUSÃO...
Embora esquisito, surreal e confuso como sempre, eXistenZ é o Cronemberg autoral e brilhante, completamente contrário à convencionalidade. Ousado e um tanto visionário, ele questiona os limites da criação, a religiosidade e o vício pelo poder, a droga prazerosa mais fatal que o ser humano descobriu.
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