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sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

UM LINDO ENGANO...

★★★★★★★★★★
Título: Capitão Fantástico (Captain Fantastic)
Ano: 2016
Gênero: Drama, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Matt Ross
Elenco: Viggo Mortensen, George MacKay, Samantha Isler, Annalise Basso, Nicholas Hamilton, Kathryn Hahn, Steve Zan, Frank Langella
País: Estados Unidos
Duração: 118 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma família que mora isolada no meio das florestas de Washington de repente precisa sair de seu mundo paradisíaco para mergulhar em outro desconhecido. Ao pegarem a estrada para salvar a falecida mãe de um enterro indesejado e realizar seu último desejo, assim como ela deixou em seu testamento, um pai e seus seis filhos serão testados naquilo que é ser uma família, ou naquilo que acreditavam ser.

O QUE TENHO A DIZER...
Imagine crescer tendo aulas de ciências humanas, biológicas e exatas para compreender a vida. Saber artes marciais para auto-defesa e a usar os mais diferentes tipos de armas brancas para poder caçar sua própria comida. Ou conseguir escalar montanhas e árvores, e ter resistência física de atleta para fugir com sucesso de eventuais perigos. Também ter conhecimentos avançados de medicina para se recuperar de um imprevisto, ou botânica, para poder se alimentar daquilo que seja comestível dentre tantas que não são. Conhecer todos os mais diferentes filósofos que já existiram no mundo e já ter lido mais livros do que uma pessoa de meia idade leu em sua vida na cidade, lhe dando conhecimento suficiente para desenvolver seu caráter sem influências externas diretas. E no fim de tudo, ser um brilhante ser humano.

É o que acontece com Ben Cash (Viggo Morthensen) e seus seis filhos. Uma família naturista e erudita, que vive no meio das florestas de Washington desde quando Ben e sua mulher, Leslie (Trin Miller), resolveram abandonar a vida urbana, cosmopolita e consumista para buscarem uma melhor qualidade de vida fora de todo esse caos. Dessa forma eles teriam condições de estarem completamente presentes da vida de seus filhos, viverem exclusivamente em função deles com uma qualidade de vida própria e melhor que muita gente da cidade.

O resultado é um cenário em perfeita hamornia e coexistência com a natureza, onde qualquer pessoa imaginaria passar suas férias de verão. A maneira de viverem é tão simples e funcional que se torna mágica e ritualística, como no início do longa, ou quando seus filhos são vistos correndo pelas matas numa inesgotável energia e felicidade enquanto argumentam sobre teorias políticas e analisam capítulos de clássicos literários da filosofia em meio a canções improvisadas com os instrumentos que possuem.

Só que agora Leslie não está mais com eles. Diagnosticada com um tipo de transtorno bipolar grave, precisou sair do conforto de onde morava para ser internada e abandonar a vida bucólica e produtiva que tinha com sua família, até finalmente cometer suicídio. Sua morte será a responsável pelo choque de realidade que a família de Ben irá sofrer, pois os pais de sua falecida mulher, além de o acusarem de destruir a vida de Leslie, desejam realizar o funeral e enterrá-la dentro dos modos cristãos, enquanto ela, por ser budista, havia determinado em seu testamento que fosse cremada.

É então que, de um filme familiar e bucólico, Capitão Fantástico se transforma em um road movie por excelência, tão engrandecedor quanto é a jornada de Olive em Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, 2006), trocando-se a Combi velha por um antigo ônibus adaptado para ser um motor home, e cuja missão principal será chegar à tempo no funeral para salvar a mãe do enterro.

É durante toda essa longa viagem que grande parte dos conflitos e descobertas surgirão, principalmente porque será a primeira vez que os filhos de Ben entrarão efetivamente em contato com a sociedade da qual tanto quis protegê-los. Ele sabe que seus filhos estão preparados a tudo, já que estudaram e aprenderam incansavelmente sobre a cultura e a sociedade urbana de todo o mundo. A única coisa que ele não esperava é que a prática seria completamente diferente e que o excesso de proteção iria trazer a eles um interesse muito maior pelo mundo afora, como ficarem eufóricos ao saberem que no cardápio de um restaurante há cachorro-quente, milkshake e batata frita, ou lugares chamados de Universidades.

O diretor e roteirista, Matt Ross, afirmou que se baseou em um questionamento pessoal de como seria criar seus filhos longe das influências de uma sociedade moderna e tecnológica como é atualmente, além de algumas próprias experiências que teve na infância ao viver com seus pais em uma comunidade alternativa. Há um momento no filme em que é dito que, talvez, a família de Ben seja uma das últimas a experimentarem esse estilo de vida nativo. Talvez seja verdade, já que até os índios nativo-americanos estão em extinção. E o fato é que, querendo ou não, o que Ross criou não é apenas um questionamento sério sobre bases familiares e até onde vai os limites da constante influência dos pais sobre os filhos, mas também uma grande crítica social e anti-americana. Mas veja bem, ele faz tudo sem ser cacofônico ou pedante. Ao contrário disso, o filme é bastante inspirador e ousado.

Mesmo sendo filmes com enredos completamente diferentes, estruturalmente a quantidade de referências autobiográficas se misturam tão bem com a ficção que a atmosfera, de certa forma, tem o mesmo sentimento honesto e inocente de Quase Famosos (Almost Famous, 2000), filme de Cameron Crowe que também mistura ficção e suas próprias experiências pessoais antes de se tornar jornalista e crítico de música. No caso de Capitão Fantástico, as referências vão mais além, seja através da filosofia clássica, seja da cultura popular: de o Mito da Caverna, de Platão, até Tarzan, de Edgar Burroughs. As metáforas são as mesmas. E as sementinhas plantadas nas cabeças dos mais céticos e cosmopolitas também.

Ross realmente consegue resgatar um modo nativo-americano de vida e adaptá-lo aos dias atuais e à cultura moderna, questionando se isso seria possível nos dias de hoje. O grande medo do protagonista, e de seus filhos, é de o pai ser preso por todos viverem livremente no país. Embora a Constituição o preserve de várias maneiras, há diversas leis que proíbem e incriminem sua atitude de viver com sua família de maneira tão primitiva, principalmente com seus filhos menores de idade. Seria muito simples perder a custódia deles, ou acusá-lo de diversos crimes de abuso infantil (como seu sogro tenta fazer) por andarem armados, ou estarem expostos a constantes situações de risco. Ele faz nada além de viver com seus filhos dentro de uma cultura própria e nativa, mas por ser um cidadão cosmopolita registrado, não importa como faça, será sempre tratado como um. Então, dizer que Estados Unidos é um país livre e democrático, nessa situação, soa um tanto contraditório na realidade dos personagens.

Sabemos das intenções de Ben, compreendemos que ele, como pai, conseguiu exercer uma função educacional e familiar mais sólida e grandiosa do que qualquer família moderna. Mesmo havendo uma rigidez disciplinar praticamente militar, nem por isso seus filhos deixaram de ter suas fases desrespeitadas. As crianças ainda são crianças lúdicas, mas que não vivem em um mundo fantasioso e aliennate; os adolescentes ainda adolescentes, com vontades e curiosidades; e os jovens adultos tratados como tal em seus deveres e responsabilidades. Cada um deles uma grande e positiva contradição àquilo que é maioria das famílias norte-americanas. Mas pelo ponto de vista legal, Ben seria um alvo certeiro da Assistência Social e do infundado julgamento social.

É quando seus filhos se deparam com outras pessoas que o choque cultural é explícito, como quando todos perguntam se as pessoas em uma lanchonete estão doentes, já que todas são obesas. Embora uma situação cômica, Ross não teve intenções de tirar sarro de pessoas gordas, mas de criticar o modo de vida sedentário, oscioso e mal organizado da cultura norte-americana, coisas que não fazem parte da realidade da família de Ben. Há também o momento em que Bo (George MacKay) se encontra pela primeira vez com um grupo de garotas e não consegue dizer uma palavra sequer porque tem conhecimendo da dificuldade de comunicação e do sofrimento que é para ele não conseguir se relacionar com diferentes níveis intelectuais justamente por não ter o hábito do convívio social. A visita a um dos familiares também resume a dificuldade de comunicação e interação entre a família de Ben e os demais: a vida alienante versus a vida produtiva.

Enfim, pessoas que falam a mesma língua, mas não se entendem.

Então o julgamento social começa a tomar forma. Tachados de hippies, loucos, estranhos e esquisitos por não serem adequados numa sociedade (chamada) "civilizada", a qual, quando comparada com a família de Ben, de civilizada há nada. Até mesmo quando realizam um furto organizado. Ao invés de ser chocante e de difícil aceitação para alguns, analisando a situação no contexto do filme, a atitude passa longe de um ato criminoso, mas a concretização de um pensamento e da manutenção de uma filosofia de vida que tenta fugir do controle do consumo, tal qual querer substituir a comemoração do Natal por um outro dia fantasioso qualquer, como o dia de Noam Chomsky, uma data comemorativa que Ben resolve criar para homenagear a existência de um dos mais importantes filósofos, cientistas, historiadores, críticos sociais e ativistas políticos ainda vivos nos Estados Unidos.

Oras, qual o problema de acreditar em outras coisas e ter ideologias diferentes daquelas que a sociedade comum e urbana cresceu condicionado?

Mas se por um lado tudo parece ser um ideal fantástico, por outro a realidade se mostra bastante diferente, onde manter sua família presa em uma floresta agora aparenta apenas um ato egoísta, uma fantasia de ultra proteção na qual nenhum deles teve oportunidade de escolha, que tudo se mostra como meros devaneios tolos, ou, como o próprio protagonista diz: "um lindo engano". Ben se dá conta de que, acima de tudo, não existe uma fórmula perfeita para criar e proteger seus filhos do mundo, e que o excesso de proteção pode se tornar o mais perigoso inimigo. Por mais que o ambiente onde viviam pudesse lhe fornecer o necessário, seus filhos não poderiam ficar longe da vida urbana para sempre porque as experiências são necessárias, e a tal fórmula estará dentro de cada um para encontrar. A moral é que ninguém está errado, e só se torna errado aquele que tenta impedir, proíbir ou coíbir o direito de escolha.

Pelo seu título, Capitão Fantástico não é um filme de super-herói, mas ainda de um herói que muita gente se esquece, o da figura paterna.

CONCLUSÃO...
Capitão Fantástico é um dos filmes mais inspiradores de 2016, que consegue plantar a semente da dúvida sobre a forma como vivemos, que nos mostra que a escolha é essencial para nosso caráter, e que conhecimento nunca é demais, mesmo quando percebemos que de tudo que sabemos, nada sabemos.

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