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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

NEM TÃO EXEMPLAR ASSIM...

★★★★★★
Título: Garota Exemplar (Gone Girl)
Ano: 2014
Gênero: Suspense
Classificação: 16 anos
Direção: David Fincher
Elenco: Ben Affleck, Rosamund Pike, Kim Dickens, Carrie Con, Neil Patrick Harris, Tyler Perry
País: Estados Unidos
Duração: 149 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
No dia do 5º aniversário de casamento, Amy desaparece deixando várias pistas, mas nenhuma que leve diretamente a ela. Ao mesmo tempo que a polícia investiga os fatos, tudo indica que Nick, seu marido, não é tão inocente quanto parece.

O QUE TENHO A DIZER...
Percebe-se que David Fincher tenta a todo custo emplacar algum novo thriller tal qual ele fez no passado com Se7en (1995), Clube da Luta (Fight Club, 1999) e O Quarto do Pânico (Panic Room, 2002). Ele não foi muito feliz no gênero com Zodíaco (Zodiac, 2007) e se deu um intervalo para investir em dramas como o cansativo O Curioso Caso de Benjamin Button (The Curious Case Of Benjamin Button, 2008) e o aclamado A Rede Social (The Social Network, 2010). Voltou ao gênero um ano depois com sua hedionda adaptação norteamericana de Os Homens Que Não Amavam As Mulheres (The Girl With The Dragon Tattoo, 2011). Hediondo e desnecessário, diga-se de passagem, já que as adaptações suecas das obras de Stieg Larsson são muito melhores em todos os aspectos.

Garota Exemplar é baseado no livro de Gillian Flynn, lançado em 2012, que se transformou instantaneamente em um best seller, vendendo mais de 8 milhões de cópias no mundo. Foi bastante aclamado por narrar as consequências obscuras de um casamento decadente, bem como o circo manipulativo criado pela mídia em cima das situações trágicas que envolvem os mistérios da trama. É produzido pela atriz Reese Witherspoon e sua produtora Pacific Standard junto com a Regency. Parece que a princípio era pra ela ter sido a protagonista, mas por conta da sua gravidez teve que abrir mão do papel. A autora também é a roteirista, por conta disso, vale-se dizer, o filme é 90% fiel ao livro, desde o desenvolvimento narrativo até mesmo nos diálogos, muitos dos quais foram tirados da própria obra original, algo sempre muito interessante de se observar. Se quiser ler o resto por sua conta e risco, selecione o texto para aparecer: Foi divulgado que a autora havia mudado o final do filme para que aqueles que já leram o livro não perdessem o interesse. Realmente há algumas diferenças mínimas, mas nada significativo, e tudo foi apenas um boato. Para os que não leram, essa informação não faz qualquer diferença.

Fincher novamente abusa do tempo nas mais de duas horas e meia de um filme que visualmente cansa pelo excesso de edição e diálogos cortados, perdendo a fluidez e a grande expectativa viciante que o livro tem. Quem desconhece a obra original poderá achar a história um pouco inconsistente porque Flynn se limitou muito no desenvolvimento da história para mantê-la a mais fiel possível ao livro, mas não soube desenvolver a personalidade dos personagens principais da maneira como é brilhantemente feita no original e indispensáveis para a imersão na trama. Este é de cara o problema mais notável para aqueles que leram a obra, pois embora a história como um todo possa cair numa sequência interminável de absurdos um tanto difíceis de engolir até mesmo dentro da própria ficção, o grande atrativo é a construção dos personagens e suas consistentes personalidades.

Ben Affleck pode ser bonito e ter um sorriso camarada, mas ele é um ator tão medíocre quanto seu personagem. Felizmente ele provou nos últimos anos que consegue ser um bom diretor e roteirista, qualidades que salvaram sua carreira do fracasso, porque sua falta de talento cênico é devastadora. Para sua sorte, sua incapacidade de atuar e a fisionomia sempre apática caem como uma luva no personagem. Nick Dunne é perfeitamente descrito pela escritora como uma pessoa introvertida, mecânica e inexpressiva, havendo momentos que sua rigidez emocional chega a ser constrangedora até mesmo para o leitor, mas o personagem traz embutido um sarcasmo e uma autodepreciação que rende momentos de humor negro e sutil. Affleck evidentemente é um ator que seria uma das últimas opções de Fincher para qualquer trabalho, mas assim como Cronemberg conseguiu se beneficiar da mesma incompetência do ator Robert Pattinson para caracterizar o personagem arrogante, egocêntrico e narcisista de Cosmopolis (2012), percebe-se que Fincher tenta fazer o mesmo com as inabilidades do ator em prol do inábil personagem. O resultado só não tem muito sucesso porque nem Gillian Flynn, nem o próprio Fincher, conseguiram deixar claro no filme que o que vemos naturalmente de Affleck na tela é exatamente o que o seu personagem é no livro. Para o espectador leigo a interpretação do ator pode não parecer convincente, o que de fato não é, mas é coerente com o personagem, isso só não ficou claro. E o tal sarcasmo e autodepreciação, grandes atrativos do personagem, passam despercebidos.

O mesmo pode ser dito sobre a personagem Amy, mas ao contrário de seu colega, Rosamund Pike atua de verdade e faz um excelente trabalho. Mas o filme em nenhum momento se beneficia ou argumenta sobre a inteligência acima do normal da personagem e a máquina manipuladora que ela é descrita no livro. Os leitores perceberão que a atuação da atriz é extremamente sutil e calculada principalmente nos momentos mais dramáticos entre ela e Affleck, onde é possível notar subliminarmente toda sua perspicácia e dissimulação. Quando o roteiro finalmente tenta expor essa genialidade de Amy de maneira mais óbvia, é tarde demais e pouco convence.

De maneira até curiosa, os demais coadjuvantes acabam roubando as cenas, como a irmã Margo (Carrie Con) e a detetive Rhonda Boney (Kim Dickens). Considero infeliz a escolha de Tyler Perry para o advogado Tanner Bolt, um personagem que na verdade nada acrescenta tanto no livro quanto no filme porque ele não tem nenhuma conclusão importante na história, e o ator entrega um tom cômico e despretencioso que soa incoerente, talvez para compensar essa desimportância, mas ainda sim continua esquecível.

Fincher tinha um grande material nas mãos para fazer mais um grande suspense quando parte-se do princípio de que o livro se bem sucede no gênero por conta da narrativa um tanto folhetinesca que intercala o ponto de vista de Nick e o ponto de vista de Amy sobre a relação de ambos como se fossem capítulos, cada um deles interrompidos em momentos chaves que prendem a atenção do leitor para descobrir como cada um desses momentos se esclarecerão. Essa proposta foi mantida no filme, mas não funciona tão bem quanto no papel. Quando a história atinge seu climax, um momento extremamente importante que pega o leitor de surpresa pela maneira abrupta como a reviravolta acontece, esse grande impacto é desperdiçado numa cena tola com um tempo narrativo totalmente errado, novamente por conta de uma edição falha e de uma revelação que poderia ter sido construída de forma mais lenta e elaborada. Quando comparamos com Clube da Luta e a maneira chocante como o diretor revela ao espectador algo que estava evidente aos seus olhos o tempo todo, percebe-se que Fincher poderia ter trabalhado melhor nos impactos da trama.

Trent Reznor e Atticus Ross novamente colaboram com o diretor na trilha sonora, talvez para tentar repetir o sucesso da parceria que rendeu um Oscar aos dois pela composição de A Rede Social. A trilha sonora, cheia de instrumentais e ruídos eletrônicos desconexos, tem um papel fundamental para diferenciar os tempos narrativos. Como dito pelo próprio diretor, embora relaxante e vaga, ainda instila um senso de pavor. Mesmo assim ela soa invasiva em alguns momentos, e seu mau uso, seja pelo excesso ou pela má sincronia, deixa a desejar em situações que poderia causar esse impacto surpreendente esperado.

No geral o filme pode agradar principalmente por conseguir reproduzir fielmente os personagens e a cenografia narrada pela autora no livro. Mesmo em uma narração em primeira pessoa, o detalhamento que Flynn dá na descrição dos ambientes e da fisionomia de seus personagens é tão rico que para muitos que leram a obra ficarão surpresos e terão aquela sensação de "era assim que eu imaginava quando li", e esse é um dos grandes pontos positivos. Uma pena que ele falha na sua construção, fazendo todo o clima sombrio, misterioso e dúbio do livro serem perdidos ou pouco aproveitados tanto quanto a rica personalidade dos personagens principais. Muito disso, com certeza, pela inexperiência quase amadora da escritora como roteirista, já que é seu primeiro trabalho para o cinema.

CONCLUSÃO...
Muito fiel ao livro, porém erra em não ter explorado como devia a personalidade dos personagens principais e na edição que nunca oferece o suspense esperado, além da chocante surpresa do clímax que é desperdiçada. Evidente também a falta de forma do diretor em conduzir mais um suspense sem a vontade demonstrada em seus primeiros grandes sucessos, talvez porque aqueles filmes ele tenha feito por vontade, e não por contrato, como acontece aqui ou como aconteceu com Os Homens Que Não Amavam As Mulheres.

sábado, 18 de outubro de 2014

INUSITADO...

★★★★★★★
Título: Terra Para Echo (Earth To Echo)
Ano: 2014
Gênero: Aventura, Ficção, Fantasia
Classificação: Livre
Direção: Dave Green
Elenco: Astro, Teo Halm, Reese Hartwig, Ella Wahlestedt
País: Estados Unidos
Duração: 90 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Depois que os celulares dos moradores de uma pequena cidade no interior de Nevada entram em pane, três amigos resolvem pesquisar o que pode ter ocorrido e descobrem que a pane na verdade mostra um mapa que leva ao meio do deserto. Como um deles está para se mudar para Nova York, o trio resolve se aventurar na última noite que passarão juntos.

O QUE TENHO A DIZER...
É o filme de estréia dos amigos Dave Green na direção e Henry Gayden no roteiro. Foi originalmente desenvolvido e produzido pela Disney enquanto Rich Ross era o presidente da companhia, mas ele acabou se demitindo devido ao mau estar gerado entre ele e os executivos da Pixar por conta do homérico fracasso de John Carter (2012). Ross deixou a Disney em Abril de 2012 e Alan Horn foi nomeado para o cargo. Assim que Horn assistiu a versão final do filme ele resolveu colocá-lo em turnaround, um termo utilizado na indústria cinematográfica que significa um acordo de transferência de direitos de uma obra já finalizada por uma produtora para outra. Em outras palavras, é vender o filme pronto no valor dos custos da produção somados a outros interesses variáveis. Dentre os motivos mais comuns, este tipo de acordo visa cobrir os gastos e ao mesmo tempo oferecer um lucro simbólico de um filme que uma companhia tenha desistido de comercializá-lo. Os direitos de distribuição, então, acabaram sendo vendidos para a Relativity Media, que mesmo sendo uma das maiores empresas do mundo neste segmento, não conseguiu promovê-lo da forma efetiva como a Disney conseguiria com a força de sua marca.

A narrativa do filme é novamente no já velho estilo de filmagens em primeira pessoa, como no acontecimento extraterrestre de Cloverfield (2008), mas dentro uma construção mais pessoal e fantasiosa similar a de Poder Sem Limites (Chronicle, 2012). Tudo começa quando os três curiosos amigos, Tuck (Astro), Alex (Teo Halm) e Munch (Reese Hartwig) resolvem investigar o que significa a pane gerada nos celulares das pessoas de onde moram. Ao descobrirem que a imagem que aparece nos aparelhos é um mapa, assim como os Goonies, os três decidem se aventurar a segui-lo. Tuck, por ser dono de um canal pouco assistido no YouTube, resolve filmar toda a jornada na esperança de que algo muito interessante aconteça e que dê a ele e seus amigos notoriedade. De bicicleta, a localização os leva até o meio do deserto de Nevada, onde encontram um artefato de metal que posteriormente se revelará uma fonte de energia essencial para a sobrevivência de um alienígena bioeletromecânico que possui forças magnéticas para controlar qualquer objeto desta natureza. A pequena criatura precisa encontrar partes para reconstruir seu equipamento danificado pelos terráqueos que atacaram sua nave quando viajava sozinho pelo espaço, e agora pessoas do governo estão atrás da criatura que quer apenas voltar para seu planeta. Os jovens, comovidos pela descoberta e por também se sentirem isolados do mundo tanto quanto o novo amigo extraterrestre, resolvem ajudá-lo.

Não dá pra negar que os clássicos infanto-juvenis, como E.T. (1982) e Goonies (1985), sejam referências primordiais nesta aventura. A história também se assemelha bastante com a ficção extraterrestre e juvenil Super 8 (2011), de J.J. Abrams, já que o filme de Abrams não apenas bebeu das mesmas fontes como também seguiu a mesma estrutura técnica de direção de Spielberg. A diferença é que, neste pequeno filme, as catástrofes, os exagerados absurdos e os grandiosos efeitos especiais dão lugar para um desenvolvimento mais humano, lúdico e carregado de sentimentos simples e sinceros.

As comparações com o filme de Abrams foram inevitáveis e pipocaram nos fóruns de cinema, o que acabou diminuindo a expectativa de muitos. Mas a verdade é que Terra Para Echo custou menos da metade de Super 8 e consegue contar a jornada aventuresca similar de forma muito mais empolgante, nostálgica e convincente dentro de sua fantasia e sem transformar o alienígena em uma ameaça assustadora, naquela impressão que raramente temos de que não é necessário orçamentos milhonários para bons filmes serem feitos, o que também é bastante notado com Poder Sem Limites quando comparado com grandes blockbusters de super heróis.

Por ser filmado em primeira pessoa, um estilo que hoje em dia se tornou batido mas que ainda rende boas idéias, tanto o diretor quanto o roteirista quiseram se aprofundar mais ainda no apelo pessoal e na cumplicidade dos personagens ao desenvolverem a idéia de fazer o espectador acreditar que o filme realmente foi feito por eles. Tanto que assim que o filme começa com a narração de Tuck, é notado que todo o processo de filmagem e edição foi feito por ele. O filme que assistimos, dentro da história, seria o grande material que Tuck acredita que será suficiente para ter sucesso assim que publicá-lo em seu canal no YouTube. Essa metalinguagem oferece um apelo muito mais convincente por ser atual, que muito simpatiza e se assemelha com a realidade de muitos, sejam adolescentes ou não.

Além disso, a relação de amizade exposta pelos personagens e os valores que cada um tem sobre isso são bastante verdadeiros e até emocionantes sem cairem nos exagerados abraços coletivos como é costumeiro nos filmes direcionados a essa faixa etária, há até um momento para uma briga bastante séria entre eles. Aliás, esse é outro ponto interessante:.mesmo um filme infanto-juvenil, em momento algum ele subestima este público, vagando muito bem entre a realidade e a fantasia de maneira bastante óbvia para que fique claro que tudo é uma ficção, mas ao mesmo tempo uma fantástica e empolgante jornada com uma merecida moral final.

Claro que, por ser um filme de baixo orçamento e feito por novatos, são muitos os erros técnicos existentes e por vezes explícitos, mas ironicamente os filmes em primeira pessoa dão liberdade para isso. Nem mesmo o amadorismo dos atores mirins atrapalha, o que na verdade dá até um certo charme porque, apesar de tudo, conseguem convencer que a relação existente entre eles é verdadeira. O diretor e roteirista quiseram chegar tão próximos desta experiência amadora e adolescente para que o filme fosse convicente que eles fizeram questão dos atores serem fundamentais durante o processo de desenvolvimento do filme. Até mesmo o design do alienígena foi feito por um rapaz chamado Ross Tran, um ilustrador que, na época de produção, tinha apenas 19 anos de idade. Dave e Henry tinham em mente a personalidade que o extraterrestre deveria ter. No primeiro esboço feito por Ross, a idéia foi aprovada de imediato, uma experiência que eles consideraram incrível dentro de todo o contexto e da idéia de trabalharem com o amadorismo e com pessoas novas. A ingenuidade da história e dos personagens, principalmente sobre a figura frágil e bastante expressiva do pequeno alienígena que por muitas vezes remete a uma personalidade solitária e incompreendida similar ao de Wall-E, e a abordagem de temas tão simples como amizade, respeito e confiança, faz qualquer defeito ser facilmente ignorado e o filme ser apreciado por qualquer tipo de público: às crianças e adolescentes por se identificarem com os personagens e os anseios da idade, e os mais velhos pela gratificante nostalgia e uma oportunidade de voltarem no tempo.

Pode ser algo simples demais para muitos, mas é difícil não sorrir com ele, ou se emocionar, justamente por ter um apelo intencionalmente honesto de conquistar públicos que estão carentes da despretenção de aventuras inusitadas e ingênuas como acontece nesse filme. E é evidente que a Disney desperdiçou uma grande oportunidade de se beneficiar com um outro personagem tão cativante quanto Wall-E, o que infelizmente faz do filme uma das grandes e mais injustiçadas surpresas do ano. Talvez tenha o reconhecimento merecido em home video. Ainda há tempo.

CONCLUSÃO...
Infelizmente não foi um grande sucesso, mas também não foi um fracasso. Teve um custo de aproximadamente US$15 milhões e arrecadou em torno de US$40 milhões em todo o mundo. Uma quantia razoável que conseguiu pagá-lo, mas o deixou longe do reconhecimento público que, acredito, ele merecia. Cheio de referências aos clássicos infanto-juvenis da década de 80, a produção consegue ser bastante fiel na proposta despretenciosa e fantástica de uma grande aventura inusitada, e até ousada por utilizar as referências que utiliza e mesmo assim conseguir dar uma identidade original a ela.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

NÃO COMO UM TODO...

★★★★★
Título: Mapa Para As Estrelas (Maps To The Stars)
Ano: 2014
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: David Chronemberg
Elenco: Julianne Moore, Mia Wasikowska, John Cusack, Olivia Williams, Evan Bird, Robert Pattinson
País: Canadá, Estados Unidos, Alemanha, França
Duração: 111 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Sobre indivíduos que buscam a fama, o sucesso e o perdão, ligados um ao outro através dos fantasmas de seus passados.

O QUE TENHO A DIZER...
David Cronemberg não se cansa de realizar filmes confusos e controversos, sempre chegando no limite do bizarro e colocar seus personagens como cobaias de experimentos frente a diferentes níveis de perversão no mais profundo sentido sexual e patológico. E Mapa Para As Estrelas não seria diferente.

É a segunda colaboração do diretor com o ator Robert Pattinson, mas desta vez em um papel bem coadjuvante, para o alívio de muitos. Ao contrário do que ocorreu em Cosmopolis (2012), onde propositalmente ou não Cronemberg abusou da superficialidade, das limitações e da arrogância do ator tal qual o produto Hollywoodiano que ele representa, nesse filme, por incrível que pareça, Pattinson pela primeira vez consegue deixar sua figura de estrela-por-acaso de lado e conseguir atuar sem ser inconveniente. As comedidas vezes em que aparece não são desconfortáveis como foi no filme anterior, e isso já é bastante surpreendente.

Também é a primeira vez que Cronemberg filma nos Estados Unidos, algo que ele nunca havia feito em sua carreira, nem mesmo com Cosmopolis, filme em que a história é ambientada totalmente em Nova York.

Dissecar este filme não é uma tarefa fácil, mas como um todo é uma sátira moderna e dramática sobre o show business e do entretenimento ocidental em sua amplitude.

O filme começa com uma breve apresentação dos personagens e nada muito esclarecido. A impressão que se tem é que será um filme sobre histórias paralelas e as diferentes impressões que cada um deles tem sobre a fama, o sucesso e dinheiro. Mas conforme a relação dramática entre eles aflora - e não demora muito pra isso acontecer - fica cada vez mais claro o lado psicológico mais obscuro que estava escondido em cada um, desde a relação incestuosa de um casal de irmãos até a relação incestuosa entre mãe e filha. E pode se preparar porque o filme todo vai girar em cima disso e sobre a teoria dos filhos perpetuarem os erros e defeitos dos pais como uma herança genética.

Ao contrário de seus filmes anteriores, Cronemberg deixa um pouco a palidez de lado em cenografias ainda geometricamente bem estruturadas, mas agora mais contemporâneas e condizentes com a realidade mostrada, abolindo a figura da tecnologia como uma extensão humana, algo muito presente em seus filmes e parte de seu estilo único. Os atores também deixaram de ser marionetes automáticas do diretor para serem mais humanos. Talvez essa mudança venha a calhar muito bem para amenizar temas tão delicados e perturbadores, deixando o choque mais evidente para momentos específicos e inesperados nos confrontos físicos e psicológicos que gradualmente desenvolve e desconstrói os personagens. Não é sempre que vemos filmes abordarem o incesto na naturalidade que somente Cronemberg seria capaz de fazer, e o roteiro de Bruce Wagner consegue até fazer isso de forma bastante sutil e nada abusiva, diferente do que se espera.

O grande problema do filme é que as histórias particulares são muito mais expressivas do que o filme como uma unidade, e a repetitividade dos problemas abordados acabam enfraquecendo o filme como um todo. O drama da atriz Havana (Julianne Moore) e a tentativa de manter a fama e seu status na indústria cinematográfica por si só já é tão chocante quanto a precoce fama de Benjie (Evan Bird), que com apenas 13 anos já caminha para sua autodestruição. O arco dramático dessas duas histórias já possuiam forças para manter toda a estrutura do filme, mas ao contrário de se fortalecerem na concatenação dos fatos, infelizmente se ofuscam no meio de toda a elucubração do roteirista e da obsessão do diretor em querer aprofundar cada vez mais no bizarro. Isso deixa as tramas paralelas de Agatha (Mia Wasikowska) e do casal Stafford e Christina (John Cusack e Olivia Williams) ficarem um tanto obsoletos, como um drama familiar à parte inserido para dar uma consistência que nunca atinge o ponto que conseguiria sozinho.

As atuações também são os pontos fortes tanto quanto as histórias individuais, e Julianne Moore oferece uma performance muito interessante e diferenciada entre a razão e a insanidade que, ao invés de cair no drama fácil, segue para um humor negro e propositalmente piegas que contextualiza muito bem o tom satírico da fama e do sucesso abordados na trama.

CONCLUSÃO...
Um filme que, como bem dito pelo próprio Cronemberg, é difícil de ser digerido, que é muito mais interessante e melhor compreendido em suas histórias individuais do que como uma unidade. A complexidade e excentricidade características do diretor sempre fazem seus filmes fugirem da compreensão convencional, mas ainda sim não deixa de ser interessante, justamente por ser Chronemberg.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

BRILHANTE COTILLARD...

★★★★★★★★★☆
Título: Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit)
Ano: 2014
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne
Elenco: Marion Coutillard, Fabrizio Rongione, Catherine Salée, Christelle Cornil
País: Bélgica, França, Itália
Duração: 95 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Sobre uma mulher que, após se recuperar de uma crise nervosa sofrida no trabalho, recebe a notícia de que para continuar empregada ela deverá convencer seus 16 colegas a abrirem mão de um bônus que receberão pelo desempenho alcançado no período em que estava afastada.

O QUE TENHO A DIZER...
Este filme Belga foi dirigido, escrito e produzido pelos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, cineastas populares em seu país e presenças constantes em importantes festivais de cinema como o de Cannes, no qual já ganharam duas Palmas de Ouro, um prêmio do Juri Especial e três prêmios do Juri Ecumênico recebidos por diferentes títulos. Eles também foram responsáveis por co-produzir outro grandioso filme também estrelado por Marion Cotillard, o emocionante drama Ferrugem e Osso (De Rouille Et D'os, 2012), mas é a primeira vez que trabalham diretamente com ela, que também é a única artista famosa e não Belga com quem eles já trabalharam, já que sempre optam por artistas locais não famosos mundialmente.

É inegável que a francesa Cotillard deve ser considerada uma das melhores atrizes do cinema mundial da atualidade e também de sua geração. Esqueça do uso que Hollywood faz de sua imagem para engrandecer suas produções, pois é particularmente em filmes pequenos, independentes e locais que ela consegue demonstrar o seu imenso talento por fazer seus personagens crescerem de tal forma que esquecemos do filme para mergulharmos efetivamente no drama humano representado.

Neste filme isso não seria diferente, e assim como em Ferrugem e Osso ou em Piaf (La Môme, 2007) sua técnica novamente sobressalta tanto nos momentos mais sutis como também naqueles em que ela não hesita em se despir e se desconstruir emocionalmente, pedaço a pedaço, aos olhos do espectador. E o melhor de tudo, nunca ofuscando o filme como um todo.

A história é baseada em um fato parecido que os irmãos Dardenne leram a respeito em 2000 de um caso ocorrido na França, e posteriormente a isso descobriram mais três casos similares que ocorreram na Bélgica, Itália e Estados Unidos. Mas como um todo explora situações comuns e sempre atuais que envolvem as diferentes prioridades no cruel sistema convencional de trabalho, colocando os valores morais no patamar mais baixo e menos importante deles. Agregado a isso estão os fatores psicossociais aos quais os personagens se submetem por conta de seus subempregos, como: a desvalorização profissional e pessoal resultante da baixa remuneração e estagnação, a falta de perspectivas pessoais pelo medo do desemprego, e o assédio, que por si só já define o mais alto grau de leviandade do sistema.

A personagem de Cotillard passa por todas essas dificuldades e cada um dos seus 16 colegas representam uma qualidade ou um defeito resultante dessa relação trabalhista sub-humana construída pelo próprio sistema em que todos estão dispostos.

O filme já começa com o coice que Sandra (Marion Coutillard) leva com a notícia de que a maioria de seus colegas de trabalho votaram por receber um bonus de mil euros em troca de sua demissão, já que seus superiores justificaram que alguém deveria ser demitido para que as horas extras trabalhadas por cada um deles possam ser pagas por conta de dificuldades financeiras que a empresa passa, quando na verdade isso foi apenas uma mentira para demitirem sem justa causa uma colaboradora pouco produtiva e que se tornou um peso morto por ter sido afastada por problemas de saúde relacionados ao próprio trabalho.

Não é esclarecido se seu problema de saúde é resultante da pressão produtiva, se ela já sofria algum tipo de abuso moral ou se ela já era emocionalmente instável, mas devido ao descaso da maioria pela sua situação, incluindo de uma colega muito próxima, toda a situação assediosa se esclarece em definitivo durante o duro processo que ela terá de passar para convencê-los a mudarem suas opiniões em uma nova votação concedida pelo chefe da empresa.

Independente das razões prévias que culminaram a toda essa situação degradante, o fato é que nada justifica as atitudes cruéis e covardes em que é submetida.

O assédio ocorre tanto verticalmente, por conta da situação ameaçadora em que seus superiores colocam ela e os demais, como também horizontalmente, quando seus próprios colegas optam por negligenciá-la na ilusão de serem beneficiados com isso.

Durante sua penosa peregrinação ela consegue despertar o arrependimento e a solidariedade de alguns e até mesmo a mudança de comportamento de outros, além de agora poder distinguir quais as pessoas em quem ela poderá confiar daquelas que um dia acreditou poder confiar. Por conta disso os diferentes interesses entram em choque, gerando uma desconfortável situação entre todos. Conforme o medo gera dúvidas futuras e alguns receios sejam inevitáveis, a personagem adentra em todas as fases que classicamente caracterizam o assédio moral propriamente dito, que são: a desmoralização pessoal, a incompreensão do estado/situação e o sentimento de impotência que culmina na total desvalorização da vida. Há ainda um momento em uma das cenas finais onde o principal assediador tenta convencê-la de que ela foi a causa de todo o caos, pois a vitória do assediador é convencer a vítima da culpa.

Portanto, mesmo sendo um drama bruto, em nenhum momento ele é explícito nessas abordagens. Os irmão Dardenne são tão sutis na condução desses temas e o roteiro é tão contundente e verossímel que é impossível não se sentir convencido de que isso é um exemplo de uma realidade que ignoramos. A filmagem com câmera a todo tempo em mãos, como um estilo documentado (mas sem aquela sensação nauseante), é bastante intimista, e junto com os planos sequencia (cenas sem cortes), que chegam a durar até impressionantes 7 minutos, conseguem aproximar muito mais o espectador aos ápices da acentuada curva dramática. Portanto, a progressão destrutiva e os constrangimentos sofridos pela personagem chegam a ser estarrecedoras.

É difícil abordar esses temas sem cair no cliché como acontece, por exemplo, em Terra Fria (North Country, 2005) título que me veio a memória agora por também tratar do trabalho exploratório e do assédio (moral e sexual) sofrido pela personagem central, mas que cai em um melodrama típico para induzir o espectador à comoção fácil muito mais do que pela condução elaborada das situações, como acontece brilhantemente aqui.

A perfeição de Cotillard é impressionante desde pequenos momentos que apenas o seu olhar expõe a felicidade das poucas vitórias que ela amargamente conquista, até naqueles em que sua postura desvanecida e cansada refletem a decepção da negação e da total descrença humana. A atriz chegou a fazer algumas cenas mais de 50 vezes, sendo 82 vezes o recorde em uma delas, nesse caso não significa incompetência, mas a busca dessa perfeição que vemos.

Por determinados pontos o tema abordado indiretamente se refere ao mesmo do longa O Reencontro (Återträffen), da artista sueca Anna Odell, que por coincidência falei a respeito em alguns posts atrás. Compreendendo-se que os dois filmes são ambientados em diferentes situações e pontos de vista, eles se complementam por mostrar a perversidade injustificável de um grupo sobre uma minoria que, além de não conseguirem se defender, passam a acreditar que são incapazes de fazê-lo. Felizmente ambos mostram que existem alternativas para a superação dessas dificuldades, e que ninguém é obrigado a guerrilhar contra elas, basta fazer novas escolhas.

Dois Dias, Uma Noite tem sido ovacionado pela crítica por onde passa, especialmente à interpretação de Marion. O filme foi a escolha oficial da Bélgica para a seleção de finalistas ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Por já ter sido lançado em território norteamericano e ser presença de festivais importantes como os de Telluride, Nova York, Chicago, dentre outros, haverá grandes possibilidades de também figurar nas demais principais categorias da temporada de premiações. É esperar para ver.

CONCLUSÃO...
Um dos melhores filmes do ano tanto pela brilhante perfomance de Marion Coutillard quanto pela abordagem de temas complexos serem desenvolvidos de maneira tão sutil que emocionam pela elaborada condução das situações ao mesmo tempo que criticam os sistemas de trabalho e fatores psicossociais agregados a eles.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O MUNDO NÃO ACABA, MAS FELIZMENTE O FILME SIM...

★★
Título: Lucy
Ano: 2014
Gênero: Ação, Ficção, Fantasia
Classificação: 14 anos
Direção: Luc Besson
Elenco: Scarlett Johanson, Morgan Freeman
País: França
Duração: 89min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma norteamericana que transportava em seu abdomem 1kg de uma droga sintética que aumenta as capacidades cerebrais do ser humano sofre uma overdose quando a bolsa se rompe e mais da metade da droga é absorvida pelo seu organismo, dando a ela 100% da capacidade cerebral e poderes para controlar o espaço, tempo e matéria.

O QUE TENHO A DIZER...
O filme é dirigido, escrito, produzido e editado por Luc Besson, diretor responsável por criar o exemplo máximo da femme fatale em Nikita (1990). Depois foi o responsável por dar o primeiro papel a Natalie Portman em O Profissional (Léon, 1994), conseguiu também transformar a modelo Milla Jovovich naquilo chamado de "atriz" no que também virou uma referência da ficça-ação científica em O Quinto Elemento (The 5th Element, 1997), e repaginou a carreira de Liam Neeson como um senhor de ação em Busca Implacável (Taken, 2008/2012), franquia que terá sua terceira parte em 2015 (embora Besson não tenha dirigido nenhum deles, apenas criou os personagens e escreveu o roteiro).

O seu sucesso como diretor o transformou mais em um grande produtor do que um grande cineasta (são 16 longas como diretor, contra mais de 100 como produtor). A fama não faz tanto jus ao talento. A maior força de Besson sempre esteve nos poucos e memoráveis personagens que ele criou, mais do que na sua capacidade como diretor ou roteirista. Isso fez dele um importante nome no cinema comercial francês e até reconhecido no mundo, mas depois de O Quinto Elemento não houve nada mais relevante ou digno de nota em sua carreira, e Lucy é a mais nova prova disso.

Colocando Scarlett Johanson de lado, pois nem sua tentativa em levar o filme a sério eleva essa ficção científica absurda, sem sentido, boba e muitas vezes pastelona, Besson nem sequer evita referências a filmes como The Matrix (1999), Sem Limite (Limitless, 2011) e 2001 (1968). Além de serem óbvias, as referências são feitas de maneira tão inferior que chega a ser ultrajante.

O diretor afirmou que o filme demorou 10 anos para ser produzido e que a idéia surgiu quando ele ficou intrigado com os 400g do cérebro da ancestral australopiteca Lucy em comparação com os 1.5kg do cérebro humano. A partir daí ele se engajou a estudar as capacidades celulares e a evolução humana e ao invés de fazer um documentário ele resolveu utilizar todo esse conhecimento para algo que ele classifica como "um filme de ação com propósito". Sabendo disso e comparando com o resultado final, não dá pra deixar o espanto de lado e acreditar que o que Besson fez é o mesmo que uma criança faz quando tenta justificar na base da fantasia algo que ela desconhece completamente, ou seja... inventa! O problema é que ele brincou com isso por 10 anos e nunca maturou a idéia.

Nada contra a fantasia e muito menos contra a ficção científica, mas Besson novamente desperdiça um material que não é de todo ruim, só que se perde por falta de um conceito mais claro e plausível como foi em Sem Limite, filme que também questionou a capacidade cerebral humana e a possibilidade de aumentá-la dentro de uma abordagem similar a de Besson, mas muito mais aceitável, e nem por isso deixou de ser uma ficção com ação e fantasia.

Para aqueles que acham que confusão é explicação, ou que a falta de explicação também já seja uma explicação, o filme tem material de sobra pra qualquer tipo de masturbação mental para perguntas com respostas sem sentido, muito diferente do que aconteceu com Matrix, em que toda a fantasia desenvolvida dá margens para perguntas lógicas que levam a algum lugar, independente de serem verdade ou não, mas coerentes. Não há nem sequer cenas de ação interessantes além de uma gangue em tiroteio, e Lucy só não para as balas no ar porque senão a cópia seria bem descarada, muito embora a impressão que temos é que isso vai acontecer a qualquer momento. O que na verdade acontece é que o próprio roteiro anula a história de construir alguma cena que valha a pena já que a personagem principal tem tanto poder, mas tanto poder que a presença de coadjuvantes é desnecessária, tanto que um deles até diz isso em um momento. Se ela quiser desintegrar o universo e criá-lo novamente ela consegue. É literalmente deus no céu e Lucy na Terra, só que ao invés de recriar o mundo em 7 minutos, ela resolve atirar pra todo lado numa violência armada tão desnecessária quanto em A Origem (Inception, 2010), aparecer em toda tela de LCD possível, salvar o mundo do mal, contribuir para a ciência (o que lhe renderia um Nobel) e transformar o mundo em um tablet gigante. E o melhor de tudo: fazer esse monte de coisa sem causar um suspiro de espanto em Morgan Freeman. Sem falar do final que é simplesmente tão ridículo quanto aquele pendrive cuspido (para não dizer outra coisa).

Arrecadou mais de US$400 milhões no mundo e isso com certeza se deve ao marketing que o vendeu como um monstruoso filme de ação, que poderia até ter todas as qualidades negativas que já tem, mas ao menos o espectador sairia feliz do cinema com cenas de tirar o fôlego. O que, claro, não acontece. A crítica em geral o favoreceu dizendo que o filme funciona graças ao talento de Besson em lidar com tanta bobagem. Eu não consigo visualizar tanta bobagem reunida como algo bom e muito menos considerar esse feito um talento. Mas concordo que é algo em que ele é bastante especialista.

CONCLUSÃO...
Acreditar que Lucy é um filme que poderá genuinamente inspirar a pensar profundamente sobre a evolução, a natureza humana e a vida é concordar que, segundo o filme, realmente mais de 90% do cérebro é inútil.
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