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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

ARTIGO DEFINIDO FEMININO PLURAL...

★★★★★★☆☆☆☆
Título: Caça-Fantasmas (Ghostbusters)
Ano: 2016
Gênero: Comédia, Ação
Classificação: 10 anos
Direção: Paul Feig
Elenco: Kristen Wiig, Melissa McCarthy, Kate McKinnon, Leslie Jones
País: Estados Unidos
Duração: 123 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Após uma ameaça sobrenatural, duas pesquisadoras do tema se unem a mais duas mulheres para tentar evitar uma grande gatastrofe.

O QUE TENHO A DIZER...
Desde o segundo filme da série, de 1989, o que mais se falou foi da concepção de um terceiro. Os fãs sempre cobraram Dan Aykroyd (ator/criador/roteirista) e os demais para retomarem a franquia, e a "culpa" de quase 15 anos de atraso foi de Bill Murray, que sempre foi bastante crítico a respeito dos roteiros que recebia e achava que nunca eram bons o suficiente para superarem o segundo filme. Embora não pareça, é algo bastante comum. Foi o que aconteceu com Indiana Jones, que demorou 19 anos para ter o tão esperado quarto filme que hoje é considerado um dos piores da franquia. Portanto, às vezes, o que é bom não deve ser mexido, mesmo que a nostalgia fale mais alto. São para isso que filmes são feitos, para marcarem uma época e serem revisitados quando essa saudade bater. Pensando nisso, talvez Murray não estivesse errado, e nem Aykroyd, que não queria que a franquia fosse simplesmente explorada, por isso que nunca aceitou substituir o papel de Murray, e por isso que o projeto com o elenco original nunca saiu do papel.

Por conta disso, depois de vários problemas de produção, recusa de roteiro e diretores que entravam e saiam, o projeto finalmente foi parar nas mãos de Paul Feig, em 2014. Feig é um diretor/produtor/roteirista de comédias em Hollywood, conhecido por sempre escalar mulheres como protagonistas de seus filmes/seriados. Foi depois do estrondoso sucesso de Missão Madrinha de Casamento (Bridesmaids, 2013) que ele foi alçado para o primeiro escalão de diretores de Hollywood, e obviamente que a noticia que ele deu quando abocanhou Ghostbusters foi em dizer que o filme não seria uma continuação, e muito menos um remake, mas um projeto totalmente novo e cujo grupo de heróis seria agora feminino.

A princípio todos ficaram interessados, alguns fãs reclamaram aqui e alí, mas no geral a comoção havia sido positiva. Esperava-se um grande sucesso, tanto de público quanto de crítica. Mas não foi bem isso que aconteceu.

O filme foi lançado logo após alguns movimentos de reinvidicação de direitos em Hollywood ganharem força, dentre os quais incluem os movimentos feministas e igualitários, que reinvidicam melhores papéis e equidade nos salários com os homens. Devido à proporção que essas manifestações tomaram, a produção foi apedreijada em seu lançamento pois foi vista como uma "provocação" tanto pelo público conservador, quanto pela crítica conservadora, e o filme foi taxado de produção feminista, que incita o ódio aos homens, e coisas do tipo. Os fãs disseram que o novo filme "estragou" a franquia, e as opiniões foram de mal a pior, principalmente daqueles que não conseguem enxergar que Hollywood sempre foi machista, sexista e preconceituosa, e essas opiniões apenas refletem essa cultura absorvida de que mulheres não podem ser protagonistas, não podem ser heroínas de um filme, não podem ter uma franquia própria, devem ser submissas aos homens a todo o tempo e não podem substituí-los em um remake ou algo do tipo.

O papo chauvinista tomou proporções gigantescas, e o filme gerou uma polêmica desnecessária e negativa, que apenas aumentou o ódio contra as mulheres, ao invés de neutralizar o assunto, ou simplesmente trazer um sopro de novidade, que é o que o filme faz.

O interessante é que ele realmente é uma produção nova e que tem apenas o enredo reaproveitado. Não é uma refilmagem cena-a-cena, como Gus Van Sant fez em Psicose (1998). Não é um remake desnecessário de algum cult do passado, como Footloose (2011). O material aqui é completamente novo, para início de uma nova franquia.

Sim, participações especiais de alguns dos atores originais acontece, bem como referências diretas aos filmes originais também, mas tudo faz parte do processo, homenagens que são necessárias como políticas de boa vizinhança.

O fato é que o filme realmente é uma versão bastante feminina, mas nem por isso seja um filme apenas para elas. No geral, é um filme atual, mas com uma incrível sensação que se tinha nos filmes 80tistas de que aquela absurdez era aceitável, além de poder ser vista por qualquer faixa etária, divertindo todos à sua própria forma. O que Feig faz com o material é bastante interessante. Os diálogos não são ofensivos; as personagens são caricatas sem serem ridículas (bem... boa parte delas); os diálogos parecem improvisados, bem no estilo dos filmes anteriores do diretor; e os efeitos especiais, embora se destaquem (no sentido de artificialidade), são propositalmente lúdicos e engraçados. Não há violência banal, não há uma truculência masculina dominante. Tudo é muito neutro e divertido até mesmo quando o roteiro pisa em alguns buracos, como nunca mais dar atenção ao apresentador do museu.

Há algumas piadinhas feministas diretas e indiretas, mas que estão anos luz de serem tão ofensivas como as piadas machistas que habitualmente somos obrigados a engolir de outros filmes. Talvez a mais importante delas seja o papel de Chris Hemsworth, como o secretário Kevin. Loiro, alto, bonito, sensual, forte e burro, aquilo que seria uma mulher caso seu papel fosse feminino. É uma resposta inteligente ao sexismo existente, sutil e bem usado, bem como todas as protagonistas o tratarem simplesmente como um objeto de desejo, tal qual os homens fariam caso seus papéis fossem masculinos.

Seria incômodo se fosse verdade. E é exatamente por isso que, nesses momentos pontuais, o filme realmente incomoda àqueles que tem problemas com gêneros.

A história segue exatamente o mesmo caminho da história original, de cientistas que acreditam em entidades sobrenaturais e que tem dificuldade para provarem isso publicamente até que um cataclisma ameace todos.

Particularmente esperava um filme fraco, com piadas infames. Elas existem, bem como as piadas clichés, ou como diz a personagem em uma das cenas finais: piadas clássicas que sempre funcionam. Mas funcionam por causa das atrizes. Kristen Wiig e Melissa McCarthy tem uma química surpreendente, e mesmo que ambas repitam aqui quase os mesmos tipos que fizeram em Missão Madrinha de Casamento, elas juntas sempre funcionam. O bom é que McCarthy conseguiu deixar sua personagem durona sem masculinizá-la, como costuma fazer, e Leslie Jones complementa o grupo muito bem quando sua personagem finalmente engata na história, um tipo mandona e matrona, mas que surge entre elas no susto, sem um motivo muito bem definido, consequências do roteiro um pouco esburacado. Infelizmente o mesmo não pode ser dito de Kate McKinnon, que parece deslocada na personagem Holtzmann, sem graça e à parte, que a todo momento tenta conquistar no exagero, forçando caretas e expressões que não apenas colocam-na como uma aloprada inútil, como também as demais parecem não dar a mínima para o que ela faz. E o mesmo faz os espectadores. Poderiam ter escalado outra atriz, alguém que fosse mais naturalmente cômica.

No geral, o que se pode dizer é que Feig é um diretor feminino, no sentido de que ele realmente sabe lidar com as mulheres, abstrair o ambiente que as oprimem, dar uma leveza imponente e situações cômicas sem ser apelativo. Ele realmente consegue empoderá-las. Ainda é um homem por trás das mulheres, mas o que o diferencia dos outros é a maneira feminina como ele pensa e as dirige, e a grande discussão de gênero em Hollywood no momento, em sua essência, é sobre isso.

Por algumas vezes a impressão que se tem é que o filme se arrasta. Poderiam ter utilizado técnicas de passagem de tempo para acelerar a introdução, seja para encurtar a longa duração, ou para ter dado mais espaço aos momentos de ação ao invés de jogá-los todos para o final. Diverte mesmo assim, e a baxíssima pontuação do filme nos websites especializados são dos odiadores que irão sempre odiar. Como disse Melissa, este filme não estraga os filmes anteriores, como muita gente ofensivamente manifestou nas redes sociais. Os filmes originais estão lá, e são apenas os machistas e sexistas que querem opinar sobre isso.

E infelizmente é assim que o filme foi promovido, tanto que o título em português sequer traz o artigo definido feminino no plural para definir que AS caça-fantasmas são mulheres.

Sim, a resposta ao filme é conclusivamente mais machista do que qualquer intenção feminista que o filme pudesse ter.

CONCLUSÃO...
Embora massacrado pela crítica e por machistas de plantão, não apenas é muito melhor do que a mídia promoveu como também poderia ser uma excelente nova oportunidade para o início de uma nova franquia. Também é uma grande homenagem aos filmes originais, principalmente na parte estética e participações, que inclui a do Boneco de Marshmellow. Engraçado e nostálgico, mas que tropeçou no meio do caminho por uma inútil discussão de gênero, mas que ganhou relevância, nos mostrando que há muito caminho a ser percorrido para que essa dominância masculina seja enfraquecida.

TAMPEM OS OUVIDOS...

★★★★★★★☆
Título: Florence: Quem É Esta Mulher?
Ano: 2016
Gênero: Comédia, Drama
Classificação: 12 anos
Direção: Stephen Frears
Elenco: Meryl Streep, Hugh Grant, Simon Helberg, Rebecca Ferguson, Nina Arianda
País: Reino Unido
Duração: 111 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Florence é uma mulher que a vida toda perseguiu a carreira de cantora, mesmo tendo uma péssima voz.

O QUE TENHO A DIZER...
Depois de Julie e Julia (2009) e seu terceiro Oscar por A Dama de Ferro (The Iron Lady, 2011), parece que Meryl Streep tomou gosto por personagens reais e excêntricos, pois Florence é tão única quanto as dos dois filmes anteriores.

Embora sua caracterização como Julia Child tenha sido um tanto quanto exagerada e, por que não dizer, muitas vezes fora do tom, ela conseguiu sua 14ª indicação. Mas isso não era nenhuma surpresa, assim como não será surpresa ela ser indicada novamente por representar Florence, caracterização que chega a impressionar, mas ainda vemos a sombra de Meryl-atriz em algum maneirismo ou outro, algo que não aconteceu quando impersonou Margareth Tatcher. Independente disso, com certeza arrancará algumas gargalhadas e também alguns olhos marejados em momentos dramáticos pontuais para isso, como toda e qualquer boa dramédia, principalmente porque Meryl também é uma grande atriz de comédia.

O filme começa dizendo que a história é baseada em fatos reais, e realmente é. Existe um documentário sobre a cantora chamado Florence Foster Jenkins: A World Of Her Own (2007) que pode ser assistido no YouTube (em inglês, sem legendas). Sua história nele é bem detalhada desde antes de se tornar uma socialite respeitada e de fundar o Clube Verdi, em 1917. O interessante do filme é que ele não é detalhista na biografia de Florence, mas é possível compreender boa parte pela forma como o roteiro dispõe alguns dos principais fatos, seja diretamente, ou indiretamente através dos diálogos. A cronologia dos fatos se altera um pouco para o bem do arco dramático, mas mesmo assim é respeitoso, algo que poderia se esperar do diretor Stephen Frears, já que ele segue o mesmo tom misto que deu a Philomena (2013).

Florence aprendeu a tocar piano cedo e era muito talentosa no instrumento. Tentou estudar música na Europa, mas seu pai não apoiava a escolha. Foi então que casou com Frank Thorton Jenkins, em 1885, e um ano depois descobriu ter contraído sífilis dele. Ela o deixou e, mesmo nunca falado dele, manteve o sobrenome por razões sociais da época. Como pianista, teve que encerrar a profissão abruptamente após uma lesão em seu braço, passando a dar aulas em Filadélfia até se mudar para Nova York, em 1900, onde conheceu e morou junto com o britânico St. Clair Bayfield. Pouco tempo depois seu pai morreu, e ela ficou beneficiária de boa parte da fortuna (que praticamente duplicou após a morte da mãe, em 1930).

Com essa renda, Florence voltou a perseguir suas aspirações musicais, fazendo aulas de canto e participando ativamente de grupos e clubes de música na alta sociedade, promovendo ensaios, recitais e concertos, muitos deles beneficentes ou que fossem revertidos para cobrir eventos, atraindo a atenção das pessoas e se tornando bastante influente. Foi então que fundou o Clube Verdi, um dos maiores e mais famosos de Nova York na época.

Além de tudo, Florence doava grandes quantias de dinheiro a clubes de música, eventos sociais, culturais, e a qualquer indivíduo que batesse em sua porta pedindo "patrocínio", como acontece brevemente em uma das cenas do filme. E ela o fazia sem sequer questionar. Além de tudo, Florence era uma grande entertainer. Era inteligente, extrovertida e os eventos que promovia eram sempre os mais disputados pois ela não fazia economia. As pessoas eram sempre bem servidas das melhores músicas, comidas e bebidas, com excessão de suas apresentações que eram sempre mais cômicas do que qualquer outra coisa. E foi assim ela fez seu nome.

Portanto, a história de Florence mostra que o fato de continuar cantando mesmo sendo uma péssima cantora era porque as pessoas tinham muito mais medo de perder o apoio financeiro e o status social que ela fornecia do que magoá-la de fato. Sem saber, ela havia comprado a opinião de toda a classe intelectual e artística de Nova York, e não porque St. Clair corria pra lá e pra cá encobrindo o desgosto das pessoas, como o filme mostra de maneira bastante romântica. Até porque há uma grande dúvida se a relação entre ela e St. Clair era apenas conveniência ou se realmente havia um sentimento, algum respeito de fato.

De qualquer forma, parecia ser uma mulher um tanto ingênua e altruísta, algo que Meryl consegue passar em sua atuação. E por incrível que pareça, o timbre da atriz é bastante parecido com a de Florence. Meryl canta todas as vezes do início ao fim do filme, sem dublagens, e a similaridade com os originais de Florence são bastante impressionantes, além de hilários.

Claro que em alguns momentos o roteiro nos dirige para o drama, mas é algo previsto em um filme biográfico, afinal, qual seria a razão dele sem qualquer lágrima? O interessante é que, como dito, é respeitoso e não apelativo, momentos que se tornam um pouco mais densos nem pelo seu conteúdo, mas pela situação e atuação que são envolventes. Apelativo é o título em português e sua incrível capacidade de fazer o público perder o interesse, já que apenas pelo título transforma a produção em uma comédia pastiche e ridícula, além de dar a impressão de que ela seja "louca" porque é mulher.

Uma pena Frears levar a direção de forma muito segura e até bastante simples. Ele podia ter optado por planos mais abertos do que os fechados, principalmente nas sequências em que Florence se apresenta. Podia ter aproveitado mais o palco e a liberdade da atriz nele, e não em querer reafirmar a performance de Meryl, como que a querer nos convencer que ela é uma grande atriz e sempre merece um Oscar e destaque. Nós já estamos carecas de saber disso, mas os diretores adoram explorar a imagem dela, mais do que o trabalho que ela faz de fato, e quando fazem isso, o filme deixa de ter uma história para ter simplesmente Meryl Streep.

E falando em performance uma vez li que antes de Madonna existiu Florence, já que era muito performatica para a época, com figurinos e cenários que ela mesma mandava desenhar. Um exemplo disso foi sua fissura em se apresentar no Carnegie Hall, uma das mais importantes casas de espetáculos de Nova York, fato que não aconteceu exatamente como o filme mostra, primeiro porque as negociações demoraram um pouco, além de ser dito que Florence estava tão extasiada com a experiência que não notou a platéia rir e zombar de sua horrenda apresentação, saindo de lá até bastante satisfeita. O que a deprimiu foram as críticas publicadas nos jornais no dia seguinte, sua saúde se definhou no decorrer dos dias, posteriormente levando-a à morte.

Por fim, é uma história cômica e ao mesmo tempo trágica, pois percebemos que a música para Florence foi, de fato, um combustível de vida e uma paixão que a ajudou a superar frustrações e a não enxergar a maldade ou os interesses alheios, mas que rendeu um filme leve e bem dosado, talvez muito perfeitinho e correto no seu desenvolvimento propositalmente para render algumas indicações na temporada de premiação que começa em Novembro.

CONCLUSÃO...
A história do filme é bem próxima com a biografia de Florence, com algumas mudanças aqui e alí no desenvolvimento e na cronologia para o bem do drama, mas nada que incomode de fato, ou que diminua a curiosidade das pessoas em saber mais sobre essa figura. É um filme comum, correto e decente. Acima de tudo, respeitoso, fazendo valer a intenção em assistí-lo.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

ADORAMOS VÊ-LO FUGIR. SEMPRE!

★★★★★★★☆☆☆
Título: Jason Bourne
Ano: 2016
Gênero: Ação
Classificação: 14 anos
Direção: Paul Greengrass
Elenco: Matt Damon, Tommy Lee Jones, Alicia Vikander, Vincent Cassell, Julia Stiles
País: Reino Unido, China, Estados Unidos
Duração: 123 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Bourne está fora dos radares da CIA, até uma antiga agente desligada interceptá-lo com novas informações sobre seu passado.

O QUE TENHO A DIZER...
Uma coisa é fato, e indíscutível: Se não fosse Jason Bourne, os filmes de 007 não estariam tão bons. Jason Stathan não teria virado referência no gênero e Matt Damon seria apenas um ganhador de Oscar que continuou fazendo dramas medianos.

Acredite, a Trilogia Bourne original foi revolucionária no cinema de ação atual e o seu formato impactou diretamente a forma de se fazer filmes do gênero em Hollywood, a começar pelo dinamismo na edição e a câmera mais livre que Paul Greengrass adicionou a partir do segundo filme (já que o primeiro foi dirigido por Doug Liman), e isso deu a sensação de o espectador ser um grande observador ativo em toda a história.

Apenas a Trilogia Bourne arrecadou quase US$2 bilhões pelo mundo (somando bilheteria e home vídeo), além de respeitosamente figurar entre os 100 melhores filmes de ação da história. Mas as pessoas devem saber que foi gradual, e o sucesso do herói só foi tomar proporções mundiais de fato no terceiro filme.

Como dito, Bourne foi um divisor de águas no cinema de ação, e o que Tony Gilroy e Paul Greengrass fizeram, se tornou referência.

A trilogia foi baseada em uma série de livros de Robert Ludlum, uma série que foi continuada pelo escritor Eric Van Lustbader após a morte do colega em 2002. Depois do terceiro filme, Greengrass afirmou que não voltaria à franquia, tanto que, quando soube que haveria uma continuação com Jeremy Renner (que não teria Damon, mas aconteceria no mesmo universo), o diretor bricou, entitulando o filme como "A Redundância Bourne".

Mesmo sendo escrito e dirigido por Tony Gilroy, roteirista e produtor da trilogia original, O Legado Bourne (The Bourne Legacy, 2012) não causou o mesmo impacto principalmente porque seguiu uma estética muito similar ao primeiro filme, dando aquele ar de deja vu no decorrer da trama. Mas de qualquer forma, Renner deu ao personagem Aaron Cross possibilidades para crescer. E o fato de terem continuado a trama por outro ponto de vista apenas reinterou a informação dos filmes anteriores de que Jason Bourne nunca foi o único, expandindo o universo para novas possibilidades.

Questionado frequentemente se voltaria ao papel, ou se haveria possibilidade de um encontro entre Jason Bourne e Aaron Cross em algum ponto da franquia, Matt Damon sempre afirmou que só voltaria se Paul Greengrass dirigisse o projeto. E assim foi. Greengrass, que outrora zombou de continuações, voltou ao projeto e Damon também. Se foi excepcionalmente pelo dinheiro, não se sabe, o que sabemos é que a parceria funciona, e que Damon realmente gosta de Bourne.

O filme começa com Nicky Parsons (Julia Stiles, a mesma da trilogia original) já desligada da CIA e hackeando a agência para obter documentos dos programas secretos de segurança do Governo, já que está intencionada a expô-los publicamente, no qual incluem os projetos Treadstone, Emerald Lake, Rubicon, Spearfish, LARX, Outcome, Hourglass, Spectrum, Blackbriar e Iron Hand, dos quais alguns já foram mencionados nos filmes anteriores. Bourne foi um dos primeiros no projeto Treadstone, e Nicky a responsável por alertá-lo de que ele não era o único, e que havia outros projetos além do que ele participou (é daí que surge o personagem Aaron Cross, que fez parte do projeto Outcome, explorado em O Legado Bourne).

Óbvio que, sem saber, ela será rastreada durante o hackeamento, indo atrás de Bourne para ajudá-la a revelar as informações. Bourne, que estava desaparecido dos radares desde os acontecimentos do último filme da trilogia original, novamente se torna alvo da CIA juntamente com Nicky, e a partir daí começam as cenas de perseguição, fuga, combate e espionagem clássicas da série.

Algumas pequenas mudanças ocorreram. No lugar de Pamela Landy (Joan Allen), entrou Robert Dewey (Tommy Lee Jones) como novo diretor operacional da CIA, e a função de Nicky Parsons (Julia Stiles) agora é de Heather Lee (Alicia Vikander). A questão é que Heather é muito mais ambiciosa, e quer derrubar Dewey para inciar uma nova geração de operações na CIA.

É inegável que, apesar de o cenário ser sempre o mesmo e esta sequência nem ser uma das melhores da franquia, ainda consegue ser um excelente filme de ação. Por parte do enredo, é um dos mais fáceis dos quatro filmes, não há reviravoltas mirabolantes, pistas falsas ou excesso de informações sobre os programas secretos para ficarmos confusos. Nem diálogos há muito, sendo o filme em que Matt Damon menos fala nas mais de duas horas de duração, ganhando até mesmo de seu personagem em Perdido em Marte (The Martian, 2015).

Mas quem disse que Bourne precisa falar? Matt Damon sempre foi um ator mais expressivo do que performático, e ele fez disso a característica principal de Bourne, sendo o verdadeiro atrativo dos filmes, afora as cenas de ação que aqui podem não ter tanto quanto nos anteriores, se extendendo demais em perseguições de carro, mas que mantém o mesmo ritmo frenético de Greengrass. Portanto, tem festival de sobra para os fãs, e a qualidade sonora e visual é bem paga no alto orçamento de US$120 milhões.

As reviravoltas na trama são modestas, e o que fazem delas interessantes são os próprios atores. Tommy Lee Jones é sempre carrancudo, objetivo e determinado, algo que ele sempre foi e por isso se encaixa em papéis como esses, não sendo à toa que ele bata o recorde de personagens que sejam ou da CIA, ou do FBI. Em contraponto está Alicia Vikander, sempre na espreita, tentando manipular e chegar ao centro comendo pelas bordas. Sua personagem é uma das mais interessantes da franquia, justamente por Bourne nunca saber de que lado ela realmente se encontra, uma dúvida que ganha o espectador ao também deixá-lo na mesma situação, o que é algo difícil de acontecer. Tanto que o filme rende um dos melhores finais da franquia. Final simples, mas de uma engraçada e merecida frustração (e que não é do espectador), encerrando com chave de ouro essa história, mas deixando aberto para um provável futuro.

Jason Bourne é o filme mais fácil da série, na intenção de conquistar o público jovem que não o conheceu antes (já que existe um buraco de quase 10 anos entre o último filme e este), a geração Y que pouco se importa com o conteúdo. Entitulá-lo apenas com o nome do personagem dessa vez pode significar o recomeço que a franquia não conseguiu com O Legado Bourne, até mesmo porque o filme arrecadou mundialmente mais de US$412 milhões, o que já garante sua continuação e mostra que o personagem ainda tem fôlego para sobreviver, mesmo depois de tanto tempo. E não há como se discutir: todos nós amamos Bourne, e adoramos vê-lo fugir sempre.

CONCLUSÃO...
Não é o filme mais forte da franquia, mas também não é descartável. Talvez seja a retomada da série. E que seja, Jason Bourne é o fugitivo que sempre iremos adorar ver.

CONFORTAVELMENTE EFICIENTE...

★★★★★★★☆☆☆

Título: Warcraft
Ano: 2016
Gênero: Ação, Fantasia
Classificação: 12 anos
Direção: Duncan Jones
Elenco: Travis Fimmel, Paula Patton, Ben Foster, Dominic Cooper, Toby Kebbel
País: China, Canadá, Japão e Estados Unidos.
Duração: 120 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Baseado na série de jogos de RPG, a guerra entre Orcs e Humanos começou.

O QUE TENHO A DIZER...
Embora tenha sido um fracasso nos EUA, não conseguindo chegar nem a US$48 milhões nas bilheterias, no resto do mundo o filme foi um sucesso, arrecadando um total de quase US$434 milhões por conta da fidelidade dos fãs sobre um dos títulos multimídia mais famosos de RPG da história.

Warcraft é uma febre entre adolescentes e jovens adultos, e um filme com seu título demandava muita responsabilidade, já que a História nos revela a péssima reputação que adaptações de jogos tem nos cinemas.

Mesmo aqueles que não são fãs, ou que particularmente não conheçam nenhum dos jogos, irá entender tudo muito facilmente. Para aqueles que sejam familiarizados com o estilo, ou que ao menos tenha assistido aos filmes do Senhor Dos Anéis - ou lido os livros de Tolkien - já tem material suficiente para ficar satisfeito sem compromisso. Sim, Tolkien sempre será uma referência vívida em qualquer título de RPG, pois foi ele quem popularizou a tal gramática - ou protocolo - que envolve a criação desses mundos.

A história é simples demais, explicando brevemente que a guerra entre Orcs e Humanos vai ter início a partir do momento em que um ambicioso feiticeiro Orc abre um portal no mundo de Draenor para o mundo de Azeroth, onde poderão reconstruir sua raça. O problema surge quando os humanos começam a ser mortos em massa sem saberem os reais motivos disso, e então a guerra é declarada.

Por um enredo principal tão simples, poderia se esperar o pior. Mas a questão é que em RPG's o simples existe para dar espaço ao complexo, que no caso seriam as subtramas e uma maior densidade dramática nos personagens. Mas o filme, dirigido e escrito por Duncan Jones (filho de David Bowie), ao invés de seguir a estrutura dos jogos, conseguiu transportar com bastante objetividade apenas o necessário, incluindo subtramas, e o arco dramático dos personagens é bem brando, causando uma comoção aqui e alí, mas nada muito pesado ou profundo. Basta dizer que ele fez tudo isso sem estragar nada, tudo numa zona de segurança muito-muito segura mesmo. A razão parece óbvia o bastante: dar oportunidade para os espectadores serem mergulhados no mundo de Azeroth, com a atenção voltada apenas aos detalhes que fazem parte das estruturas de um típico RPG.

O mundo distinto, os diferentes mapas, as estratégias de guerra, orcs, humanos, elfos, anões, animais de estimação (os "pets"), cidades com arquiteturas próprias, choques culturais, línguas distintas, florestas, magos, magias, explosões coloridas, encantamentos, vegetação e clima variados, etc... Tudo que se pode esperar de um mundo fantástico, como é o de Warcraft, ou de qualquer outro RPG, está no filme, seja em presença ativa ou apenas uma mera referência. É uma adaptação simples, mas consistente no seu propósito, que abraça os principais ícones do gênero e do estilo para criar um mundo fantasioso e à parte, com sua própria mitologia. Isso faz parte do protocolo, e realmente é difícil sair do hors concurs, do senso comum, daquilo que partiu de uma fantasia RPGista.

Mesmo com um orçamento exorbitante de quase US$150 milhões em 10 anos de produção, o filme mais parece uma cena de 120 minutos de computação gráfica (CG) retirada de algum dos jogos do que algo filmado de fato. Claro que as animações são deslumbrantes, principalmente dos Orcs, que por vezes passam uma expressividade ou uma naturalidade nos movimentos ao ponto de ficarmos na dúvida se são atores reais em pesada maquiagem ou não, mas que por outras vezes a artificialidade também fique bem nítida. O mundo construído é extremamente detalhado, mas tudo, como um todo, parece muito plástico, sem aquela mesma beleza mais natural e realista que se vê, por exemplo, na trilogia O Senhor dos Anéis. Por vezes tive a impressão de estar assistindo mais um episódio de algum seriado do Sci-Fi Channel. Mas tudo bem, porque visualmente Warcraft consegue ser complexo, e o que Jones conseguiu fazer em cima disso ainda é admirável. O excesso de CG não estraga a experiência, mas chega um ponto em que nos perguntamos qual o motivo de atores reais estarem no meio de tudo? E sem dúvida, isso acaba reduzindo sua relevância como um filme, mas não como entretenimento.

A maioria do elenco parece bem amadora, e de todos apenas dois nomes são bem conhecidos: Paula Patton, como Garona; e Ben Foster, como Medivh. Há também uma brevísssima aparição de Glenn Close, mas é tão rápida que se piscar os olhos na hora errada, vai perder.

O filme pode ter um roteiro raso e um enredo simples, mas se fosse o contrário, todo o encarecido e plastificado visual se ofuscaria com facilidade. Ainda não é um filme que conseguirá representar o RPG como Peter Jackson fez, mas consegue ser uma das poucas boas ataptações de jogos para o cinema e que diverte sem ser presunçoso, principalmente porque nenhuma raça é verdadeiramente vilã, algo que Jones fez questão de deixar claro.

CONCLUSÃO...
O enredo simples existe para não ofuscar o visual ou fazer o espectador perder o foco além de simplesmente mergulhar na fantasia do mundo de Warcraft. Mas a zona de conforto no medo de estragar uma série de mundial sucesso fez de tudo apenas mais um entretenimento, com uma relevância quase inexistente.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

É SALLY QUEM MANDA...

★★★★★★☆☆☆☆

Título: Doris, Redescobrindo o Amor (Hello, My Name Is Doris)
Ano: 2015
Gênero: Comédia, Romance
Classificação: 12 anos
Direção: Michael Showalter
Elenco: Sally Field, Mas Greenfield, Tyne Dali
País: Estados Unidos
Duração: 95 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma mulher tem de redescobrir como lidar com uma inesperada paixão quando um homem 30 anos mais novo se apresenta como novo colega de trabalho.

O QUE TENHO A DIZER...
Não, o título original do filme não é sobre a amiga esquecida de Nemo. E, sim, o título em português, além de cafona, não traz o mesmo humor embutido do original.

Na verdade é uma das pequenas e agradáveis surpresas do ano. Não que seja um filme estupendo, mas também não é ruim. É algo diferente, que talvez já tenhamos visto antes em alguma época, mas que ainda sim consegue ter seu charme e até um certo alento excepcionalmente por causa de Sally Field.

Ela é Doris, uma acumuladora sexagenária que perdeu a mãe há pouco tempo, com a qual viveu e cuidou por mais de 40 anos e não viu sua vida passar, nem seus sonhos se realizar, tendo como hobbie, além de colecionar tranqueiras, ler literatura romântica barata ou assistir programas de autoajuda. Ela trabalha em um escritório que a mantém no mesmo cargo há décadas por ser uma funcionária antiga, que veio agregada à uma transição que a empresa sofreu. Doris é o tipo de mulher retraída, que ninguém conhece, ninguém faz questão de conhecer, mas respeitam mesmo assim pela sua idade, e não por aquilo que é ou faz.

Tudo muda quando ela conhece John (Max Greenfield) em um elevador, e é pega de surpresa quando este se apresenta como um novo colega de trabalho. E a partir daí ela passa a alimentar um amor platônico maior que ela.

Sim, um enredo um pouco cliché, que tenta novamente transformar uma idosa em vítima de sua própria condição social e dos valores que a sociedade prega. E para diminuir a dramaticidade, trasformaram Doris em uma mulher excêntrica, parada no tempo, que não entende gírias e usa as mesmas roupas e o mesmo cabelo da adolescência. Poderia ter sido algo que usasse e abusasse das pataquadas de uma senhora desajustada para cair no humor comum e barato. Isso até acontece algumas vezes, mas que funciona por conta de uma atriz que sempre transmite uma honestidade muito forte. Não é à toa que, mesmo nos momentos mais constrangedores e típicos de comédias românticas que colocam personagens mais velhos em situações que fogem da realidade que vivem - como no momento em que Doris começa a dançar música eletrônica em sua sala, ou quando vai conhecer o líder de uma banda - conseguimos nos simpatizar com ela, deixar o constrangedor de lado e enxergar tudo como um momento libertador e sincero, que seria pequeno e infame caso o semblante extremamente motivador de Sally não fosse presente.

Claro que a vida de Doris ora se torna doce, ora amarga justamente pelas diferenças culturais e etárias em que ela se mete e das desilusões que passa por entender as entrelinhas de forma errada, nos trazendo momentos um pouco entristecedores pelo esforço que pessoas na mesma condição dela acabam fazendo para se sentirem socialmente relevantes ou aceitos. Mas fora isso, seu amor platônico se torna bastante real, ingênuo e puro, e a dificuldade que a personagem tem de lidar com isso, as marés baixas e altas desse tão conflituoso sentimento, deixa de ser dela para se mostrar algo universal, que independe de idade. 

Independente de qualquer coisa, consegue ser um filme leve, que pode não causar gargalhadas pois é ameno nas palhaçadas que poderia ser comuns em filmes similares, deixando aquela sensação um tanto purificada, como um gás hilariante que espalha um leve sorriso de satisfação pelo ar. Não digo que consiga ser um filme que faça jus ao talento de Sally Field, mas esse talento em si é tão radiante que a sensação que se tem é que quem mandou em tudo foi ela, aquela atriz que não precisa mais ser dirigida, apenas filmada.

CONCLUSÃO...
Um filme pequeno e bastante honesto sobre um amor platônico tardio, com uma personagem igualmente pequena e sincera, mas que se engrandece pela intensa e radiante presença de Sally Field.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O HUMOR NEGRO (SEM HUMOR) DE SOLONDZ...

★★★★★★★
Título: Wiener-Dog
Ano: 2016
Gênero: Drama, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Todd Solondz
Elenco: Tracy Letts, Julie Delpy, Greta Gerwig, Kieran Culkin, Danny DeVito, Ellen Burstyn
País: Estados Unidos
Duração: 88 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um cachorro é o personagem principal de quatro histórias sobre quatro personagens.

O QUE TENHO A DIZER...
Para quem acompanha a carreira de Solondz desde seu primeiro filme, já conhece o estilo do diretor de trás pra frente. Embora ele aborde sempre os mesmos temas, esses são tão complexos que seus filmes nunca se repetem da mesma forma. Bastante fora do circuito comum, esse norteamericano faz parte do pequenino grupo de diretores autorais e independentes que nadam contra a maré hollywoodiana.

É um pequeno gênio do cinema alternativo, cuja narrativa sempre tende a ser mais artística, introspectiva, que lida com os mais diversos temores humanos e suas complexidades. E como não há nada espetaculoso, acaba sendo ignorado. Como já escrevi em uma outra análise, Solondz brinca com o humor negro todo o tempo para aliviar o peso dos complexos temas dramáticos, dando o balanço exato e necessário para que verdadeiras discussões sobre a vida - muitas vezes pesadas - se transformem em algo comum como um café da manhã.

O diretor nunca teve uma grande evolução ao longo de seus filmes, no sentido de explorar outros espaços e situações. Ele sempre se manteve fiel às discussões humanas, na relação entre eles e como os conflitos se desencadeiam em efeitos borboleta. Ou seja, pequenos atos que dão origem a grandes ou trágicas conclusões.

Pois é. A impressão que se tem quando se fala dele é que seus filmes sejam tão densos ao ponto do insuportável. Mas não. Há uma delicadeza nata, uma naturalidade que muitas vezes nos impede de ver além do óbvio pela forma simplista como ele condensa tudo. Suas histórias e personagens demandam atenção e cuidado, pois realmente são criados e lapidados com muito detalhe. Quando algum de seus filmes acaba, a sensação que se tem a princípio é de uma breve catatonia, e então o tapa na cara é sentido com certo retardo.

Em Wiener-Dog isso não seria diferente, principalmente depois de dois grandes filmes que foram Dark Horse (2011) e A Vida Durante A Guerra (Life During Wartime, 2009). Nessa antologia o personagem principal é um cão Basset (ou Dashshund), que irá vagar por quatro histórias muito distintas. Com excessão das duas primeiras, as duas últimas não parecem ter uma conexão direta, e de fato não sabemos se o cachorro é o mesmo, que passou de dono em dono, ou se são cachorros distintos. Talvez esse seja o ponto negativo de uma narrativa que teria sido muito mais impactante e coesa se a conexão fosse mais óbvia como é nas duas primeiras partes, justamente por conta da conclusão que o filme tem, o qual foi responsável por algumas vaias recebidas no festival de Sundance.

O cachorro nada mais é na história do que um substituto daquilo que os personagens tem ausência, seja amor, companheirismo, ou de um simples adorno de mesa, e como são moldados por seus donos para conceder essas satisfações. A amargura, a displicência, a infelicidade e, acima de tudo, a solidão, são as discussões corriqueiras de Solondz e nessas histórias, havendo até tempo para um final feliz na única delas que foge da tragédia das demais, que por um breve momento nos faz sorrir e acreditar que o mundo nos reserva coisas inesperadas em meio a tanta negatividade e agressividade do ambiente que vivemos.

A primeira história já começa na crueldade Solondz de ser, sobre um casal rico e infeliz, que superou a doença terminal do filho único. O pai (Tracy Letts) explica ao filho o motivo de deixar o cachorro preso, e assim domesticá-lo para que ele passe a agir como um humano, mesmo que ele, em sua natureza, ainda tenha que ser levado para fora para fazer suas necessidades. É o contraditório e o antinatural. Acontece que a inocência do garoto o impede de compreender certas distinções, levando algumas das explicações na total literalidade infantil ao ponto de quase matar o animal ao dar a ele um pequeno pedaço de uma barra de cereais. A falta de tato dos pais se intensifica nas vezes em que a mãe (Julie Delpy) tenta intervir no relacionamento do seu filho com o cão. A forma como ela assim faz pode parecer até absurda e engraçada na atmosfera tragicômica criada, mas é a essência da crueldade propriamente dita, uma afronta à imatura intelectualidade do garoto. A domesticalização humana. 

O cachorro, por fim, vai parar nas mãos de Dawn Wiener (Greta Gerwig), a devastadora personagem do seu segundo longa, a qual era constantemente assediada na escola, apelidada de Salsichona (o "wiener-dog" do título, ou "cachorro salsicha"), e que agora, já adulta, trabalha como auxiliar veterinária. Irônico como apenas Solondz poderia ser.

Na visão do diretor, agora adulta, é como se a personagem tivesse personificado todo o trauma infantil e se transformado naquilo que as pessoas fizeram-na acreditar ser por toda a vida. Não é à toa que, ao ver o cachorro prestes a ser sacrificado, o seu lado ingênuo, o mesmo de quando era criança, despertam. Ela foge da clínica com o animal, se identifica com a solidão dele, e o batiza de Sujinho (ou algo assim), por conta da aparência que ele tinha quando chegou em suas mãos. É Dawn reproduzindo no animal o que fizeram com ela na infância, tal qual ela fazia com sua irmã mais nova em seu próprio longa. Somos nós reproduzindo a crueldade alheia naqueles que consideramos mais fracos.

Duas semanas depois ela reencontra Brandon (Kieran Culkin), um antigo colega de escola que a molestou e por quem acabou apaixonada, já que aquilo foi para ela a primeira experiência sexual que teve. Ao reencontrá-la ele a chama pelo apelido nada carinhoso de infância, mas ela já está tão condicionada ao tratamento que não mais se importa com isso. Ela virou aquilo.

A principio ele a trata com o mesmo desprezo de antes, enquanto ela outra vez se humilha para tentar ganhar sua atenção. É Solondz sendo provocativo outra vez, como querendo dizer que os anos passam, as pessoas se esquecem do passado, mas a essência continua a mesma, como aquela máxima que diz "quem bate esquece, quem apanha nunca esquece". A dureza do diretor, junto ao seu tom de humor trazem aquele sabor um tanto amargo quando Brandon, brincando com o animal, diz que os cachorros o adoram. Dawn nem se atenta ao fato de que ela era apaixonada por um rapaz que a tratava como um cachorro e que a xingava de cachorro. Ele também nem se atenta ao fato de que ela corria atrás dele como tal. Uma atitude passivo agressiva inconsciente dele, mas nós, espectadores, aqueles que já conhecem o passado de Dawn em Bem-Vindo À Casa de Bonecas (Welcome To Dollhouse, 1995), entenderá a referência e engolirá a seco.

Detalhar sobre essa história em específico é uma obrigação, pois Dawn é a única personagem que tem uma continuidade neste filme, e da qual temos conhecimento de sua bagagem atormentada, de uma infância desajustada e indesejada, de um filme cruel e ao mesmo tempo humano que foi esquecido com o tempo. Deve ser por isso que Solondz resgatou essa personagem que é a referência principal desse longa, talvez para finalmente libertá-la da eternidade trágica que o cinema lhe concedeu, e 20 anos depois concluir uma série de infortúnios de maneira muito honesta, mesmo que breve, seja para ela ou para os espectadores que a conhecem. Uma conclusão sincera e delicada em sua forma, mostrando que depois da tempestade vem a calmaria. Uma história curta, mas cheia de referências diretas e indiretas para aqueles que assistiram seu filme. Uma pena Heather Mattarazzo ter recusado reviver a personagem, mas Greta Gerwig consegue impersonar, mesmo que à sua forma, a essência cativante de Dawn.

A terceira e quarta história se assemelham pela solidão que os personagens se encontram, mesmo que por diferentes motivos. Temos um professor da faculdade de cinema, que é um roteirista fracassado no qual seus alunos o desprezam pela sua sua peculiar falta de talento e didática. É uma breve participação de Danny DeVito, mas tão consistente e marcante que a vida de seu personagem se torna dolorosa além da tela. E enquanto ele brilha com sua expressividade dramática, Ellen Burstin brilha intensamente na última história por justamente fazer o contrário, estar contida do início ao fim, enclausurada numa amargura que a vida lhe colocou.

E seguindo essa narrativa slice-of-life, os pedaços da vida desses personagens tem, em sua linha guia, uma cronologia óbvia ao longo das quatro curtas histórias: da infância, ao fim da vida; da perda da inocência, até a redenção sobre as consequências que isso traz, ao mesmo tempo que tudo isso mostra ser um ciclo do qual as gerações não estarão imunes. Solondz se referencia o tempo todo, como analisar sua própria trajetória. É um filme com teores existencialistas, como são todos seus filmes, mas que nunca perde o foco da realidade, nos fazendo encontrar os pontos positivos nos momentos mais negativos, e assim aprendermos algo com eles.

CONCLUSÃO...
Como dito, para aqueles que conhecem o trabalho de Solondz, Wiener-Dog é mais um ponto de vista excruciante da diversidade humana e dos problemas que nos atormentam. Não é tão brilhante quanto seus filmes anteriores, mas ainda consegue ter seu impacto, e por que não, sua beleza.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

BLAXPLOITATION ATUALIZADO...

★★★★★★★
Título: Luke Cage
Ano: 2016
Gênero: Drama, Policial, Ação
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Mike Colter, Simone Missick, Mahershala Ali, Alfre Woodard, Theo Rossi, Rosario Dawson
País: Estados Unidos
Duração: 42 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
5 meses depois dos eventos de Jessica Jones, Luke agora tenta construir uma nova vida anônima no bairro Harlem, em Manhattan, mas descobre que evitar ser um herói é impossível.

O QUE TENHO A DIZER...
Luke Cage é a terceira parte da empreitada da Marvel em expandir seu universo em parceria com a Netflix. Assim como fez com Os Vingadores no cinema - lançando filmes individuais dos heróis para depois reuní-los em um único filme - agora é a vez de experimentar o mesmo no serviço streaming. A idéia começou com Demolidor e Jessica Jones em 2015, segue agora com Luke Cage e continuará com Iron Fist, previsto para o primeiro semestre de 2017. Os quatro heróis serão reunidos na série especial Defenders, previsto para o segundo semestre de 2017, um projeto tão ambicioso quanto foi Os Vingadores no cinema.

Se enganará quem achar que Luke Cage tem a mesma ação bate-arrebenta de Demolidor, ou um conteúdo dramático e metafórico tão forte quanto em Jessica Jones. Seguindo a espetacular idéia de construir cada herói e desenvolvê-los de maneira mais humanista, condicionados ao ambiente transformador em que vivem, aqui o teor é muito mais sociocultural do que os anteriores, resgatando o estilo policial do blaxploitation da melhor forma possível, um movimento cinematográfico ocorrido nos anos 70 onde os filmes eram dirigidos, protagonizados e produzidos por negros e para serem consumidos pelos negros, o que posteriormente se transformou em um subgênero com adoradores de diversas etnias. Tanto é assim que há apenas um antagonista branco em toda a história, Shades (Theo Rossi), além de uma pequena participação de Sonia Braga, como a mãe de Claire Temple (Rosario Dawson), esta que se consolidará como a conhecida Enfermeira Noturna nos quadrinhos, já que socorre os heróis durante as madrugadas, como fez nos dois seriados anteriores.

O blaxploitation foi um movimento anti-racista, que protestava contra a segregação e o preconceito sofrido pelos negros, tanto socialmente quanto no cinema hollywoodiano que, historicamente, sempre foi mais branco que de qualquer outra cor. Os filmes dessa época, e que se enquadram neste estilo, tinham a intenção principal de empoderar a raça, colocando atores afro-americanos como protagonistas e heróis das tramas, como em Shaft (1971), clássico que é referências constante nesse seriado. Tarantino mesmo chegou a revisitar e homenagear o estilo no filme Jackie Brown (1997), trazendo do ostracismo a musa, Pam Grier, a eterna Foxy Brown (1974), outra grande referência a ser usada pelo criador da série, Cheo Hodari Coker.

A história de Luke (Mike Colter) tem início cinco meses após os acontecimentos de Jessica Jones, e logo no primeiro episódio ele revela ser indestutível, mas relata que um tiro de escopeta no queixo e a queima roupa, dado pela própria ex-namorada (Jessica), conseguiu deixá-lo em coma por alguns dias. Ele se mudou para Harlem, um bairro próximo a Hell's Kitchen, para tentar recomeçar uma vida anônima e longe de problemas, trabalhando principalmente como faxineiro de uma barbearia durante o dia, e como lavador de pratos da Harlem's Paradise a noite, a boite mais conhecida do bairro e o QG da máfia liderada por Cornell Stokes (Mahershala Ali), popularmente conhecido como Boca de Algodão.

O desenvolvimento da história é bastante lento, mais lento quem em Jessica Jones, pois tem a intenção de enfatizar a cultura afro-americana, difundindo-a por todos os lados através da linguagem, do comportamento e da música, além de se aprofundar na personalidade dos personagens e construir sem pressa a atmosfera hostil da máfia suburbana que toma conta das ruas de Harlem e do controle político da corrupta vereadora Mariah Dillard (Alfre Woodard), prima de Cornell. Apesar de tanta diferença etnica e cultural, a direção e o tempo de câmera deixa tudo bastante familiar ao outros dois seriados, contribuindo para a sensação de que tudo realmente acontece em uma mesma parte da cidade. Até a abertura segue esse mesmo padrão, enfatizando o aspecto de continuidade e conexão entre as produções.

A grosso modo, podemos dizer que Luke Cage está para Harlem assim como Demolidor está para Hell's Kitchen, e o que difere cada um deles é exatamente a diferença etnica e cultural: enquanto Hell's Kitchen é tipicamente habitada por imigrantes latinos e europeus foragidos da Segunda Guerra, Harlem é um importante centro cultural e comercial afro-americano que se fortaleceu após os movimentos sobre os Direitos Civis, se tornando um reduto da cultura negra e Hip-Hop. Por conta disso, foi muito interessante o lançamento ocorrer após The Get Down (2016), já que o seriado de Baz Lurhman da uma excelente introdução à importância da cultura negra nos Estados Unidos a partir dos anos 70, e Luke Cage complementa isso muito bem com as mesmas características. Mesmo que sua história ocorra em um período mais atual, evidencia que as dificuldades do subúrbio novaiorquino ainda continuam sendo as mesmas, obrigando seus moradores a criarem seus próprios métodos e maneiras de sobrevivência para diblarem o descaso que sofrem. 

Com excessão de Demolidor, e assim como Jessica, Luke não é um herói comum e uniformizado, e suas atitudes heroicas só afloram pela motivação dada por Henry (Frankie Faison), de que os poderes que ele tem devem ser usados para tirar o bairro das garras da máfia, trazer a paz entre seus moradores e a prosperidade. No decorrer dos episódios descobrimos quem Luke Cage realmente foi, e mesmo que explicado de forma muito superficial e pouco convicente, também mostra como ele adquiriu seus poderes.

Sua ascenção até um herói propriamente dito não tem a mesma sutileza e construção dos seus outros dois colegas, até porque há uma relutância interna do personagem para isso, que passa a sentir as pressões dessa decisão no momento em que revela a todos quem ele é, ao invés de se esconder sob pseudônimos e disfarces. Ele se recusa ver a sociedade em que vive regredir aos tempos escravistas quando subordinados a poderes sociais, e ao invés de lutar contra vilões e bandidos, Luke luta contra sistemas e poderes invisíveis e opressores. Tanto que o personagem se recusa a ser chamado de "nigga" ou "nigger", um termo incorreto de conotação negativa e preconceituosa, que mesmo sendo popularmente usado nos guetos entre os próprios negros (e repudiado quando usado por brancos), independente de seu locutor, o termo historicamente remete ao período escravocrata, já que surgiram e foram popularizados por aqueles que os escravizaram e os consideravam inferiores e ignorantes. E Luke Cage traz consigo essa responsabilidade de quebrar paradigmas e heranças culturais negativas ou retrógradas, sendo, além de um herói, uma importante referência de que a cultura afro-americana não deve esquecer de seu passado, mas também não deve viver sobre ela para construir um melhor futuro.

Só que embora tenha um bom conteúdo, não dá para negar que sua trama seja um pouco mais do mesmo. Como dito, é a fórmula de Demolidor transportada para outro bairro, com outra roupagem. Mesmo assim, não importa se, apesar de tudo, Luke Cage seja mais uma fantasia em cima do universo dos heróis. Sem dúvida o que o diferencia é o largo passo que o distancia da metáfora, se aproximando mais da realidade vivida, enaltecendo a cultura negra tanto quanto The Get Down faz, principalmente quando traz a música mais próxima à história, com participações de artistas que performam aquilo que de melhor existe do Jazz, Soul e Funk. E assim percebemos como essa cultura é tão rica, diversificada e influente no mundo todo, por mais que seja negligenciada ou deturpada, sendo dever e obrigação ser respeitada.

CONCLUSÃO...
Enfim, é o estilo blaxploitation atualizado, revitalizado, e tranformado, onde o herói principal não usa mais armas de fogo, mas o corpo indestrutível e a força de seu caráter, que surge em um excelente momento de novas revindicações e espaço.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

ESTÁ TUDO BEM, CARA!

★★★★★★★★★☆
Título: Better Call Saul
Ano: 2015
Gênero: Drama, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Bob Odenkirk, Jonathan Banks, Reah Seehorn, Michael McKean, Patrick Fabian, Michael Mando
País: Estados Unidos
Duração: 44 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Antes de ser Saul Goodman, ele foi o mesmo, mas que tentou insistentemente, e sem sucesso, seguir normas e padrões.

O QUE TENHO A DIZER...
Breaking Bad (2008-2013) extrapolou todos os limites do drama psicológico, da violência e da falta de escrúpulos, igualmente testando os limites de seus espectadores de forma que um seriado jamais ousou. O sentimento a cada novo espisódio assistido era de ter uma arma apontada na própria cabeça, uma roleta russa que finalmente detonou a bala do tambor no último episódio. Foi um drama tão denso e cheio de consistências extremas ao ponto de não causar o prazer que habitualmente se tem quando buscamos entretenimento. Pelo contrário, era deprimente e insano, nos fazendo pensar que o máximo de maldade poderia ser, na verdade, o extremo da bondade. Assistir a trajetória autodestrutiva - e coletivamente destrutiva - de Walter White (Bryan Craston) dedicava esforço e litros de água para ajudar nas incontáveis engolidas secas que seu egocentrismo obsessivo e psicótico nos proporcionou.

Não foi à toa que Saul Goodman (Bob Odenkirk) e Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks) entraram definitivamente na história a partir da terceira temporada, pois sem eles o seriado teria se tornado dramaticamente intragável. Foram eles os grandes responsáveis pelo alívio cômico, e quando não era cômico, pelo menos neutralizavam a densidade dramática por conta do caráter mais humano e da clara percepção que tinham sobre o meio que viviam e sobre aquilo que faziam, até mesmo nos mais brutos momentos.

Ambos foram grandes personagens que agregaram mais ainda a diversidade psicológica de Breaking Bad, roubando a atenção em inúmeras cenas. E mesmo fazendo parte de uma trama que envolvia os mais diversos tipos de crime, corrupção e transgressão social, havia essa tal humanidade inenerente em cada um deles que faltava no protagonista.

Mesmo Saul sendo um grande trapaceiro, ainda existe uma ética seguida e que ele se impede a todo momento de se desvincular. Prolixo e espirituoso nas suas abordagens, podia não saber dar um tiro, mas conseguia se livrar de perigos usando palavras, sendo sempre o advogado dele mesmo, numa habilidade retórica somada a entonações teatrais de deixar qualquer um abismado. Sua covardia frente a grandes pressões era o que fazia suas cenas, por vezes, serem bastante engraçadas dentro dos limites dramáticos do seriado. Conhecido como "advogado de porta de cadeia", conquistava por conta do seu exagero comunicativo e pela caracterização marcante, e no fim impressionava pois, apesar de todo esse acúmulo de informações dispersas, tinha um raciocínio e uma inteligência resolutiva brilhantes. Seria um personagem cômico propriamente dito, caso estivesse fora do contexto do seriado, mas como falamos de Breaking Bad, obviamente sua vida não poderia ser fácil, rendendo diversos momentos de pura piedade, desastres que nos faziam perguntar "por que ele se meteu nessa?", e obviamente, nos sensibilizando com suas situações ora trágicas, ora cômicas.

Mike já era bastante diferente. Um homem de poucas palavras e de expressão limitada, mas que dizia muito com pouco (ou absolutamente nada). E mesmo sendo um mercenário sem arrependimentos, sua deliberada afasia e irônica expressividade era o suficiente para arrancar gargalhada dos mais sutis observadores. Mas igualmente, volto a dizer, não havia nada que aliviasse a vida de qualquer um. Mike talvez tenha sido o mais misterioso deles, e conforme seu desenvolvimento progredia, mais intensa e comovente se tornava sua história porque sua motivação sempre foi bastante simples e clara: o incondicional amor à sua família, ou o que restou dela. A história de Mike foi concluída de forma trágica e brutalmente emocionante, um dos ápices momentos da série. A manteiga derretida que sou, chorei copiosamente por aproximadamente uma hora sem parar.

Não foi à toa que a dupla cativou, e não faltou momentos em que muita gente assistia só para ver os dois. Comigo isso aconteceu diversas vezes, principalmente quando eu já estava um pouco entupido do clima pesado de Walter White e das cabeçadas constantes, frequentes e regulares de Jesse Pinkman (Aaron Paul), dois personagens que conseguiram arrastar Saul e Mike para o mais profundo abismo. Maldito o dia em que Walter e Jesse cruzaram seus caminhos.

Mas, quando tudo parecia perdido com o fim do seriado, eis que o criador de Braking Bad, Vince Gilligan, se uniu a Peter Gould, e junstos resolveram fazer um spin-off para dar uma vida mais light a essas duas grandes figuras, e foi então que Better Call Saul surgiu.

O título, como muita gente bem sabe, é o bordão que Saul Goodman utiliza nas propagandas publicitárias de seu negócio em Breaking Bad, e seu pseudônimo na verdade é um jogo de palavras (S'all good man! = Está tudo bem, cara!), por conta do extremo otimismo e motivação que, apesar dos pesares, o personagem também carrega.

O spin-off começa contando sua história aproximadamente 15 anos antes dos acontecimentos de Breaking Bad, às vezes com flashbacks de passados até mais distantes que esse. Ou seja, tempo suficiente para, finalmente, descobrirmos que Saul Goodman é, na verdade, um homem chamado James "Jimmy" McGuill, que foi um con artist (mestre de golpes e trapaças) por muitos anos, tornando-o conhecido pelo apelido de Jimmy Saboneteiro, pois ele se safava bem de tudo. Com a ajuda de seu irmão advogado e dedicado a deixar esse passado para trás, mudou-se para Albuquerque, no Novo México, para trablhar como entregador dentro da firma de advocacia na qual seu irmão é sócio, e sem ninguém saber, estudou advocacia à distância através de uma das piores universidades dos EUA, passou no Exame da Ordem, e pegou todos de surpresa com o título, aumentando seus atritos com seu irmão ciumento que nunca engoliu o fato de Jimmy ter sido o filho predileto e o preferido de muita gente, além de se tornar um dos mais perspicazes advogados com o pior currículo possível.

Já Mike, um ex-policial corrupto, mudou-se de Filadélfia para Albuquerque por motivos bastante pessoais após a morte de seu filho, e agora trabalha como porteiro do fórum municipal, além de fazer outros pequenos bicos que lhe garantam o dinheiro extra necessário para oferecer o conforto financeiro necessário a sua nora oportunista e garantir o futuro de sua neta que tanto ama.

Saul e Mike se conhecem de forma bastante inusitada, e a relação de recíproca confidência e confiança começa a ser construída entre eles sem que eles mesmos percebam.

A mesma sutileza na construção dos personagens em Breaking Bad acontece aqui, bem como a personalidade de ambos se mantém a mesma em um seriado que, mais uma vez, poderia ser cômico caso não fosse dramático, mas está anos luz de ter o mesmo teor de seu antecessor. Sem dúvida o que vemos de Jimmy é um personagem muito mais emocional, que não consegue evitar problemas justamente por não conseguir evitar salvar os outros de problemas. Até mesmo em Breaking Bad, Saul nunca foi um vilão, nem um anti-herói, mas um herói torto, que não se encaixa em nenhum rótulo.

Há um episódio em que um de seus clientes o contrata porque viu em Jimmy a representação do sonho americano. Essa foi a definição perfeita dele, pois de fato, é isso que ele é. Sua vontade e perseverança de vencer na vida, se tornar um importante e reconhecido advogado dono de sua própria firma, custe o que custar, é o que faz James McGuill iniciar seu processo de transformação ao infame Saul Goodman. Será nessa metamorfose que o antigo Jimmy Saboneteiro se mesclará com o esforçado James McGuill, se tornando um dos desenvolvimentos mais interessantes da televisão nos últimos anos: o do sonho americano falido, Saul Goodman, o pesadelo de qualquer humano que se preze.

É nesse seriado que vamos descobrir porque mesmo sendo um profissional de métodos duvidosos e taxado como "advogado de criminoso", aquela ética citada ainda existe em uma humanidade que é vista através dele e que ele nunca se impede de mostrar. Seu senso de companheirismo e responsabilidade com seus clientes e amigos - até mesmo quando estes não se consideram nem um, nem outro - é verdadeiro, seja criminoso ou não. A grande alma de Jimmy/Saul é sua total ausência de preconceito e até uma certa ingenuidade que o impede de ver a maldade mais profunda dos outros. O mais triste de sua história é que Jimmy é uma daquelas pessoas de vida desgraçada que, por mais que se esforce, nunca conseguirá sair deste circulo vicioso, já que seu fatídico destino faz as oportunidades escorregarem de suas mãos, e ele se torna a verdadeira personificação da derrota por isso. Também nos mostra que Jimmy é a ferramenta dos criadores para nos dizer que não há lugar para pessoas corretas e bem intencionadas nesse mundo. Ou você dança conforme a música, ou continua parado no mesmo lugar.

Pode ser meio difícil se sentir conquistado pela série sem antes tê-lo conhecido no seriado anterior, pois é lá que captamos de imediato essa alma e pinta de palhaço do personagem, e o mesmo sobre a sentimental truculência de Mike, ficando a Better Call Saul a estranha responsabilidade de nos mostrar o passado de ambos ao mesmo tempo que dá continuidade àquilo que já conhecemos deles, redendo até agora duas temporadas (e que vai para a terceira em 2017). Não é um seriado com uma grande trama principal, mas uma fictícia biografia com fragmentos de memórias boas e ruins. Sim, é para agradar mais os fãs do que os novos espectadores, mas mesmo que a princípio soe insosso para quem assiste pela primeira vez, não demorará muito para se sentir hipnotizado pelo protagonista.

O que fica um pouco cansativo é que os criadores não se atentaram que, desde Breaking Bad, todos os personagens podem ter conteúdos diferentes, mas uma única essência: a sagacidade extraterrestre. Essa coisa de a todo momento alguém prever um acontecimento ou deduzir brilhantemente algo que aconteceu é uma herança bastante negativa do seriado anterior, levando a um ping-pong, a um vai e vem, a uma troca de chumbo fácil e sem muita veracidade, como acontece constantemente entre Jimmy e Chuck, ou entre Mike e a máfia mexicana, um método fácil para criar reviravoltas na trama. Mas de forma alguma isso diminui suas qualidades, principalmente porque as grandes estrelas da vez - e com mérito - são Jimmy e Mike, mesmo que já saibamos como suas histórias terminam.

CONCLUSÃO...
Ao contrario de Walter White, James McGill, vulgo Saul Goodman, é um personagem apaixonante. Não é à toa q agora tem sua própria série, mesmo que Breaking Bad seja um grande spoiler em sua jornada.
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