Translate

quinta-feira, 28 de maio de 2015

VAMOS JOGAR UM JOGO...

★★★★★★★
Título: O Jogo da Imitação (The Imitation Game)
Ano: 2014
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Morten Tyldum
Elenco: Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode, Mark Strong, Charles Dance
País: Reino Unido, Estados Unidos
Duração: 114 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um matemático, suposto ser o melhor do mundo, é contratado pela inteligência britânica para integrar uma equipe delegada a descobrir como decodificar as mensagens criptografadas pelos nazistas durante a segunda guerra.

O QUE TENHO A DIZER...
No começo do filme, Alan Turing, interpretado por Benedict Cumberbatch, diz que falamos coisas enquanto pensamos outras na intenção de que os outros adivinhem o que realmente queremos dizer, e que ele simplesmente não consegue entender esta linguagem confusa. Essa idéia se repete na segunda metade do filme, quando Alan observa seu colega de trabalho decifrar os "códigos" e a "linguagem corporal" da garota com quem flerta, enquanto era muito mais fácil algum dos dois se dirigir diretamente ao outro e colocar claramente suas intenções. É o significante e o significado. As dificuldade de Alan em compreender as manobras linguísticas que o ser humano utiliza para driblar a verdade ou a literalidade justificam a grande facilidade e preferência que ele tinha com números e letras, pois a linguagem com estes símbolos é clara e óbvia.

A maneira um tanto filosófica como este pensamento é posto no filme, além de ser uma das poucas em que funciona como uma ação de efeito sem parecer forçada ou cliché, também encaixa-se perfeitamente no contexto lógico do matemático, resumindo perfeitamente a maneira simples e primitiva como as máquinas "pensam", que embora primitiva, ainda é a forma como elas são construídas até hoje. Tanto é assim que um computador não consegue entender um comando caso ele não seja executado com precisão. Até mesmo os complexos códigos binários dos serviços de busca, como o Google, não retornarão informações precisas caso não sejam solicitadas buscas da maneira correta. É assim como Alan se comporta quando seus colegas indiretamente o convidam para lanchar, pois dizer que irão lanchar é diferente de convidar para lanchar e dizer para alguém que está com fome é diferente de perguntar se está com fome.

O título se refere ao famoso Teste de Turing, teste o qual todo o recente filme Ex_Machina (2015) é baseado e brilhantemente executado, comentado no post anterior. Neste teste, um humano deve interagir com uma fonte de inteligência e depois avaliar se era uma máquina ou um humano. Ele é positivo se a pessoa considerar que a interação foi humana quando, na realidade, ela foi artificial.

Apesar do filme tratar desse tema, ele não é tecnológico como o filme de Alex Garland, pelo contrário. Até porque a história se passa na década de 40, época em que a máquina decodificadora projetada por Turing foi o primeiro esboço daquilo que viria a ser os computadores. O fato é que o roteiro de Graham Moore, baseado no livro de Andrew Hodges, irá tratar muito mais da humanidade que se perdeu há muito tempo e deste grande e complexo sistema chamado comunicação.

A dificuldade de Alan de se comunicar e de explicar em palavras suas idéias é o que gera repulsa e desconfiança por parte de seus superiores e demais colegas, mas ninguém tentou compreendê-lo da forma como ele realmente é, com excessão de Joan Clarke, interpretada decentemente por Keira Knightley. É no momento que ela o ensina a ser mais simpático e carismático, como a política social convencional manda, que os demais personagens percebem que Alan não é um monstro arrogante e egocêntrico como acreditavam, mas um ser humano excêntrico, com uma cabeça que se organiza de forma confusa e compreende as coisas de maneira bastante particular, simples e até primitiva, como sua máquina, o que o caracteriza como um ser humano genuinamente ingênuo e fará com que muitas pessoas se aproveitem disso.

Esse "jogo da imitação" terá vários significados no filme, desde a interação entre Alan e as outras pessoas, assim como dele mesmo com a própria máquina que criou. Enquanto a maioria dos demais personagens tratam Alan como uma máquina ou um objeto, ele por sua vez tratará sua máquina como uma pessoa. A máquina se chamará Christopher, em referência ao primeiro grande amor do personagem. Esta construção feita por Moore é um dos pontos mais altos do filme e que, assim como em Ex_Machina, indiretamente nos mostra que o teste inventado por Turing chega a ser positivo até mesmo para ele, o próprio criador.

A fidedignidade do filme com a história real é bastante falha e controversa. Obviamente houve uma dramatização muito maior tanto na esquizitice do personagem quanto de sua relação com Joan. Além dos fatos não terem ocorrido na cronologia histórica correta. Há também erros científicos como a programação da máquina pela busca de palavras chaves ter ocorrido depois que ela já estava em funcionamento. Na realidade, a máquina desenhada por Alan, bem como qualquer processo de decodificação, necessita obrigatoriamente de simbolos chaves comuns para que o processo seja bem sucedido. O filme também mostra um Alan Turing com claros sinais de Asperger, um tipo de autismo, quando fontes próximas ao verdadeiro Alan informaram que, embora ele tenha sido uma pessoa bastante particular, ele era muito sociável e dotado de um excelente humor, algo que pessoas com esta condição não possuem.

De qualquer forma o roteiro desenvolve muito bem a história e seus personagens, pecando apenas nos coadjuvantes que fazem parte do núcleo do protagonista, onde alguns deles não tem suas funções muito definidas na história, aparecendo e saindo de cena apenas para complementar o cenário. Cumberbatch, junto com Michael Keaton, era o mais cotado para o Oscar 2014, mas nenhum dos dois levou o prêmio. A competência do ator é inegável, a sofrida solidão, a ingenuidade inerente e a dificuldade de compreender a linguagem dos homens sensibiliza profundamente, até mesmo em momentos dramáticos um pouco exagerados que já chegamos a ver em alguma telenovela por aí. Isso talvez seja culpa do rosto forte e com traços bastante expressivos do ator, que não precisa de muito para chamar a atenção e ser impactante.

Mas o que mais impressiona, no mau sentido, é a direção do norueguês Morten Tyldum, que havia dirigido antes o excelente e engajado Headhunters (2011). Embora grande parte do filme se mantenha sempre numa zona segura e bastante limitada, há erros de continuidade e até mesmo eixo de ação invertido, o erro mais clássico de todos, no momento em que Alan está à mesa, sendo interrogado pelo delegado. O erro foi tão grosseiro que é nítida a tentativa de conserto ao espelharem a imagem para fingir que ela está no eixo correto, mas a franja muito bem definida de Benedict Cumberbatch condena a evidente confusão.

Apesar de alguns erros até grosseiros e uma dramatização dos fatos muito maior do que deveria, ainda sim consegue ser emocionante por conta do domínio de Cumberbatch em cena e a honestidade com que ele conduz as situações. Excluí-se a ficção e temos uma história bastante impressionante, não apenas por Alan ter sido visionário e pioneiro no desenvolvimento da alma de um computador e a importância que essas máquinas tem em nossas vidas atualmente, mas também pela perseguição que sofreu por ser homossexual, onde ignoraram completamente a importância que ele teve durante a Segunda Guerra simplesmente por um julgamento social infundável que o levou a cometer suicídio em 1954.

O filme termina de forma até brilhante, afirmando que Turing teve uma importante participação no fim da Segunda Guerra e que isso foi tardiamente reconhecido, e que após a queda do nazismo, a Grã Bretanha condenou mais de 49 mil homossexuais por sua sexualidade. Ou seja, lutaram contra o nazismo, mas perpetuaram o crime humano de outras formas.

CONCLUSÃO...
Não chega a ser um filme tipicamente histórico, mas que desenvolve entre boas doses dramáticas e exageros ficcionais algumas idéias sobre como os homens se relacionam entre si, como a comunicação se tornou complexa e como cada vez mais precisamos de máquinas para interceptar e facilitar esta relação. Além da crueldade humana, da indiferença e do completo julgamento aleatório. A manutenção da violência enquanto ela nos engrandece, como bem é dito durante o filme.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

O PRIMEIRO GRANDE FILME DO ANO...

★★★★★★★★★☆
Título: Ex_Machina
Ano: 2015
Gênero: Drama, Suspense, Ficção
Classificação: 14 anos
Direção: Alex Garland
Elenco: Domhnal Gleeson, Oscar Isaac, Alicia Vikander
País: Reino Unido
Duração: 108 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Sobre um rapaz que irá participar de um fascinante e complexo experimento no qual deverá interagir com uma inteligência artificial em forma de uma mulher.

O QUE TENHO A DIZER...
Caleb (Domhnall Gleeson) é um programador que trabalha numa grande empresa chamada Blue Book, a maior e mais importante ferramenta de pesquisa existente, o equivalente ao Google ou Facebook. Ocorre um sorteio interno na empresa, cujo prêmio será passar uma semana com o todo poderoso Nathan (Oscar Isaac), o gênio recluso por trás da criação e do sucesso de toda a companhia.

A mansão subterrânea de Nathan é também seu escritório de trabalho, por onde monitora meticulosamente todas as atividades da empresa e cada um da extensa lista de funcionários. É também seu laboratório particular de experimentos, criação e desenvolvimento de novas tecnologias. Bastante iluminada e automatizada, fria e sem qualquer personalidade, essa atmosfera pálida onde tudo é geometricamente definido muito se assemelha com a fotografia de A Pele Que Habito (La Piel Que Habito, 2011), de Pedro Almodóvar, cuja artificialidade gera um incômodo constante. É preciso permissão de acesso para qualquer parte do grande complexo que se molda perfeitamente dentro da própria natureza sólida e gélida onde está localizada. É como se Nathan não acreditasse no ser humano de alguma forma, mantendo distância por não saber se relacionar com ele.

Quando Caleb chega, Nathan até tenta tratá-lo com informalidade para "quebrar o gelo" do primeiro contato, mas a austeridade patronal e a frieza de tudo, inclusive dele mesmo, impedem uma aproximação mais calorosa e receptiva. Para piorar as coisas, Caleb é induzido a assinar um contrato de confidencialidade sobre tudo que ver, ouvir, ler ou acessar durante os sete dias que estiver hospedado lá. É então que ele descobre que sua função é participar de um experimento dentro do Teste de Turing, que é interagir com uma máquina e avaliar se ela realmente possui inteligência artificial ou não.

E então nos é apresentado Ava, uma fembot, ou seja, um robô com características e personalidade feminina que fala, ouve, vê, interage, dialoga, pensa e tem sentimentos. Ava é uma mistura de Andrew, de O Homem Bicentenário (1999), com Samantha, o sistema operacional de Ela (2013), de Spike Jonze. E ao mesmo tempo que ela tem a ingenuidade de David, de A.I. (2001), o sentimento de que a qualquer momento ela se volte contra alguém é inevitável, tal qual a atitude de Hal em 2001 (1968), de Kubrick.

Ava possui uma inteligência artificial fluida, responsiva, distinta e adaptável, "como se ela pensasse antes de dizer algo", como diz Caleb em um determinado momento. Isso acontece porque Nathan criou o cérebro artificial reunindo todas as informações de busca realizados na Blue Book, pois as ferramentas de busca são mapas de como as pessoas pensam. É como se Ava tivesse um Google dentro de sua cabeça, agindo de forma às vezes impulsiva, às vezes responsiva, imperfeita, padronizada e caótica, tal qual a forma como as pessoas fazem suas pesquisas. Ou seja, uma justificativa simples sobre a forma de Ava pensar, mas ao mesmo tempo sólida e absolutamente coerente com a nossa realidade.

Caleb fica fascinado com a criação de Nathan, o que é obviamente fascinante por si só tamanha a perfeição. Mesmo visualmente simples, todo o conjunto funciona. Os efeitos especiais que dão o visual tecnológico, mas ainda orgânico, nunca atrapalham essa simplicidade principalmente porque Alicia Vikander não atua com movimentos mecânicos ou clichés, como Schwarzenegger em Exterminador, mas limitadamente, num controle físico e expressivo surpreendente, como que movida a impulsos eletrônicos.

É impossível não se sentir atraído por Ava, tanto pelo que ela é quanto pelo que ela faz. Confinada em um quarto, limitada apenas àquele ambiente como um computador em uma mesa cuja função é estar sempre à disposição de seu usuário, ela tem um rosto, tem expressões faciais, vocais e corporais, e por isso conseguimos enxergá-la como uma pessoa, e nos sensibilizamos com as angustias das quais ela está programada a sentir, sendo a solidão a maior delas. Sim, nos sentirmos sensibilizados por ela nos dar essa sensação de que também fazemos parte do mesmo teste pelo qual Caleb passa, e isso é um dos elementos mais interessantes e também impressionantes do filme.

A trama toma outro rumo quando, durante uma queda de energia do complexo, seguros de que não estavam sendo observados, Ava pede a Caleb que não acredite em tudo que Nathan diz. A partir daí o protagonista deixa de ser uma peça passiva da história para definitivamente agir nela. Ele é tomado por paranóias, que se intensificam na medida que o sentimento de confinamento aumenta e a sensação de ser apenas mais uma peça do experimento fica cada vez mais evidente.

Dirigido e escrito por Alex Garland, o filme segue uma linearidade e uma coerência quase perfeitas. Garland já foi responsável pelo roteiro de três filmes do cineasta Danny Boyle: A Praia (The Beach, 2000), Extermínio (28 Days Later, 2002) e Sunshine (2007). Ex_Machina é o primeiro que dirige em sua carreira, e o faz muito bem, tanto que ele consegue esse raro fenômeno de manipular o espectador e literalmente enfiá-lo dentro da história como um diretor veterano poderia fazer.

Ao contrário da impressão que passa pela forma como foi promovido, como um thriller intenso sobre a relação homem/máquina, o que vemos de fato é um filme bastante equilibrado em todos os quesitos, que ao contrário de simplesmente contar uma história, ele dialoga com seu espectador e o insere na mesma situação que o protagonista se encontra. Garland primeiro nos apresenta os ambientes e os personagens, depois ele nos abraça de forma envolvente com a fluidez da trama, e apesar do final ser até previsível, não é previsível o caminho até ele. Acima de tudo é um filme humano dentro da frieza de seu contexto, que explora as essências mais complexas da solidão e da necessidade de afeto, como isso tem refletido no avanço tecnológico e como cada vez mais tentamos inserir essas necessidades naquilo que podemos utilizar no cotidiano, como uma forma de compensar a falta da proximidade e da relação humana.

É claro que cada um dos personagens irão nos surpreender em seus determinados momentos porque Garland desenvolve com clareza a personalidade de cada um, sendo compreensível o que cada um deles faz, e os motivos que os levam a agir de formas tão diferentes.

Por um lado há Caleb, um jovem extremamente ingênuo, bondoso e solitário. Por todas essas características que ele tem, ele é facilmente manipulável. Depois há Nathan, que tem um pensamento extremamente científico, que analisa e quer dados empíricos sobre aquilo que desenvolve, pouco se importando com os meios utilizados para o fim esperado. Se Ava é um robô ou não, se tem sentimentos ou não, ou se Caleb é um ser humano frágil, ele pouco se importa. O que Nathan quer saber é se o objetivo de transformar Ava no mais humano possível, ao ponto de nem mesmo um humano conseguir distinguir a diferença, foi alcançado. A verdade é que ele consegue atingir esse objetivo porque Caleb responde a Ava como se ela fosse realmente uma humana. Nós, espectadores, respondemos como se ela fosse humana. Até mesmo Nathan, em alguns breves momentos, mostra que isso atingiu ele próprio sem ele mesmo perceber. As breves reações de raiva ou impaciência de Nathan, ou a busca pelo afeto que ele demonstra em algumas partes (e que não cabe dizer em quais circunstâncias para não estragar as surpresas), já demonstram por si só que até mesmo ele se confunde com sua própria criação. E são nesses momentos que o Teste de Turing se comprova definitivamente positivo, já que uma das características para isso é a interação entre o homem e a máquina sem que o homem perceba isso.

Aí temos Ava, cujos sentimentos, sensações, frustrações, desejos, vontades, aspirações e demais sensações aleatórias, existem dentro dela. A forma dela de racioncinar é baseado unicamente como uma barra de pesquisa do Google. Ela raciocina em cima do raciocínio de pesquisa das pessoas. Então ela vive em um conflito constante sendo um robô, mas pensando como um humano; sendo um robô, mas tendo sentimentos; sendo robô, mas com vontades de descobrir o mundo, tal qual o mito da caverna, de Platão.

É necessário compreender que, apesar dos antagonismos levarem a história para um final um tanto óbvio, o importante é que não existem vilões na história. Não existe bem ou mal, porque existem três pessoas e três personalidades agindo não por instinto, mas em cima daquilo que elas acreditam. Caleb tenta proteger Ava a todo instante; para Nathan, Ava é apenas mais um produto em teste; Ava luta para sobreviver, tal qual um humano faria.

O desenvolvimento do filme fecha em um ciclo perfeito. A construção é lenta e prende a atenção porque queremos saber qual será seu fim. As referências, principalmente à mitologia Grega, como o de Prometheus e a mitos, como o já citado de Platão, são sutis, mas presentes de maneira pontuada e proposital. Não empolgará como um filme de ação ou um thriller intenso, mas ele nos leva a uma jornada de conhecimento que mostra que a própria evolução do ser humano é perigosa para ele mesmo.

Claro que não se pode deixar de notar uma certa metáfora existente sobre o controle de informação que a internet gerou e o poder que ela concentrou a algumas corporações. Se começarmos a associar o nível de informações que o Google ou o Facebook tem de todos seus usuários e as mudanças que ocorreram recentemente, como a forma como eles respondem e interagem às pesquisas de seus usuários sobre aquilo que buscam no cotidiano, isso tudo é apenas o princípio daquilo que é Ava propriamente dita. Então, de certa forma, os detentores dessas informações se transformaram nos novos exploradores de petróleo, como diz o próprio Nathan. Eles podem agir da forma que quiserem com você, e você irá interagir, irá acreditar e será manipulado por eles da mesma forma como os personagens neste filme manipulam e são manipulados.

O filme teve um orçamento de US$11 milhões. Por ter uma narrativa incomum ao gosto popular, até que tem se saído bem, arrecadando mais de US$19 milhões em seis semanas de exibição, com média 8 no IMDb baseado na avaliação de mais de 43 mil usuários cadastrados até o momento. Isso significa que a probabilidade de ele ser lembrado nas premiações será grande, porque sem dúvida é o primeiro grande filme do ano e figurará na lista dos melhores.

CONCLUSÃO...
O primeiro grande filme do ano. Com um desenvolvimento que se fecha em um ciclo perfeito. A atenção dada aos mínimos detalhes deste longa o transformaram em uma jornada fascinante e ao mesmo tempo assustadora sobre os avanços tecnológicos e quão longe pode ir o controle da informação, no qual estamos todos vulneráveis.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

O MILAGRE DA CRIAÇÃO...

★★★★★★
Título: Grace And Frankie
Ano: 2015
Gênero: Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Jane Fonda, Lily Tomlin, Martin Sheen, Sam Waterston
País: Estados Unidos
Duração: 29 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Grace e Frankie são duas rivais que são obrigadas a aceitar um fato comum entre elas, o anúncio de seus maridos de que eles estão apaixonados um pelo outro.

O QUE TENHO A DIZER...
Jane Fonda, é Grace, repetindo mais uma vez o papel de aristocrata egocêntrica e egoísta. Lily Tomlin é Frankie, repetindo mais uma vez o papel de mulher excêntrica e espiritualizada. A história começa com as duas se encontrando em um restaurante, e a primeira impressão é óbvia: elas se odeiam. Por qual motivo, não sabemos, só sabemos que é assim. Ambas esperam seus maridos chegarem, e acreditam que o jantar tenha a ver com alguma reunião de negócios, já que os dois são amigos há anos e possuem investimentos juntos. Sol e Robert chegam ao restaurante, interpretados respectivamente por Sam Waterston e Martin Sheen. Assim que eles entram em cena não demora muito para que ambos peçam o divórcio. O fato é que eles são amantes há 20 anos, dos 40 anos que estão casados com suas respectivas esposas.

Claro que o choque é inevitável por várias razões. Primeiro porque é inesperado ver Martin Sheen em um papel como esse, ator que interpretou papéis extremamente masculinizados ao longo da carreira. Segundo, e o mais importante deles, é a situação constrangedora em que os dois colocam suas esposas, como que a dizer que metade da vida que passaram juntos foi uma grande farsa.

Não deve ser fácil para ninguém ter de engolir a seco o fato de que a pessoa com quem se viveu por 40 anos dedicou metade desse tempo em uma vida paralela. Independente da sexualidade ou com quem isso foi feito, o sentimento de impotência e de traição é o mesmo. E a traição aqui não é simplesmente aquela situação casual que poderia eventualmente ocorrer em uma relação tão longa como a dos protagonistas, mas da falta de diálogo, da honestidade, da sinceridade e da confiança que deveria existir em uma parceria tão longa. E foi essa a forma e o tom com que a situação foi abordada. Nem Grace, nem Frankie, apontam com discriminação ou preconceito sobre a verdadeira sexualidade de seus esposos, a indignação e a revolta que toma conta de todos é única e exclusivamente sobre nunca terem prestado atenção em suas relações ou nunca terem se aberto o suficiente para que esta notícia não tivesse demorado 20 anos para ser dada. Isso sem dúvida deixará uma sensação um tanto alcalina entre os casais que assistirem ao seriado, pois irão, em algum momento, mesmo que em silêncio, se questionar se eles realmente conhecem um ao outro como acreditam.

Sim, esse teor satírico sobre os rumos que uma relação de longo termo acaba tomando é um dos pontos fortes desse novo original da Netflix.

A princípio não há muito para se julgar, pois as situações e diálogos são sempre momentâneas, nada que se aprofunde em algum passado, com excessão de um ou dois episódios. Para um seriado de comédia, não há risadas genuínas nos primeiros minutos do primeiro episódio, algo que não se espera quando se reune duas atrizes deste calibre em um gênero como esse. Mas até aí tudo bem porque é um produto Netflix, e como tudo é liberados de uma vez, não há necessidade de impressionar e atirar para todos os lados logo nos primeiros episódios. O grande problema surge quando os episódios vão indo embora, mas a sensação de ser sempre o primeiro não acaba. Parece que não desenvolve nunca.

Criado por Marta Kauffman e Howard Morris, essa comédia diferenciada tenta aproveitar um grupo de atores experientes que andavam bastante subaproveitados por já terem passado dos 60 anos e, ao mesmo tempo, ser uma aposta da companhia de agradar o público mais maduro que assina seus serviços e que está carente de produtos equivalentes em todos os lugares.

O problema aqui é que Marta Kauffman, que também assina o roteiro, tem uma bagagem muito diferente. Suas experiências e habilidades como criadora e roteirista de sitcoms renomadas como Friends ou Veronica's Closet por vezes não se encaixam nessa produção justamente porque o formato é completamente diferente do que ela está acostumada.

Sitcoms, embora também gravadas em estúdio, são geralmente feitas ao vivo para uma platéia real responsável por dar o feedback imediato aos atores e roteiristas de que o material funciona ou não. Então, se acontece de haver alguma entrada errada ou piada mal colocada, o roteiro sofre readaptações até de última hora, coisa que não é possível em um roteiro fechado, como é aqui. E Kauffman na verdade passa a impressão de ter escrito este seriado para uma platéia que faltou, e isso a deixa muito tempo perdida no resultado, e no mesmo fica o espectador.

Nos primeiros episódios as piadas ou diálogos engraçados soam arrastados, como que esperando aquele "saco de risadas" das sitcoms que nunca acontece, gerando um vácuo desagradável. Os diálogos por vezes não são fluidos, e a espontaneidade da lugar a situações marcadas, carentes de uma direção dinâmica que condiziria melhor com a experiência que os atores possuem, principalmente Lily Tomlin, que de longe tem a veia mais cômica de todos eles. Para quem conhece os trabalhos da atriz, a princípio pode até acreditar que ela esteja "enferrujada" ou pouco à vontade, mas essa impressão acaba quando Kauffman finalmente relaxa e os personagens começam a ganhar vida própria. É quando acontece o "milagre da criação" e tudo flui como deveria ter sido desde o princípio.

Se por um lado o roteiro acertou deste o princípio na forma até honesta, delicada e moderna com que toda essa bagunça sentimental dos personagens é lidada, por outro não foi tão feliz nesse desenvolvimento lento. Mais que lento, acretido que tenha sido um desenvolvimento perdido, daqueles que os roteiristas não sabem bem que rumo dar à história ou aos personagens, e subitamente, como em um desbloqueio criativo, todo o universo se abre para eles. Tanto é assim que de repente os personagens, tanto principais quanto coadjuvantes, deixaram de ter conflitos aleatórios e rivalidades desnecessárias, mesquinharias dos primeiros episódios que mais incomodavam do que geravam interesse.

O seriado na verdade deveria levar os nomes de Robert e Sol, já que esses personagens são muito mais interessantes juntos do que a pseudo-rivalidade entre Gracie e Frankie parecia ser. Na verdade, eles poderiam muito bem ter um show só deles. A decisão do casal vivido por Sheen e Waterston de finalmente assumirem sua relação e sexualidade na terceira idade é, de longe, o tema melhor desenvolvido, além do conflito de terem escondido isso por tanto tempo ser muito mais interessante pelo ponto de vista deles do que delas. Até as situações e a química entre os dois atores é muito maior e naturalmente cômica quando, por um lado, há o romantismo e a sutileza de Sol, e por outro a natural rispidez e seriedade de Robert, o qual supreende quando extravasa suas liberdades sexuais em alguns breves momentos de espontânea delicadeza.

Mas claro que a relação das protagonistas também é interessante. Embora as duas tenham 70 anos de idade, de muitas coisas da vida elas se esqueçaram nos últimos 40 anos, como, por exemplo, viver fora da bolha familiar que estavam. Tudo agora será uma redescoberta, como voltar à adolescência. Soferão de paixões, redescobrirão o sexo e cometerão erros típicos de uma época que se apagou com o tempo. Trocarão confidências, farão fofocas e machucarão umas às outras sem intenções, ao mesmo tempo que o próprio tempo mostra cada vez mais que definitivamente o que elas precisam é uma da outra.

É evidente que o seriado não foi polido da mesma forma como ocorreu com os outros originais dramáticos da Netflix. Talvez isso tenha acontecido pela falta de produtos originais cômicos no serviço e a pressa de produzi-los agora, o que é normal, só não pode se tornar um hábito.

Esta nova produção definitivamente não é de toda ruim. Consegue ser leve e divertida. Acima de tudo, é agradável. Uma pena que ela demora muito para encontrar seu tom e os personagens finalmente terem suas personalidades exploradas além do superficial. Como dito, é quando o roteiro deixa a pretensão de lado que tudo passa a fluir. Isso é evidente a partir do quinto ou sexto episódio, quando aqueles raros momentos genuinamente engraçados dos primeiros episódios vão dando lugar para um bom humor cotidiano simples e que funciona. Nada de sarcasmos ou exageradas ironias, a impressão que se tem é que Kauffman e Morris finalmente sacaram que a grande virtude do que criaram é a pura simplicidade.

Ainda que não seja um seriado que realmente prenda a atenção e que faça o espectador devorar tudo em uma única tarde, a árdua tarefa de se arrastar pelos primeiros episódios é compensada por uma repentina magia que toma conta de tudo depois. Os ajustes demoraram para aparecer, e agora que apareceram, que sejam mantidos assim para uma provável segunda temporada.

CONCLUSÃO...
A proposta desse mais novo original da Netflix é interessante, mas derrapa e se arrasta nos primeiros episódios por conta de uma falta de identidade. É quando os roteiristas evidentemente relaxam que o texto flui e o "milagre da criação" finalmente acontece, aquele em que os personagens parecem ganhar vida própria, os atores finalmente se interagem como deveriam e o humor genuíno simplesmente brota sem esforço. Então tudo toma uma outra forma, uma outra cor, e uma simplicidade tão deliciosa que, perto de tanta pretenção atualmente no cinema e na televisão, assistir algo simples é mais que bem vindo.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

VIDA IMITANDO ARTE...

★★★★★★
Título: Bridegroom
Ano: 2013
Gênero: Documentário
Classificação: 14 anos
Direção: Linda Bloodworth-Thomason
País: Estados Unidos
Duração: 68 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
As dificuldades de Shane Bitney Crone em participar do velório de seu namorado e companheiro de seis anos por falta de respaldo legal, já que foi impedido pela família de seu noivo de comparecer por ser gay.

O QUE TENHO A DIZER...
A idéia do documentário surgiu após Shane Bitney publicar um vídeo no YouTube que se tornou viral, até hoje visto por mais de 5 milhões de pessoas, sem contar as repostagens do vídeo por outros usuários. Entitulado It Could Happen To You, a intenção foi homenagear um ano da morte de seu companheiro, Thomas Bridegroom. Foi então que Linda Bloodworth-Thomason propôs realizar um documentário em longa metragem para se aprofundar na história do casal, e a arrecadação teve início no Kickstarter, recebendo mais de US$300 mil em doações, se tornando o documentário que mais arrecadou fundos públicos até hoje.

O longa começa esclarecendo como aconteceu o trágico acidente. O jovem de 29 anos caiu do alto de um prédio de quatro andares por pura desatenção. Fotografando sua amiga durante a noite, às vésperas de anunciar seu noivado com Shane Bitney, ao dar alguns passos para trás, nenhum dos dois percebeu que ele já estava próximo ao parapeito. Então ele caiu.

Foi uma tragédia simples assim. Um acidente cuja probabilidade de acontecer era a mínima possível, mas aconteceu por uma daquelas razões que a vida não consegue explicar, numa ironia da vida que imita a arte que se encaixaria perfeitamente no filme Magnolia (1999), principalmente porque Shane havia pedido alguns momentos antes a Tom, via iMessage, que ele ficasse longe do parapeito. Ouvimos uma inserção do chamado de emergência e logo após Shane aparece em um vídeo pessoal contando sobre as similaridade de ambos. Ele está em prantos, lembrando da música de Garth Brooks que mais gostavam e que se tornou a música "deles". É triste, e a mesma dor sentimos nós que assistismos, claro que não na mesma intensidade. A situação parece cafona e um tanto forçada, mas o sentimento de Shane é genuíno e profundamente sentido, como um buraco sem fundo e nem começo.

Esse início não deixa de ser emocionalmente tendencioso, e já sabemos logo de cara que a função primária do documentário será sensibilizar seu espectador para desarmá-lo o mais breve possível para que a história dos dois seja contada sem a interferência de prováveis preconceitos. E assim tudo é conduzido.

Shane narra cronologicamente diante das câmeras sua infância e adolescência, a dificuldade em aceitar sua sexualidade, o assédio que sofreu na pequena cidade onde morou até o momento em que conheceu Tom. Há declarações de seus pais, amigos e demais pessoas que o amam incondicionalmente e que presenciaram suas crises de pânico, sua profunda depressão e finalmente a sublime felicidade do seu primeiro amor e os seis anos que seguiram.

Realmente, não há como não se sentir impotente diante de uma infância como a vivida por ele e imaginar os prováveis traumas ainda carregados por conta disso. A dimensão se torna muito mais assustadora ao pensarmos que muitas outras pessoas passaram pelo mesmo, e ainda passam. Mas também somos reconfortados por termos a oportunidade de ver que, apesar de breve frente ao tempo de toda uma vida, ele foi recompensado com um amor puro e genuíno, ainda mais nos dias de hoje, em que tudo parece tão efêmero, vazio e esquecível.

Por mais triste que tenha sido sua infância, e por mais dolorosa que tenha sido sua adolescência, a narrativa já havia mostrado logo no início o pior que está por vir. Além da morte de seu noivo, a proibição da família de Tom de que Shane participe dos funerais simplesmente pelo fato dele ser gay é, dentre todas as coisas pelo que ele passou, talvez a mais desrespeitosa delas. A falta de consideração e sensibilidade dos pais do falecido é o que mais choca não apenas o jovem, mas também o espectador, por conta da frieza e calculismo com que fizeram tudo.

Como se nenhum sofrimento fosse o bastante, ele chegou a ser fisicamente ameaçado pelo seu sogro, e para evitar maiores problemas, optou por nada fazer. Sem qualquer respaldo legal, Shane estava à deriva, e presenciou o velório e o enterro por uma distância tão longa que mal pode enxergar o que acontecia. Para concluir seu processo de luto, teve de fazer o seu próprio velório simbólico à parte, com seus amigos. Nada poderia ter sido mais indigno que isso. 

O que torna o documentário algo profundamente verdadeiro e emocionalmente devastador é exatamente os seis anos de relação que Shane e Tom tiveram de constante alegria, sonhos a serem realizados e um amor que muita gente acredita existir apenas no cinema. De repente tudo isso é interrompido precocemente, sem uma causa mais óbvia do que um acidente puramente banal. O sentimento fatalista é inevitável, e embora essa história tenha um teor muito parecido com o filme Direito de Amar (A Single Man, 2009), de Tom Ford, aqui ela não é uma ficção baseada em um livro, mas um fato real contado e documentado por uma pessoa que agora carrega uma profunda cicatriz, juntamente com diversas outras.

Sem dúvida, o excesso de sentimento peca na falta de um conceito mais sólido. O documentário foi promovido tal qual sua sinopse, como uma tentativa de compreender ou minuciar a falta do respaldo legal frente a situação vivida por Shane. Ao invés de uma busca por soluções, o que assistimos de fato não é bem isso. A diretora poderia ter desenvolvido uma discussão paralela sobre quais alternativas Shane poderia ter tido, ou o que ele poderia ter feito mesmo sem apoio legal. Um esclarecimento sobre quais as leis existentes (ou a falta delas) que dificultavam este acesso e quais mudanças deveriam ocorrer seria crucial para que o documentário cumprisse sua função social esclarecedora e modificadora. Relatos de casos similares teriam sido, sem dúvida, importantíssimos para fortalecer dados estatístico que anulasse a idéia de que este é um caso isolado.

Logo, o que vemos são 68 minutos de uma bela história de amor muito bem desenvolvida por conta do vasto acervo pessoal de imagens e vídeos que o casal colecionou ao longo dos anos. Nada que saia da zona de segurança de uma biografia qualquer, ao contrário do vídeo de 11 minutos feito pelo próprio Shane Bitney para o YouTube, que mesmo curto e amador consegue ter um apelo social muito mais forte e condensado do que este longa.

Sensibilizar o espectador é a regra que rege em qualquer documentário dramático, e embora este material celebre a espiritualidade humana e o amor incondicional acima de qualquer coisa, esta celebração também poderia ter sido muito bem aproveitada se circundasse um contexto mais social do que a superfície.

Como a própria bisavó de Shane diz, esta história não é de Romeu e Julieta, mas sim de Romeu e Romeu, e as pessoas devem aceitar isso.

Mas o que fazer ou como fazê-las aceitar deveria ter sido um excelente propósito final do material.

CONCLUSÃO...
Apesar de ser muito mais uma biografia do que um documentário, sim, ainda é muito triste a forma como a sociedade recrimina e discrimina a homossexualidade de forma tão abusiva e chocante. O assédio sofrido por jovens homossexuais traz consequências psicológicas desastrosas, já que a vítima observa a velocidade com que as portas se fecham ao seu redor e não encontra nenhuma outra saída além do seu próprio isolamento. Há a perda de tudo. Da esperança, da juventude, da autoconfiança e, principalmente, da ingenuidade de uma descoberta sexual que não pode ser culpada de existir e acontecer. Muito menos podem ser culpadas as pessoas que passam por isso. É cruel a forma como o ser humano se presta ao trabalho de reduzir a vida alheia na primeira oportunidade possível, ao invés de valorizá-la e parabenizar o próximo por estar vivo, por fazer suas próprias escolhas e buscar a felicidade à sua própria maneira. Ao menos se respeitassem o sentimento mútuo de duas pessoas, algo que nem isso ocorre na maioria das vezes, nem mesmo durante o luto.

terça-feira, 5 de maio de 2015

A VIDA POR SI SÓ...

★★★★★★★★
Título: Life Itself - A Vida de Roger Ebert (Life Itself)
Ano: 2014
Gênero: Documentário
Classificação: 14 anos
Direção: Steve James
País: Estados Unidos
Duração: 120 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
A trajetória de Robert Ebert, de um jornalista para um dos mais célebres críticos de cinema do mundo.

O QUE TENHO A DIZER...
Todos nós somos críticos. Todos nós criticamos algo a todo instante. Não é necessário articulação para opinar sobre algo, e opiniões sólidas nem sempre precisam de valores técnicos, apenas observação. Há valor na opinião leiga, desde que esta seja sensível o suficiente para notar as nuances, mesmo não sabendo como explicá-las tecnicamente.

Para todo bom amante de filmes que se preze, Robert Ebert pode ser considerado um ícone com bastante folga. O jornalista norteamericano, que com apenas 21 anos já era editor de um jornal em Illinois, se transformou, por acaso, em um dos mais célebres críticos de cinema não apenas dos Estados Unidos, como também do mundo.

Segundo ele mesmo afirma no documentário dirigido por Steve James, esse acaso aconteceu quando o editor Robert Zonka ofereceu-lhe a função depois que Eleanor Keane deixou a redação do Chigago Sun-Times, em 1967. Ebert, com 25 anos, já era um escritor respeitado, autoritário e até arrogante, agia assim justificavelmente para impor seu trabalho acima de sua idade. Aceitou o convite e se dedicou integralmente, largando até a faculdade para concentrar seus esforços no trabalho.

"Eu nasci dentro do filme da minha vida... Não sei como entrei nele, mas ele continua me divertindo".

Esta é a frase que efetivamente abre o documentário sobre sua pessoa, e as reticências usadas talvez seja uma alusão às pedras que cruzam os caminhos durante nossa trajetória de vida. Misturando a difícil e particular realidade com o bom humor, ironias como esta marcam consideravelmente a grande personalidade de um homem que, apesar de sempre ter feito questão de dizer que era vencedor de um prêmio Pulitzer, nunca deixou de ser humano e acessível. E também são ironias como essa na qual todo o trabalho de Ebert se justifica, cujas críticas iam além das minúcias técnicas para baseá-las na própria vida como ela é, e nos sentimentos mais profundos que afloravam em cada cena, sequência, trilha sonora ou demais outros fatores que constróem a estrutura de um filme e a conexão emocional dele com as pessoas. Uma linguagem às vezes simples e sensível, sem deixar de ser observadora e verdadeira.

Suas críticas chamavam a atenção por serem simples e certeiras, que transformavam até os filmes mais comuns em obras de arte, e que mesmo quando devastadoras, conseguiam ser generosas. "Condenavam e ajudavam", como afirmou Scorcese sobre o crítico. Ebert tratava filmes como um padrinho, e repreendia diretores tal qual um sobrinho mal educado. Isso em uma época que escreviam críticas aqueles jornalistas que tinham assistido algum filme naquela semana, tudo feito com distância e sem comprometimento para aquilo apenas para preencher a coluna no jornal, tanto que os textos eram assinados por pseudônimos generalistas, como Mae Tinee, do jornal Tribune, pois sua pronúncia lembrava "matiné", e não porque era alguém de fato.

Esse comprometimento de Ebert foi o que chamou a atenção dos leitores. E o que fez dele um grande crítico foi o fato da facilidade que ele tinha em escrever muito bem e gostar do que fazia. Escrever e assistir filmes podia ser uma profissão, mas acima de tudo era um prazer pessoal ao ponto do insubstituível. Escrever o transportava para um mundo particular que lhe dava prazer pela vida e o ajudava a superar dificuldades. E assim foi até dois dias antes de sua morte, no último post que publicou antes de findar seu ciclo no dia 04 de Abril de 2013, por falência múltipla de órgãos, aos 70 anos.

Barbara Heliodora afirmou em uma entrevista para Ana Paula Conde que, para ser um bom crítico, em primeiro lugar, tem que adorar aquilo que irá criticar. Ela disse que o percentual de espetáculos ruins que via a cada ano era tão alto que, se ela não adorasse aquilo, já teria largado a profissão há muito tempo porque, às vezes, era um sacrifício ficar sentada na cadeira.

Barbara era uma crítica de teatro, mas a observação feita é universal, assim como é universal quando a mesma também disse que não é verdade que crítico gosta de falar mal porque não existe motivo para gostar de assistir coisas ruins. O problema está no desleixo e na falta de comprometimento, o "tanto faz" ou a idéia arrogante que alguns diretores tem de que são experientes o suficiente para sairem ilesos de defeitos. Se para ela isso não cabia no teatro, acredite, isso também não cabe no cinema.

E era exatamente desta forma como Robert Ebert se comportava em suas críticas. Acima de tudo, Ebert sabia distinguir os propósitos. Ele não fazia comparações discrepantes entre filmes e estilos, sabia que existia uma relatividade nisso. Cada um deles era direcionado para um público distinto, com propósitos distintos, e suas observações respeitavam isso.

Sem dúvida ele mudou a forma de se criticar o cinema e citações adjetivadas que hoje vemos frequentemente em cartazes, logo acima dos títulos, como "DELICIOSAMENTE INTELIGENTE", "PROFUNDAMENTE EMOCIONANTE" ou "BRUTALMENTE INCOMUM", são derivações que se tornaram corriqueiras depois dele, pois passaram a expressar poeticamente sentimentos comuns e mistos que os filmes sempre proporcionaram, mas pouca gente soube expor. Foi ele também quem popularizou, juntamente com seu colega Gene Siskel, o hoje tão conhecido "thumbs up", a marca registrada da dupla ao classificar um filme. Se era bom, polegares para cima, se era ruim, polegares para baixo.

A subida de Robert do posto de um crítico respeitável para uma celebridade com uma estrela própria na Calçada da Fama aconteceu quando resolveram juntá-lo com seu rival (e quase arqui-inimigo), Gene Siskel, também crítico do jornal Tribune, para apresentarem um programa semanal sobre cinema na emissora local, o que não demorou muito para ter excelente repercursão.

A união dos dois foi proposital e provocativa, com intenções apelativas já que a rivalidade de ambos era conhecida publicamente. Porém, o que ninguém esperava é que, com o tempo, eles descobriram que tinham muito mais em comum do que imaginavam, e embora a rivalidade sempre existisse, ela passou a ser muito mais uma rotina do amor fraternal e incondicional que nasceu, cresceu e se desenvolveu do que uma mera incompatibilidade geniosa de fato. Foi essa conflituosa relação de amor e ódio que fez tudo dar certo, até mesmo em momentos errados. A irredutibilidade de Siskel e a arrogância de Ebert tiveram um perfeito encontro que durou 24 anos, até a morte do colega e amigo em 1999.

"Para mim, o cinema é como uma máquina que gera empatia. O faz compreender um pouco mais sobre diferentes esperanças, aspirações, sonhos e medos. Ajuda você a se identificar com as pessoas que partilham dessa mesma jornada". É assim como se resume a sensibilidade crítica e artística que transcendiam sua personalidade humana e democrática.

É bem isso que vemos no terço final do documentário, quando o diretor infiltra mais ainda, e com sutileza, na vida pessoal e nas dificuldades que o crítico passou nos últimos anos em consequência a um câncer de tireóide que resultou em diversas cirurgias radicais debilitantes. E apesar de tudo, a positividade e esperança presentes em sua personalidade chegam a ser emocionalmente sinceras e relevantes, capazes de transformar corriqueiras insatisfações do dia a dia em episódios insignificantes que insistimos em deixar que nos atinja gratuitamente e tome um precioso tempo de nossas vidas.

Sem dúvida o material reunido por Steve James é honorável. Intimista sem ser invasivo sobre a vida de um homem que conseguiu mostrar que não é preciso sofisticação e requinte para atrair até mesmo aqueles que pouco se interessam pelo assunto, mas que a linguagem universal do cinema se resume na sensibilidade, no prazer pela vida e na sinceridade e respeito naquilo que se faz e pelas pessoas com quem se convive.

Claro que teria sido interessante se o documentário também tivesse focado um pouco mais nos trabalhos de Ebert, nas repercussões e consequências deles para o cinema atual, já que tanto ele, quanto Siskel, passaram a ser temidos pelos produtores e diretores de Hollywood. Mas talvez isso seja material para outro trabalho. E por que tanto o documentário quanto o livro de Ebert se chama Life Itself, como questiona o próprio diretor ao crítico?

A vida por si só já é a resposta.

CONCLUSÃO...
O cinema e a vida se conectam, e por mais que filmes sejam um reflexo da realidade, isso não significa que eles devam ser brutais. A única coisa que deve espelhar a realidade é a nossa face, em relação ao nosso coração. E essas são palavras baseadas naquelas ditas pelo próprio Robert Ebert.
Add to Flipboard Magazine.