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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

FILHA DA ANARQUIA...

★★★★★★★★★☆
Título: Rita
Ano: 2014-2017
Gênero: Comédia, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Mille Dinesen, Lise Baastrup, Ellen Hillingsø, Carsten Bjørnlund
País: Dinamarca
Duração: 50 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Uma professora dedicada não consegue ser tão dedicada assim na sua vida particular. O que ela ensina nem sempre é o que ela faz, e já passou da hora de ela aprender muitas coisas.

O QUE TENHO A DIZER...
"Sua mãe é uma das pessoas mais anarquistas que existe", é o que o ex-marido de Rita diz a seu filho em um dos episódios da primeira temporada. E sem dúvida esta é a maneira mais clara e objetiva de definir a protagonista dessa série dinamarquesa, criada, escrita e produzida por Christian Torpe, que poderia ter ficado conhecido por esses cantos se sua adaptação para a TV de O Nevoeiro (2017) tivesse sido boa, o que não foi em nenhum aspecto. O que é até espantoso, porque o material que ele criou e desenvolveu aqui é de uma sensibilidade e relevância que raramente encontramos. O sucesso da série chegou a render a mini-série Hjørdisspinoff sobre a personagem de mesmo nome que acabou ganhando imenso destaque, além das tentativas de duas adaptações estrangeiras, uma holandesa e uma francesa, tamanha a popularidade alcançada.

Para Rita (Mille Dinesen), regras e limites não são bem seus melhores amigos, principalmente se partirem da psicoterapeuta escolar. Suas transgressões tem propósitos, desde os mais justos e coerentes, até os mais inflamados e egoístas, numa rebeldia natural que dificulta a proximidade com adultos, mas que cria fortes laços de afeição com os mais jovens. E por isso que, mesmo a contragosto de muita gente, há aproximadamente 13 anos ela é considerada a melhor e mais respeitada professora da escola Islevgard, em Copenhagen. Mas ao mesmo tempo que por um lado ela deixa o caos por onde passa, por outro conquista o respeito e a admiração de muitos, os quais a enxergam como um grande agente transformador, um modelo de coragem e perseverança por justamente não ter receios de enfrentar desafios e obstáculos. Pessoas que pensam exatamente assim porque um dia já foram auxiliadas pela porção generosa e altruísta de sua personalidade, mesmo que sua ajuda não tenha sido solicitada, colocando-a em situações comprometedoras e incomodando mais gente do que deveria.

E Rita é assim mesmo, uma bonecona que fuma, bebe e não tem filtro (interessante que ela não fala palavrões), mas que possui uma descência humana e um senso de responsabilidade social que muitos outros não tem, se importanto muito mais com problemas alheios do que os seus próprios, não medindo esforços para se intrometer em um assunto quando percebe que a dignidade de alguém está sendo ferida de alguma forma. Ela não chega a ser tão autodestrutiva como a delegada Grace Hanadarko (Holly Hunter), do falecido Saving Grace (2007-2010), mas as similaridades são muitas. O que difere as duas é que Rita não é egoísta, mesmo tendo tido uma infância e uma adolescência rodeada por pessoas que não sabiam manter os valores de suas palavras. E da mesma forma como a vida foi sua melhor escola, é usando esse material que ela se impõe em suas aulas e fora delas.

A complexidade da personagem não é uma novidade. Enquanto Rita tem sua alma "anarquista", ela também impõe regras sem perceber, principalmente aos outros, no velho ditado do "faça o que digo, mas não faça o que faço", porque o maior medo dela, principalmente com seus filhos, é de se tornarem outras versões dela mesma. O próprio fato de sua maior regra de vida ser "não ter regra alguma" já faz dela uma contradição por excelência. Criar dimensões opostas de personalidade é a ferramenta mais eficiente para uma gama de infinitas situações e possibilidades, onde o personagem só terá seu momento de redenção ou resolução quando aquele que o escreve e o desenvolve decidir impor mais um lado que o outro. E a grande angústia da existência de Rita é o constante embate dela com ela mesma: sua ânsia de ser diferente, mas um excesso de cordas e amarras que interrompe o caminho a isso. Há um momento em que ela questiona Ricco, seu filho mais velho, sobre as influências que ele tem sofrido de sua mulher. Ele responde dizendo que ele quer ter essas influências porque ele quer ser diferente, e Rita simplesmente aceita, porque percebe que, no fundo, é o que ela também gostaria. Portanto, ou ela muda, ou suas dificuldades continuarão sendo as mesmas. É este o conflito central de tudo, e o conflito que ela vive há 44 anos.

É gratificante quando assistimos um filme ou uma série de televisão onde personagens sejam motivadores ao mesmo tempo que enxergamos neles nossos próprios defeitos e virtudes. Não apenas nos motivamos com as atitudes modificadoras de Rita, como também nos simpatizamos com seus erros, falhas, equívocos e acertos. Choramos, rimos, nos surpreendemos e nos revoltamos, porque a interpretação de Mille Dinesen é tão consistente e marcante como qualquer outro personagem que adoramos odiar, como Dexter, Dr. House, ou Saul Goodman. Também nos identificamos com outros personagens, como a vulnerabilidade, insegurança e fidelidade de Hjørdis (Lise Baastrup), a sensibilidade de Rasmus (Carsten Bjørnlund), ou as frustrações profissionais e pessoais de Helle (Ellen Hillingsø). O seriado oferece com esses personagens (assim como outros que surgem no decorrer dos episódios) uma experiência de não apenas conhecê-los, como também participar de um desenvolvimento progressivo e empoderador ao longo das quatro temporadas. Mérito do roteiro, de personagens extremamente bem escritos e de interpretações humanas.

Situar a história em um ambiente escolar soa muito metafórico, como boa parte do que Torpe desenvolveu faz. A noção que carregamos do período escolar ser uma das melhores fases de aprendizados e descobertas é bem explorada, mas de uma maneira tão abrangente e realista ao ponto de nunca terem a intenção de nos convencer disso. Pelo contrário, nos mostra exatamente que não é bem assim que todo mundo pensa, porque as impressões são completamente diferentes para quem sofre. E por isso as dificuldades retratadas não são feitas de maneira idealizada e dicotômica, como professores sempre batalhando contra a ignorância. Pelo contrário, todos tem defeitos. Nem todo o corpo docente é ilustre, assim como nem todo aluno é ignorante. Nem todo diretor é competente, e nem todo mundo tem boas intenções. Os entraves e obstáculos existem tanto para quem ensina, como para quem aprende.

Os esforços incondicionais de professores em querer ser uma referência importante já foi enredo em clássicos como Ao Mestre Com Carinho (1967), ou Sociedade dos Poetas Mortos (1989), este que nada mais é do que uma releitura do primeiro. E também de produtos genéricos e mais modernos, como Mentes Perigosas (1995) e O Sorriso de Monalisa (2003), igualmente releituras, adaptados para suas respectivas épocas. Todos com temáticas onde professores lutam contra a ignorância da juventude ou da sociedade para mostrar que a educação é o melhor futuro da dignidade. Com Rita isso não seria diferente, mas o cativante de sua história é o que a faz ser tão certa na sua vida profissional, mas tão errada na sua vida pessoal.

O roteiro é cheio de diálogos inteligentes e de certa forma reflexivos em situações que se articulam o tempo todo em cima de ironias. Seja a criança do comportamento adulto e do adulto de comportamento infantil, ou do tipo de adulto que uma criança gostaria de ser, a responsabilidade daquilo que passamos aos nossos descendentes é unicamente nossa, e nossas maiores falhas partem de dois principais princípios: do espelhamento de comportamento, de crianças que imitam comportamentos adultos a partir do momento que admiram um modelo, à transferência de responsabilidades, dos pais que fazem seus filhos serem aquilo que eles próprios não conseguiram ser. Duas situações discutidas com exaustão ao longo da série. Além disso, o drama também é construído em cima de sofrimentos sociais e familiares do cotidiano, não sendo à toa que assuntos como assédio moral (bullying), distância familiar, infidelidade e insegurança sejam bastante recorrentes. E embora possa soar repetitivo, se torna muito assertivo ao serem mostrados das mais variadas formas, justamente com o intuito esclarecedor e informativo. E a função de Rita nisso tudo é quebrar paradigmas, ou ao menos tentar. Como ela mesma diz, sua obrigação é salvar os filhos de seus próprios pais, já que são os adultos quem estragam as crianças. Mas como ela consegue nos convencer de que está certa quando ela mesma é o resultado de uma cascata de erros? Pelo simples fato de ter plena consciência de cada um dos erros que comete e não se envergonhar de expô-los em momento algum.

Rita é uma comédia dramática que não usa o humor para aliviar o drama, mas para complementá-lo, e mostrar os lados agridoces e amargos de sua vida sem qualquer rodeio. Os episódios são construídos em cima de temas, como uma aula a ser desenvolvida, e tudo acontecerá em torno daquele assunto do dia, seja de maneira literal ou metafórica. Pode parecer um pouco forçado, mas funciona no propósito de construir uma discussão produtiva, com prováveis morais a serem compreendidas pelo espectador. E embora a vida da protagonista seja uma coletânea de traumas e erros muitas vezes até involuntários, existe um otimismo confortante por trás disso tudo que parte justamente de sua total ausência de medo de tentar, além dos episódios nunca se extenderem nos dramas, sempre interrompendo no momento que a gente pensa que poderia ter um pouquinho mais, mas se assim fosse, perderia completamente sua essência, que é ser duro, seco e emocionalmente limitado como sua personagem.

É um dos melhores seriados na Netflix e que ninguém fala a respeito. Complicado quando percebemos que o público definitivamente está condicionado apenas àquilo que os algorítmos e hashtags propõem, e como também dificilmente não consumimos produções de outras nacionalidades não porque as outras línguas soam estranhas, mas porque não ser em inglês soa estranho. É claro que o fato de ser em uma língua totalmente diferente significa ter uma perda de conteúdo muito grande com diálogos informais que não fazem sentido se traduzidos literalmente, ou piadas que não teriam qualquer coerência nas legendas, mas de qualquer forma, absorver um conteúdo diferente daquilo que estamos habituados engrandece nossa capacidade de observação.

Com mudanças bruscas nos acontecimentos e na estrutura narrativa para preencher buracos e responder dúvidas das temporadas anteriores, a quarta temporada encerra os quatro anos de existência do seriado. É a mais fraca e óbvia de todas, mas esclarecedora o suficiente para complementar muito daquilo que já imaginávamos, mas não tínhamos certeza. Torpe oferece uma conclusão justa e coerente, uma resolução satisfatória com toda a jornada da personagem que finalmente aprende com as surras que a vida lhe deu, e literalmente com a surra física e moral que leva de Hjørdis em um dos momentos mais emocionantes da temporada (e talvez esperada por muita gente).

Um misto de sensações e emoções viciante e que nos mostra pontos de vista sobre a vida de forma bastante única, fugindo da estética norteamericana de se construir uma narrativa, sendo cativante unicamente por ser simples e respeitoso, sem apelações ou sensacionalismos. Se a quarta temporada foi realmente a última, sua conclusão foi sincera e otimista o suficiente como ela nunca escondeu ser, mas também nunca se obrigou a ser. E para aquele que se deixar conquistar por Rita, o velho e conhecido sentimento de vazio, de estar órfão de um seriado e de uma personagem tão inspiradora como ela é, será inevitável.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

SÓ VALVERDE PRA SALVAR...

★★★★☆☆☆☆☆☆
Título: Amor.com
Ano: 2017
Gênero: Comédia, Romance
Classificação: 12 anos
Direção: Anita Barbosa
Elenco: Isis Valverde, Gil Coelho, Joaquim Lopez, Carol Pontes, João Cortês, César Cardadeiro, Alexandra Richter
País: Brasil
Duração: 90min.

SOBRE O QUE É O FILME?
As idas e vindas da relação de dois produtores de conteúdo: ela sobre moda e beleza, e ele sobre jogos eletrônicos.

O QUE TENHO A DIZER...
Amor.com é um comédia romântica bem fraca, uma daquelas com os direitos comprados pela Netflix para preencher a cota de produções nacionais exibidas no serviço, já que passou praticamente despercebida pelo cinema, por razões óbvias.

O filme de estréia da diretora Anita Barbosa parece uma daquelas produções da Globo Filmes que foram engavetadas porque o produto final conseguiu estar aquém daquilo de pior que a empresa já costuma produzir no gênero, e como parece de praxe ir pra mesa da Netflix tudo que um dia já esteve no lixo de algum lugar, não é à toa que essa produção terceirizada agora leva o carimbo do serviço.

Com predominância de atores "globais" e com aquela velha mania de enfiar participações especiais de gente que nada tem a ver com nada na idéia de que um nome famoso atraí mais público do que talento, o perfil de comédia de situações barata está lá o tempo todo. Desde a imagem lavada e do perfeccionismo amador dos cenários, até o elenco coadjuvante e de apoio bastante ensaiado, nada contribui para tirar a sensação de um produto feito especificamente para a televisão, uma característica que diminuiu bastante na última década. Com o avanço tecnológico e a exigência do público pela qualidade, cada vez mais aquele abismo existente com o cinema diminuiu, ao ponto da diferença entre um e outro ficar apenas em pormenores técnicos. Então, quando um filme como esse tem uma qualidade tão inferior ao ponto de explicitamente parecer um produto de televisão nos dias de hoje, é porque a produção é muito barata mesmo, em todos os sentidos, chegando ao quase desleixo.

A história é atual, e pega o momento em que a mídia encontrou um novo nicho de subcelebridades, aqueles os quais ela titula como "influenciadores digitais", um nome genérico para tirar de cada um deles a alcunha de "youtubers", mesmo sendo daí que eles tenham surgido em sua grande maioria. Vloggers, bloggers, podcasters... os tipos mais comuns deles. Hoje em dia tem sido muito frequente o número de casais que se formam a partir de canais digitais, assim como tem sido a tendência de muitos canais também introduzirem seus cônjuges em suas vídeo-postagens para explorar a imagem do casal perfeito e, assim, ampliarem sua área de contato com o público.

A idéia do filme parte daí, tendo como par romântico uma produtora de conteúdo que fala sobre moda e beleza, e um que fala sobre jogos eletrônicos, os dois maiores segmentos em constante crescimento nos canais digitais, grupos que tem movimentado milhões anualmente.

Katrina (Isis Valverde) é uma garota bonita, bem vestida, simpática, educada e que leva seu trabalho a sério porque abraçou a responsabilidade que sua influência tem em milhões de pessoas que a seguem. Comedida em absolutamente tudo e completamente preocupada com sua imagem, monitorando 24h as postagens e os comentários que fazem sobre ela, a personagem é até bem construída nesse aspecto, pois conseguimos entender de maneira bastante simples todas as razões que a motivam a se comportar da maneira como se comporta, muito além da aparência fútil e materialista que ela possa demonstrar por viver em um mundo tão supérfluo. Por outro lado temos Fernando (Gil Coelho), que é completamente o oposto de seu interesse romântico, e de igual forma, o personagem raramente sai de sua unidimensionalidade. O que Katrina tem demais, Fernando tem de menos, e por incrível que pareça, mesmo sendo muito mais formal, ela ainda tem menos preconceitos do que ele.

Ao mesmo tempo que os personagens tentam reproduzir o comportamento genérico de pessoas que fazem o mesmo que eles na vida real, eles também não deixam de ser sátiras por conta do exagero comportamental e do excesso da caricatura daquilo que cada um representa, porque o apelo cômico fácil tem que existir, como o padrão da comédia nacional exige. Tudo um condensado de situações banais, uma Zorra Total na vida de dois jovens influentes da geração digital.

O que faz o casal protagonista ser cativante é que os atores conseguem dar mais profundidade a eles do que o próprio roteiro, mesmo quando Gui Coelho exagera nos comportamentos e caretas. Na verdade, a impressão que se tem é que muito do que eles fazem dá mais certo por improvisos do que por um texto que sequer existe, sensação muito mais presente nas cenas de Isis Valverde, que tem como uma das mais brilhantes qualidades nunca parecer que leva um texto ao pé da letra, seja na televisão ou no cinema, o que sempre faz transparecer um nível de realidade e comprometimento muito maior da sua interpretação por conta de uma qualidade simples: carisma.

Valverde é, sem dúvida, um dos grandes talentos atuais. Para quem assistiu seus trabalhos em mini-séries como O Canto da Sereia e Amores Roubados, ou até em novelas como Avenida Brasil e A Força do Querer, sabe que a garota é versátil e consegue vagar entre o drama e a comédia de maneira quase brilhantes, trazendo uma humanidade tão cativante aos personagens ao ponto de parecerem verdadeiros, como no momento em que recebe a notícia de que uma provável foto nua esteja sendo compartilhada por aí. É uma situação que não teria a menor obrigação de exigir de qualquer ator uma interpretação digna de nota numa produção como essa, mas ela o faz mesmo assim, e entre olhos que naturalmente expressam o pânico em lágrimas que brotam de desespero, ela ainda consegue manter o ritmo cômico sem deixar a peteca cair. Cena simples como diversas outras, mas que funcionam unicamente por autonomia dela, já que até direção a gente percebe que o filme não tem por menos que alguém possa saber o que um diretor faz.

É ela quem consegue ofuscar todos os mais diversos defeitos do longa, e de uma personagem que parecia linear demais, da metade do filme em diante ela consegue transformar toda a porcaria em sua volta com muito charme e técnica. Aliás, nem digo técnica, pois nem a vejo interpretando em cima disso, mas com naturalidade nata, ao ponto de até mesmo o previsível monólogo final não parecer artificial como uma moral pronta, mas um relato doído, magoado por um mundo de aparências e malícias que não sabe mais diferenciar a ficção do fato, ou o virtual do real. 

Em alguns momentos existe a tentativa de discutir de maneira até interessante alguns aspectos relacionados aos grandes problemas que a era digital trouxe consigo, como a perda da privacidade, a ultra-exposição e a vulnerabilidade das pessoas através das dificuldades que o casal passa a enfrentar conforme a relação progride, ao ponto do estopim parecer até banal, que será uma foto absolutamente inocente publicada numa rede social, mas que reflete de maneira bastante sucinta como a sociedade se tornou banal de igual forma.

A idéia não é de toda ruim, mas sua execução foi simples demais para algo simples demais, um susto quando descobrimos que o roteiro foi escrito por três pessoas. Por isso a tal sensação de desleixo, de algo planejado às pressas, como um condensado de um folhetim que nunca vingou, se ancorando em um público imediatista, que já perdeu há tempos a noção de qualidade daquilo que assiste justamente por estar agora mergulhado apenas naquilo que o YouTube pode oferecer. Um filme muito mais interessado em mostrar as dezenas de vloggers que fazem pequenas pontas na história do que em contar tudo de maneira mais fluida e comprometida. Talvez se tivesse sido desenvolvida em um outro formato, como uma mini-série ou uma série limitada, essa sensação de um mero pão-de-ló não fosse tão presente, e aí sim essa estrutura narrativa de situações e causalidades faria mais sentido, e Valverde daria conta da mesma forma como conseguiu não fazer deste filme um total desastre.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

A VIDA DEPOIS DE QUEER AS FOLK...

★★★★★★☆☆☆☆
Título: Looking: The Movie
Ano: 2016
Gênero: Drama, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Andrew Haigh
Elenco: Jonathan Groff, Frankie J. Alvarez, Murray Bartlett, Lauren Weedman, Russel Tovey
País: Estados Unidos
Duração: 85 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
A conclusão da série da HBO que conta a história de três amigos gays em busca de seus sonhos e realizações.

O QUE TENHO A DIZER...
A maioria dos seriados ou filmes com temáticas homossexuais comumente são abusivos nos clichés. Claro que a série da HBO não seria diferente, mas o que a salvou foi não ser apelativa em nenhum momento como foi a exagerada ostentação da adaptação norteamericana de Os Assumidos (Queer As Folk, 2000).

Queer mostrava uma realidade distorcida e estereotipada das piores formas possíveis, em que todos os homens gays deveriam ser lindos, influentes e só se relacionarem com gente linda, terem corpos sarados, usarem roupas de marca com os melhores perfumes e frequentar baladas gigantescas dia e noite sem parar, com muita droga e sexo explícito se possível. Não que isso não acontecesse na vida real, mas a fantasia que o seriado criou se tornou algo questionável quando se inflou de tal forma na imaginação coletiva ao ponto de influenciar muito daquilo que a cultura gay se tornou no começo deste século em diante. Hoje em dia tudo pode soar muito natural e comum, mas no começo de 2000 o que víamos eram pessoas querendo ser os personagens, num comportamento que foi se reproduzindo assexuadamente e absorvido por osmose ao longo dos anos sem as pessoas sequer perceberem que elas se transformaram naqueles personagens. Claro que havia um ou outro personagem mais centrado e comportadinho, mas quando o seriado começou a soar fútil por demais, passou a abordar temas mais chocantes para trazer uma certa seriedade até patética, como o abuso de drogas, homofobia e o HIV. Mas nada disso importava, o que o público queria mesmo era conhecer um Brian num cavalo branco pra uma boa sacanagem e ter uma Babylon só sua.

9 anos depois do fim de Queer As Folk, Looking navegou completamente para o lado oposto disso tudo. Criado por Michael Lannan a partir de um curta metragem que ele mesmo havia feito em 2011, o tema central foi a busca de três amigos gays pelos seus mais diferentes sonhos e realizações na cidade de San Francisco. Como dito, embora os clichés existam, as atuações são convincentes, assim como as situações e os interesses. Não somos obrigados a acreditar no que está acontecendo, nós simplesmente acreditamos porque o tom é coerente com aquilo que os personagens estão vivendo naquele momento e lugar. Claro que eles são estereotipados, como o nerd ingênuo e solteiro, o artista liberal, o narcisista, a amiga hetero expansiva e o latino romântico. O que traz profundidade a cada um deles é que a busca de cada um por aquilo que acreditam é sincera e faz parte do cotidiano universal de uma cultura movida a regras e quesitos.

A realidade também é muito mais tangível. Dos atores com belezas mais comuns até as baladas alternativas que os personagens frequentam sem medo algum de se misturarem na diversidade de tribos. Ninguém é rico, ninguém frequenta restaurante caro ou se veste como catálogo de revista. Até mesmo as músicas são completamente o oposto da cultura house e club que se criou com Queer As Folk. Aqui o som é sofisticado e bem escolhido, que migra entre os diferentes estilos da melhor forma possível e em sintonia com a história.

A relação entre os personagens e a química entre os atores foi o grande atrativo de uma série que nunca teve tramas muitos profundas ou extensivamente dramáticas, e nunca se dispôs a idéias megalomaníacas. Era simplesmente o retrato da vida comum de um produtor de jogos eletrônicos, de um artista plástico e de um chef de cozinha, episódios curtos e leves com temas simples e emocionalmente honestos ao ponto dos episódios mais parecerem o documentário do dia a dia de três amigos do que um drama de situações. Abordagens mais realistas e humanas, como é da filosofia das produções originais da HBO (com excessão das fantásticas, como True Blood, Westworld, ou Game Of Thrones).

Cancelado depois de duas temporadas devido a queda de audiência, foi com uma petição online criada pelos fãs da série que a HBO aprovou a produção de um episódio especial em formato de longa metragem para dar um final conclusivo à série. A primeira temporada chamou a atenção justamente por não focar em uma única trama e abordar diferentes assuntos de maneira generalizada. Mas a segunda temporada caminhou um pouco para o óbvio quando se apropriou do cliché romântico ao dar atenção exagerada no conturbado triângulo amoroso criado em torno de Patrick Murray, o protagonista interpretado por Jonathan Groff antes de ficar famoso com Mindhunter, o hit da Netflix de 2017.

Claro que é possível notar as influências de Sex And The City no material de Lannan, principalmente nessa tentativa de transformar Patrick em uma versão masculina, insegura e auto-vitimizada de Carrie Bradshaw, o qual não importa com quem esteja, onde esteja e o que esteja fazendo, acabará sempre sendo o centro da atenção e de um problema. Isso não ofuscou os outros personagens, mas tirou deles melhores desenvolvimentos e conclusões.

É aí onde o longa igualmente peca. A história tem continuidade aproximadamente um ano após Patrick ter rompido com Kevin (Russel Tovey) e voltado a morar em Denver, assunto do último episódio da segunda temporada. Patrick agora retorna a San Francisco para o casamento de Augustin (Frankie J. Alvarez), reencontrando seus outros amigos e, obviamente, seus ex-namorados. Mas aquilo que era para ser uma celebração da superação de perdas e da maturidade, como o começo do longa promete, aos poucos começa a dar espaço para o mais do mesmo, com conflitinhos românticos, dúvidas sentimentais e a velha premissa de que apenas somos felizes e completos se estivermos acompanhados de um grande amor. Tanto que Dom (Murray Bartlett) é terrivelmente criticado quando afirma estar bem sozinho.

Novamente, tudo muito parecido com o triângulo Carrie-Aidan-Big e a tudo aquilo que fez de Carrie a rainha do drama e do exagero, reproduzido em igual proporção em Patrick. De Dom e Augustin, pouco ficamos sabendo de suas vidas além de diálogos muito rápidos e situações muito sucintas que esclarecem que o restaurante de Dom está dando certo e Augustin agora é um homem mais decidido e menos conturbado, tanto que vai casar. E só. O restante são apenas questionamentos banais do protagonista, discursos indulgentes tirados de livros de auto-ajuda e algumas tentativas frustradas de conciliação. Há muita volatilidade e distimia para um único personagem em apenas 85 minutos sobre uma visita de apenas 2 dias. Patrick é um personagem perdido por excelência, que sempre inventa desculpas a si mesmo para não encarar a sua própria realidade, que pula de um ex para outro, escolhendo aquele que lhe ofereça a melhor proposta, às vezes apelando no sentimentalismo para impedir os outros de seguirem suas vidas e assim beneficiá-lo com isso, como ele faz com Richie (Raul Castillo), quando este revela que pretende se mudar de San Francisco e Patrick apela dizendo que voltará a San Francisco, como a obriga-lo a ficar. Uma atitude bastante previsível para quem acompanhou a série e já conhece esse lado um tanto manipulador do personagem sempre que está sozinho. Que Patrick era egoísta, já sabíamos, mas o longa, como um encerramento da história, perdeu a oportunidade de criar uma redenção ao personagem sobre este que foi sempre seu grande defeito.

A existência da série foi válida. Uma pena que não teve a popularidade que poderia ter tido justamente por ter estreado numa época um pouco errada, na qual a cultura gay se firmava no auge da sua ostentação e da liberdade sexual. O imediatismo das relações criadas por aplicativos levou as pessoas a uma certa alienação social, e de repente um seriado surgir nesse meio tempo querendo abordar assuntos e discussões cotidianas que tentam fugir da banalidade acabou soando desinteressante e um pouco fora de época, ao invés de ser visto como uma dura realidade a ser relevada.

Infelizmente o filme não conseguiu dar continuidade ao bom desenvolvimento que as duas primeiras - e únicas - temporadas tiveram, nem como um último episódio. Ele encerra a história, mas não satisfaz como poderia. O que o salva do pior é que, surpreendentemente, a direção é de Andrew Haigh, o mesmo do intenso 45 Anos (45 Years, 2015), e em Looking ele consegue igualmente o mesmo feito: atingir a emoção do espectador em cheio ao captar os mais sutis momentos dos personagens. O comprometimento dos atores por seus papéis também é digno de nota outra vez, tão forte que o sentimento é genuíno e real, e a respeito disso, não há o que se falar mal, todos fizeram tudo muito bem e de uma maneira tão cativante que até deixa saudade do seriado.

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