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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

DESPERDÍCIO DE TALENTO...

★★★
Título: The Calling
Ano: 2014
Gênero: Suspense, Drama, Policial, Crime
Classificação: 14 anos
Direção: Jason Stone
Elenco: Susan Sarandon, Ellen Burstyn, Gil Bellows, Topher Grace, Christopher Heyerdahl, Donald Sutherland
País: Estados Unidos
Duração: 108 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma detetive de uma pequena cidade de Ontario, no Canadá, se vê envolvida em uma série de assassinatos cometidos com base em uma oração católica perdida a séculos baseada na ressurreição.

O QUE TENHO A DIZER...
É a estréia do produtor Jason Stone na direção e também estréia do roteirista Scott Abramovitch no cinema, e é baseado no livro homônimo de Inger Ash Wolfe, que na verdade é o pseudônimo do escritor Michael Redhill. É o primeiro de três livros de uma série de suspense policial que o escritor publicou sob este nome, todos envolvendo a detetive Hazel Micallef como personagem principal. O quarto livro está programado para ser lançado em 2015.

A produção pequena e a história que envolve um serial killer não chega lá a ser algo muito interessante além de  bastante batida no cinema. Obviamente o grande elenco chama a atenção com Susan Sarandon no papel principal novamente fazendo uma detetive, novamente fazendo uma alcólatra, novamente fazendo uma viciada em analgésicos e que novamente tem um passado com uma dolorosa perda. quatro tipos muito recorrentes em sua carreira só pra citar apenas algumas das características de uma personagem que, na verdade, não tem nada de diferente de nenhuma que ela já interpretou no passado. Claro que ela sempre faz tudo muito bem, mas aquela sensação de talento desperdiçado realmente é inevitável. Chega a dar até pena. Ellen Burstyn faz o papel de sua mãe, uma juíza aposentada e que é de pouco para nada relevante em toda história além de jantar sozinha, dormir no sofá e criar um conflito dramático desnecessário e pouco esclarecido com a personagem de Susan.

O filme é bastante fraco até mesmo no suspense, e nem é por falta de talento do elenco ou da direção, mas porque a história realmente é muito rala, nem mesmo um roteiro com maior intensidade conseguiria melhorar o resultado desse thriller policial que, além de tudo, insiste em misturar os crimes com misticismo, religião e crenças, beirando a idiotice clichê. Uma bobagem que poderia até ter impressionado uma meia dúzia lá na década de 90, mas hoje em dia não serve nem pra filme de televisão.

CONCLUSÃO...
Infelizmente não há o que dizer. Tudo é muito fraco, previsível e decepcionante. Um total desperdício de talento dos atores, e do tempo e da paciência do espectador. Esquecível, e vai passar batido no cinema. Com certeza no Brasil sairá diretamente para home video, se sair.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

BRILHANTE CONCEITO...

★★★★★★★★★☆
Título: O Reencontro (Återträffen)
Ano: 2013
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Anna Odell
Elenco: Anna Odelle, Rikard Svensson
País: Suécia
Duração: 88 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
No reencontro do grupo escolar 20 anos após de formados, Anna não foi convidada. Ela faz um filme simulando o que poderia ter acontecido caso tivesse ido, e qual teria sido as reações de seus ex-colegas ao discursar sobre as impressões que tinha sobre aquela época e convida todos, individualmente, para assistirem.

O QUE TENHO A DIZER...
O Reencontro é a estréia da controversa artista sueca Anna Odell como diretora, roteirista e atriz. Artista que incialmente chamou a atenção em 2009 quando um dos seis vídeos do ousado projeto Mulher Desconhecida 2009-349701 se tornou uma grande polêmica no seu país depois que fingiu ser uma psicótica que tenta cometer suicídio na ponte Lijeholmsbron, em Estocolmo. Ela foi interceptada e internada na ala psiquiátrica, mas no dia seguinte revelou que era saudável e que tudo foi parte de uma encenação de um projeto artístico. O trabalho foi um importante material para Anna analisar o comportamento das diversas estruturas de poder na saúde, da visão e das pessoas frente os mentalmente perturbados, além do papel de vítima impingido ao doente e o papel da imprensa, já que ela foi acusada de ter resistido violentamente à prisão e agredido membros do corpo de saúde, o que posteriormente foi provado ter sido especulação midiática. Isso não impediu que, mesmo assim, Anna fosse condenada a pagar 50 dias de multa por falsidade comportamental e atentado à ordem.

A biografia da artista mostra uma infância não muito fácil de assédio moral e físico em uma época em que o termo bullying não era moda. Hoje, adulta e com todos os traumas já superados, utiliza essa bagagem como conceito artístico de observação do comportamento e relações. Portanto, a idéia original de seu novo projeto surgiu quando ela teve conhecimento de que haveria um reencontro de 20 anos do seu grupo escolar. Ela intencionava levar um discurso pronto para realizar durante o encontro e falar sobre o tratamento diferenciado e abusivo que sofreu de todos eles por 9 anos e registrar as reações comportamentais de seus ex-colegas após serem confrontados com este passado. Porém, alguns dias depois recebeu uma notícia de uma amiga informando que a reunião já havia acontecido, que todos haviam sido convidados, menos ela.

A princípio ela ficou chateada por seus planos não terem dado certo para aquela situação específica, mas foi então que resolveu iniciar um processo de seleção de atores para filmar uma simulação deste jantar vislumbrando o que poderia ter acontecido caso tivesse sido convidada e discursado como pretendia. O discurso utilizado na simulação é, segundo ela, o mesmo que ela teria usado na realidade, e o roteiro, bem como o comportamento de cada ator em cena, foi desenvolvido durante o processo de filmagem em conjunto com cada um deles. Segundo Anna, os atores relataram suas próprias experiências na época de colégio e muitos deles se enquadravam perfeitamente em algum patamar da hierarquia comportamental existente nesses grupos. A partir dessas experiências particulares e a visão que a artista criou sobre como deveria ser o comportamento de cada um deles enquanto adolescentes, os personagens foram criados.

Depois de especificado os atores e seus respectivos personagens, o arco dramático da narrativa foi desenvolvido e os ensaios começaram. Ao contrário do que comumente é feito, nenhum ensaio foi baseado nas cenas da simulação do reencontro porque a artista não queria que os atores se estabelecessem em uma zona de conforto. Então eles se reuniam, conversavam, se relacionavam e criaram vínculos dentro dos personagens para que a sensação de interação e amizade entre eles fosse o mais legítimo possível. Por ser também a diretora do filme, ela achou importante distanciá-los dessa imagem dominadora que ela pudesse passar, logo, nesses encontros, todos foram orientados a tratá-la com diferença e inferioridade, para que pudesse ser estabelecido o domínio que eles deveriam ter sobre Anna Odell enquanto atriz e personagem, o que ela faz muito bem em sua estréia, diga-se de passagem. Este excelente trabalho preparatório sem dúvida resultou em um nível de "genuinidade" evidente e o curso dramático se torna muito mais intenso e chocante por isso e também pelo alto nível do elenco.

Esta primeira parte do filme que segue na simulação deste reencontro, impressiona por erguer grandes questões sobre o assédio e também sobre a hierarquização que se estabelece nos grupos envolvidos, bem como na falta de atenção, despreparo e muitas vezes cumplicidade de terceiros sobre a opressão e discriminação daqueles que não se enquadram em um padrão pré-determinado e aleatório. A maneira inconveniente que a artista escolhe para confrontar tudo isso neste material fictício a coloca em constantes situações autodestrutivas, desconfortáveis e constrangedoras que em um primeiro momento sensibiliza o espectador, mas quando ela insiste no ataque e causa a revolta dos demais, ela deixa de ser uma vítima para se tornar a causadora de suas próprias consequências. Isso inverte a situação e, sem perceber, o espectador também se volta contra ela e se sente em uma posição assediadora tanto quanto os outros. Quando o espectador percebe isso (se percebe), ele se constrange por compactuar com essa covarde brutalidade. É aí que o grau de gravidade e da falta de indulgência se escancara aos olhos, ficando nítido que, embora hoje já adultos, as atitudes ofensivas incoerentes, infantis e gratuitas ainda permanecem as mesmas quando não há consciência dos atos.

A segunda parte do filme é quando Anna se mostra como mulher e artista segura, já reconhecida pelos seus trabalhos anteriores e, como diz um de seus colegas, ela agora está acima desta hierarquia, e mesmo que alguns deles não percebam isso, quem está na posição de dominação agora é ela. Ela entra em contato individualmente com cada um de seus ex-colegas propondo um encontro para a exibição da simulação do reencontro, que ela apresenta apenas como sendo "um filme sobre a época de colégio". Odell afirmou em uma entrevista que muitas vezes não teve sucesso no contato com seus ex-colegas. Muitos apresentavam interesse, mas nunca retornavam as ligações ou não atendiam os contatos seguintes. Outros simplesmente negaram ou inventavam demais desculpas como indisponibilidade, viagens ou até mesmo que iam mudar de cidade. A artista insistiu com todos até as últimas consequências, ou até ter a inevitável negação verbal, já que esta já era uma resposta e condizia com o objetivo do trabalho. Com aqueles que ela conseguiu se encontrar, o vídeo foi apresentado. As reações, comentários e opiniões de cada um foram registradas por ela. Por não ter interesse em expor as pessoas, já que este nunca foi seu foco e muito menos objetivo, o que vemos na segunda parte do filme é uma reencenação de atores sobre o que realmente ocorreu em alguns dos encontros, mas curiosamente os atores da segunda parte são diferentes daqueles que os representaram na simulação justamente para deixar mais clara a metalinguagem utilizada.

É interessante observar como a maioria daqueles que foram abordados pela artista não se lembram de detalhes tanto quanto ela, ou não tinham sequer consciência da posição hierárquica que eles naturalmente estavam posicionados, o que é assustador, pois demonstra que eram comportamentos corriqueiros, irrelevantes e automáticos. Ao mesmo tempo, muitos dos mesmos tentavam convencê-la de que ela estava enganada e que tudo nada mais era do que uma impressão distorcida dela sobre as coisas, o que evidentemente não era, pois o assediador só é vitorioso quando consegue convencer o assediado de que ele quem está errado.

A psicologia historicamente compreende a maldade inerente na fase infantil por falta da consciência do certo e errado, e que, conforme o amadurecimento e aprendizagem frente a educação e limites, essas diferenças de comportamento tendem a diminuir caso não haja a negligência dos adultos educadores envolvidos nessa criação e formação, como pais e professores, por exemplo. Outros filmes que tratam sobre assédios morais nesta fase já retrataram com bastante riqueza as consequências psicológicas dos indivíduos que sofreram esses abusos e o filme de Anna Odell firma mais uma vez como esses processos são comuns e as sensações de impotência são universais.

Até o momento o filme ganhou diversos prêmios como o Festival Europeu de Bruxelas, Festival Internacional de Dublin, Festival de Estocolmo e Festival de Veneza. Há grandes possibilidades do filme ainda concorrer a outros prêmios na temporada 2014/2015 de premiações, já que ele ainda não teve lançamento nas américas.

CONCLUSÃO...
O filme como um todo merece ser visto não apenas pela metalinguagem desenvolvida com extrema cautela e coesão dentro das diferente formas narrativas que a artista utiliza como também por mostrar através das reencenações as diferentes impressões que cada um de seus ex-colegas tinham sobre a época, além do total desconhecimento de atitudes tão perversas.

sábado, 20 de setembro de 2014

FILME... SERÁ?!

★★★★★★
Título: Garota Exemplar (Gone Girl)
Ano de publicação: 2012
Gênero: Suspense, Policial, Drama
Classificação: 14 anos
Páginas: 426

SOBRE O QUE É O LIVRO?
Nick e Amy é um casal de escritores tentando superar as dificuldades depois de uma dura fase desastrosa na qual ambos perderam o emprego por conta da recessão e se sentiram obrigados a mudar de um grande apartamento em Nova York para a cidade natal no interior de Missouri, em um bairro de mansões abandonadas que sofreram com a crise imobiliária e agora são alugadas pelo governo a preços muito inferiores. Nick abre um bar, que também é administrado por sua irmã gêmea, Margot. Eles já estão acostumados com a rotina do dia a dia de casados, mas a readaptação na pequena cidade é difícil, principalmente para Amy, que adorava sua vida em Nova York. Para Nick, tudo é indiferente, inclusive nos esforços de Amy na sua constante tentativa de reerguer a relação. No dia do 5º aniversário de casamento, Amy desaparece deixando várias pistas, mas nenhuma que leve diretamente a ela. Ao mesmo tempo que a polícia investiga os fatos, a mídia cria um grande espetáculo em cima do desaparecimento, e tudo passa a indicar que Nick não é tão inocente quanto parece.

O QUE TENHO A DIZER...
Hoje resolvi fazer algo diferente e falar sobre o livro de Gillian Flynn, publicado originalmente em 2012 e que em apenas três semanas entrou para a lista de best sellers. Vendeu mais de 3 milhões de cópias pelo mundo, é considerado um fenômeno e elogiado pela crítica. Não é ainda muito conhecido no Brasil, mas a tendência é que isso mude nos próximos meses porque, claro, ele ganhará uma adaptação cinematográfica. A adaptação do diretor David Fincher terá estréia dia 26 de Setembro nos Estados Unidos e no dia 02 de Outubro no Brasil. O filme marca também a estréia da própria autora como roteirista.

Os motivos que me levam a escrever sobre ele é justamente por isso, e me antecipei na leitura para me preparar e verificar se Fincher novamente fará um trabalho tão horroroso e desnecessário quanto foi a adaptação norteamericana de Os Homens Que Não Amavam As Mulheres (The Girl With The Dragon Tattoo, 2011).

À primeira vista o tema não é tão complexo assim, e nem parece ser o livro. A narrativa em primeira pessoa a princípio apenas reafirma ser o estilo mais apreciado entre os best sellers populares nos Estados Unidos, mas não me pergunte por quê. Se não for bem cuidada, esse tipo de narrativa tende a cair em uma simplicidade desastrosa caso a descrição subjetiva seja pobre e limitada apenas em ações mal detalhadas como é, por exemplo, com a série juvenil Jogos Vorazes de Suzanne Collins. Felizmente não é o que acontece, e a autora não apenas utiliza este tipo de narrativa com muita densidade como também o divide em dois pontos de vista. O primeiro é o de Nick, que descreve a história a partir do dia do desaparecimento de sua mulher, enquanto o segundo ponto de vista lemos trechos do diário de Amy até o dia anterior de seu desaparecimento. Óbvio que os sete anos de anotações do diário são resumidos, e o enfoque acaba indo para os últimos dias que antecedem o acontecimento.

Gillian consegue a difícil arte de dar riqueza descritiva mesmo em primeira pessoa, além de prender a atenção do leitor quando a narrativa de um personagem é interrompinda em um momento crucial para dar continuidade a narrativa do outro, igualmente interrompida em um momento crucial antes. E dessa forma as duas narrativas se intercalam em pontuais interrupções que agem efetivamente como término de capítulos, dando uma boa sensação folhetinesca dentro de uma estrutura policial clássica de entreter o leitor e apreendê-lo para conclusões dramáticas. Portanto, não é uma novidade, mas a forma como ela desenvolve os dois pontos de vista e a atmosfera misteriosa criada por conta da estrutura paralela que se intercala é feita de maneira bastante inteligente.

A linguagem é igualmente rica e moderna, explícita, sem muitos floreios ou demasiada informalidade, e por conta do personagem principal ter sido jornalista de uma revista de cultura pop (a própria autora também foi), há muitas citações espalhadas no livro, tanto sobre música, quanto cinema, oferecendo uma experiência mais interativa caso o leitor esteja perto de um computador e vá atrás dessas referências assim que elas surgirem, algo bastante agradável e imersivo. Por muito momentos o livro embarca em um estilo sombrio, e mesmo o personagem principal sendo um cara sem graça e apático, a ironia da autora transforma sua constante autodepreciação em um humor bem único de grande auxílio na fluidez da leitura.

Mas é quando o livro atinge o seu meio, um meio quase exato tanto quanto no número de páginas, que o leitor se deparará com uma mudança muito repentina e brusca na história. Eu mesmo reli a primeira frase dessa segunda parte duas vezes para ter certeza de que aquilo estava certo ou se era erro da tradução. Chacolhei a cabeça, cocei o olho pra me certificar de que não estava com sono ou vista embassada e até soltei um "ahn?!" de quem não entendeu muito bem a idéia. Foi algo inesperado porque até este ponto o leitor está tão imerso nas tramas e pensando em tantas possibilidades que definitivamente ele é surpreendido. Mas a surpresa só não foi tão agradável porque ao mesmo tempo uma sensação tola de ter sido gratuitamente enganado por 200 páginas toma conta. A partir daí entramos para uma segunda parte que foge da imprecisão de antes e tenta esclarecer melhor todos os fatos. Confesso que a segunda parte infelizmente se torna previsível, e conforme o número de páginas está prestes a acabar o leitor fica se perguntando onde é que o fim vai caber em tão pouco espaço. E então ele aparece tão repentinamente que decepciona.

É difícil não ser claro nos pontos negativos sem revelar partes muito importantes da trama, por isso ele vai ser aquele tipo de livro que intrigará na primeira parte, segregará seu público na segunda parte, mas todos lerão até o fim por pura curiosidade. As reviravoltas são tão mirabolantes e surreais que, mesmo dentro da ficção, há um ponto em que fica muito, mas muito difícil aceitar, e todas as justificativas mais parecem improvisos da autora para dar logo um fim a tudo do que uma atitude realmente inteligente e pensada para os personagens, sejam eles principais, coadjuvantes, ou aqueles introduzidos na história como grandes peças chaves, mas que se tornam inúteis ou descartados para a conclusão da trama, como Bill Dune, Andie ou Tanner Bolt, este último sem qualquer relevância em toda a trama, entrando e saindo sem muitos propósitos. Ou seja, há excesso dos chamados red herrings, termo utilizado para as pistas falsas utilizadas para enganar ou desviar a atenção do leitor (ou espectador) sem motivos claros e que, vale dizer, geralmente não são muito bem vistos por conta da proeminência vazia e que empobrece a obra, seja literária ou cinematográfica.

Mas pensando por outro lado, é como se toda a psicotico-fantasia absurda inventada pela autora também pudesse significar os pensamentos e as idéias mais cabulosas que surgem em períodos de crise insustentável nas relações longas e estáveis junto com as infames competições de ego, os conflitos entre dominação e submissão, e recorrência de situações deterioriantes por conta de conveniências sociais. Tudo isso é abordado com bastante frequência na conflituosa, esquisita e doentia relação dos personagens.

Gillian também se utiliza de outros elementos sociais para incrementar todas as atmosferas hostis. Na primeira parte temos as citações dos períodos de recessão e crise imobiliária norteamericana como um dos grandes agravantes para a decadência da relação do casal, e na segunda parte temos a intensiva manipulação da mídia e sua violenta e poderosa influencia social no direcionamento de decisões.

Mesmo com uma grande reviravolta que a princípio surpreende, mas se desenvolve de maneira muito absurda e decepciona na sua conclusão, há grandes méritos que não devem ser ignorados que, de qualquer forma, fazem do livro um excelente entretenimento e uma literatura popular muito mais interessante e relevante do que os 50 Tons de Cinza por aí, até porque a narrativa de Gillian possui um ponto de vista feminino muito mais prepotente e digno de nota.

CONCLUSÃO...
Todas as reviravoltas e os arsenais misterioso e duvidosos utilizados, em sua mais pura essência, nada mais são do que uma tática comumente usada no cinema de ludibriar o espectador e que a autora soube muito bem utilizar no gênero literário para fazer o mesmo com os leitores. Toda a bagagem cinematográfica adquirida por Gillian Flynn enquanto jornalista pop foi muito bem aproveitada em palavras e composições bastante visuais em sua narrativa em uma obra que, por conta desses aspectos, poderá ser melhor aproveitada no cinema e com um final que não seja tão decepcionante, já que a autora terá oportunidade de melhorá-lo, pois ela também é a roteirista da adaptação e já foi informado que o final do filme será diferente para atrair a atenção dos que já leram e não tirar o interesse daqueles que ainda não conhecem o livro. Basta saber agora se Fincher aprendeu com a decepção de sua adaptação anterior.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

REBU MERECIDO...

★★★★★★★★
Título: O Rebu
Ano: 2014
Gênero: Suspense, Drama, Policial
Classificação: 14 anos
Direção: José Luiz Villamarim
Elenco: Patricia Pillar, Cassia Kis Magro, Tony Ramos, Marcos Palmeira, Dira Paes, José de Abreu,  Lima, Vera Holtz, Camila Morgado, Jesuíta Barbosa
País: Brasil
Duração: 25 min.

SOBRE O QUE É A TELENOVELA?
Um crime ocorreu na mansão carioca de Angela Mahler, o corpo bóia na piscina enquanto uma festa para a alta sociedade acontece. Os motivos para a vítima morrer são muitos, e muitas também são as razões que cada um da festa tinha para poder matá-lo.

O QUE TENHO A DIZER...
O Rebu foi uma readaptação de George Moura e Sérgio Goldenberg da novela original de Bráulio Pedroso, originalmente transmitida pela Rede Globo entre 1974 e 1975. A dupla de autores tem se destacado na teledramaturgia brasileira por adaptar histórias de diferentes fontes e desenvolver tramas policiais com suspense, intrigas e elementos dramáticos dentro de uma sofisticação narrativa que até então parecia algo muito distante para a televisão brasileira, como foi o caso das minisséries O Canto da Sereia (2013), adaptação do livro homônimo de Nelson Motta, e de Amores Roubados (2014), livremente adaptado de um folhetim de sucesso de Carneiro Vilela publicado em um jornal recifense entre os anos de 1909 e 1912. Por isso, não é à toa que O Rebu é a terceira colaboração consecutiva dos autores em menos de dois anos para a emissora.

A novela original foi um grande sucesso na época e a 20ª a ser exibida na faixa das 22h/23h, horário reservado para produções mais ousadas e polêmicas, proposta supostamente retomada pela Globo em 2011 com o remake de O Astro (2011). A produção causou uma revolução na televisão brasileira ao ir completamente contra a maré narrativa tradicional por situar sua trama em apenas 24 horas. O grande desafio na época foi manter a atenção do público por 112 capítulos dentro de um espaço temporal tão limitado, que entre tropeços e erros gravíssimos de continuidade conseguiu sobreviver no meio da audiência já entediada. Algo parecido já havia sido feito antes, como no filme Festim Diabólico (Rope, 1948), de Hitchcock, sobre um assassinato cometido durante um jantar e que também se passa em um período de 24 horas, mas fazer algo equivalente em um folhetim fez da versão original ser considerada um clássico da televisão brasileira, mas seu formato ousado e inovador na época nunca mais foi repetido em nenhuma produção nacional posterior.

Como excessão da trama principal, os próprios autores não a consideram um remake, já que todo o desenvolvimento, os personagens e as subtramas são diferentes, atualizados para os dias atuais em enxugados 36 capítulos. As subtramas e os acontecimentos da festa são mostrados em flashbacks, mas em nenhum momento definidos detalhadamente.

É considerada uma telenovela por manter a forte linguagem do formato com a incessante recapitulação de fatos junto com a constante nominação dos personagens durante diálogos ou acontecimentos para a todo momento situar a audiência flutuante dentro da história, mas ao mesmo tempo é uma evolução, ou aquilo que deveria ser o futuro das telenovelas. Isso se deve pelo roteiro enxuto proporcionado pelo menor número de capítulos, a alta qualidade da produção e valores cinematográficos agregados a ela, um feito raro e que definitivamente se absteve de fórmulas baratas comumente usadas nas produções da emissora, o que tirou muito do ranso de material reciclado e filmado em escala industrial para consumo em massa, como acontece com regularidade nas demais apresentadas entre as 19 e 22h (salvo raras excessões, como a última e belíssima Meu Pedacinho de Chão ou Cordel Encantado, apenas para citar).

As qualidades excedem o esmero do design de produção que se atentou a mínimos detalhes; da cenografia deslumbrante da locação argentina reestilizada para simular uma mansão carioca; ou da trilha sonora que presenteou a audiência com diversas pérolas nacionais e internacionais de Caetano, Gal, Nação Zumbi, Nina Simone, New Order, Amy Winehouse e até Bjork, uma variedade já vista nas duas parcerias anteriores dos autores. Ainda sobre a trilha sonora, vale destacar a trilha original composta por Felipe Alexandre, Eduardo Queiroz e Guilherme Rios, muito bem inspirada pela trilha original de Requiem Para Um Sonho (Requiem For A Dream, 2000), de Clint Mansel. Uma pena que essa trilha sonora original não seja encontrada além do tema de abertura, pois as demais inserções utilizadas mantiveram uma melancolia e precisão fundamentais para diversas sequências dramáticas.

Tudo vai muito mais além nos quesitos técnicos quando observados com atenção mais detalhada. O diretor José Luiz Villamarim, que também dirigiu as outras adaptações da dupla, mantém aqui o estilo que o tem destacado dos demais no cenário televisivo, novamente optando por algo mais fluido e aberto como também repete algumas outras tentativas que tiveram sucesso no passado.

Os enquadramentos mais amplos deram mais liberdade cênica aos atores que crescem em seus personagens por mérito e não por conta de truques de câmera ou edição. E claro que, dentro disso, não há como deixar de comentar sobre os planos sequência (ou contínuos), longas tomadas que seguem o eixo de ação dos personagens sem cortes. A técnica já foi utilizada anteriormente de maneira sutil em Amores Roubados, mas agora ele realmente explora o estilo com mais afinco e valor para a história. Esse artifício cinematográfico usado com gratificante excesso no formato folhetinesco é o que expôs a essência e o cuidado de toda a produção, já que cenas assim são consideradas como um "balé" por conta de sua natureza complexa que demanda ensaios e precisão. A sincronia perfeita entre a câmera, os personagens, coadjuvantes, figurantes e cenografia é obrigatória e o resultado disso são dezenas de situações sem cortes, com duração de 2 minutos para mais, espalhados nos capítulos. Não há como negar a importância que essa técnica teve para a densidade narrativa, de substancial impacto durante o confronto entre os personagens com diálogos contínuos e verossímeis, sem o cansativo ping pong habitual entre duas câmeras que claramente indicam a completa ausência de ensaio e domínio de cena, típica linguagem didática visual das novelas industriais. E ao invés de termos uma cena de ação e reação editadas e atores presos apenas nas expressões faciais por conta do limitado enquadramento superior, vemos mais que isso, vemos os personagens realmente ganharem vida com os atores usando todo o corpo como um objeto de linguagem numa fluidez quase teatral. Assim tivemos grandes e memoráveis cenas de Cássia Kis, ou da formal rivalidade contida pela conveniência, desempenhadas com atenção ao mínimo erguer de sobrancelhas de Patricia Pillar e Tony Ramos. Foi um prazer aos olhos e às sensações, inesquecível para quem aguardava há tanto tempo algo tão sofisticado em uma emissora aberta nacional.

O elenco grandioso e eclético formado excepcionalmente pela nata subaproveitada da emissora também mostra que não há idade para atores terem excelentes papéis e que telenovelas podem chegar a um patamar de qualidade que não subestime sua audiência. O que falta mesmo são grandes autores e textos mais nobres. E que texto! Diálogos retos, sem muitos floreios e tão espontâneos que muitas vezes parecem improvisos. Com excessão de uns ou outros, que nunca se limitaram a um único tipo de papel durante a carreira, foi uma grande quebra de preconceitos ver Tony Ramos interpretar o inescrupuloso Carlos Braga e sair de sua zona de conforto e da imagem de bom moço que a emissora sempre cultivou. O impacto foi tal como foi ver Regina Duarte interpretar a histérica e impulsiva Clo Hayalla no remake de O Astro, papel que também a deixou anos luz da mesmice enlatada na qual sempre foi condicionada. Bom também foi ver Mariana Lima reaparecer com destaque, ou o humor nato de Vera Holtz ter espaço pra se espalhar sem censura junto com a faceta cômica de Camila Morgado, significantes para aliviar o clima pesado da trama, tudo sem vulgaridade ou piadinha pronta pra sorriso amarelo.

A trama desenvolvida em três eixos temporais (presente: com a investigação; passado recente: a festa; passado distante e aleatório: as histórias individuais dos personagens) chegou em um ponto onde o significado do título teve total coerência com o emaranhado de casos e consequências que se desenvolveram, e os autores conseguiram compensar a previsibilidade de algumas resoluções com a imprevisibilidade de como eles ocorreram. Uma sacada interessante e que ficou longe da mesmice já vista antes em tramas similares. Houve críticas sociais e políticas espalhadas em todos os lugares, algumas explícitas e até aborrecedoras de tão didáticas, enquanto outras mais sutis condensaram melhor a história. A festa, que na obra original foi um acontecimento de destaque, infelizmente foi posta em segundo plano aqui, um tanto frustrante para aqueles que aguardaram tanto glamour boêmio. As atuações não foram de todas felizes também, como Dira Paes, que tem seu talento reconhecido, mas infelizmente caiu em uma atuação cliché quase que amadora, ou da voz monotônica de Jesuíta Pedroso, talvez para disfarçar seu sotaque pernambucano. Sophie Charlotte pode ter exagerado na mão na testa e mão na cintura, mas conseguiu surpreender em grandes cenas. O final também poderia ter tido uma resolução diferente, mas sua construção foi admirável e igualmente satisfatória, e nem o delegado conseguiu escapar do mau caratismo ao correr para o rabo de saia da investigadora Rosa quando o fogo da palha com Angela Mahler apagou. O mau caratismo e o interesse, defeitos inerentes do ser humano.

Mas infelizmente tanta qualidade e repercussão não foram suficientes para segurar o público. A audiência reduziu consideravelmente quando sua estréia é comparada com o fim. Mesmo com 36 capítulos e uma média de 25 minutos cada um, O Rebu teria sido melhor aproveitado se tivesse sido feito como uma mini série de 8 ou 10 capítulos. Os episódios curtos, editados para se encaixar no buraco da grade da emissora, desvalorizaram substancialmente o suspense progressivo da trama, passando a falsa impressão de monotonia ou de trama desinteressante para a audiência que viaja de um canal para o outro.

Além da audiência flutuante que não foi conquistada, os mais exigentes acabaram perdendo o interesse pela trama logo no primeiro capítulo, muito pela já instalada aversão pelo formato folhetinesco e a resistência de aceitarem uma proposta diferenciada por acreditarem que isso não é possível. Foi muito comum ler e ouvir negatividades daqueles que nunca assistiram mais de um episódio ou até mesmo mais de 5 minutos. Esse preconceito enraizado é culpa da própria emissora que nunca se preocupou com a qualidade mais do que com os números, que ao longo das décadas condicionou sua audiência para isso com produções que beiram a ignorância, responsáveis por atrofiar o senso crítico da massa.

O Rebu foi sem dúvida como uma macarronada em um jantar refinado. Um prato comum, mas valorizado nos ingredientes e na sua apresentação. Uma grande excessão que infelizmente foi subjulgada por muitos que acreditaram ser apenas mais uma novela qualquer como todas as outras. É claro que já vimos trama policial parecida, já vimos produções luxuosas assim, já assistimos um elenco formidável junto e o uso do plano sequencia não é novidade para ninguém. Sim, concordo. Mas nunca vimos tudo funcionar em conjunto e com tanta precisão na televisão brasileira porque isso nunca foi feito antes. Não aqui.

CONCLUSÃO...
Telenovela faz parte da cultura nacional, e O Rebu demonstrou que, sim, a televisão brasileira tem talento e capacidade para elevar esses níveis, mas não tem uma audiência pronta para isso, ou enquanto continuarem condicionando-a para isso.

domingo, 7 de setembro de 2014

NÃO É DESTA VEZ, MINGHELLA...

★★★★
Título: As Duas Faces de Janeiro (The Two Faces Of January)
Ano: 2014
Gênero: Drama, Suspense, Crime
Classificação: 14 anos
Direção: Hossein Amini
Elenco: Viggo Mortensen, Kirsten Dunst, Oscar Isaac
País: Reino Unido, Franca, Estados Unidos
Duração: 96 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um casal norteamericano que está há alguns dias em Atenas é ajudado por um guia turístico que se sujeita a fazer parte de uma perigosa trama que ele não imaginava.

O QUE TENHO A DIZER...
Estréia do iraniano Hossein Amini na direção, com roteiro também escrito por ele. Hossein tem maior experiência como roteirista, cuja carreira é um tanto esquisita. Ele foi responsável pelo roteiro de filmes excelentes como Asas do Amor (The Wings Of Dove, 1999) e Drive (2011), mas ao mesmo tempo contribuiu com os péssimos Branca de Neve e o Caçador (Snow White and The Huntsman, 2012) e 47 Ronins (2013). Levando-se isso em consideração, as possibilidades dessa produção ser boa eram um tanto incertas, mesmo contendo grandes nomes para os personagens principais e por ser baseada no livro homônimo de Patrícia Highsmith, a mesma da obra que rendeu a excelente adaptação cinematográfica O Talentoso Ripley (The Talented Mr. Ripley, 1999), de Anthony Minghella.

Chester (Viggo Mortensen) e Colette (Kirsten Dunst) é um casal norteamericano que está passando alguns dias em Atenas. Entre um passeio turístico e outro, Chester percebe que um estranho o observa. Colette consegue se aproximar de Rydal (Oscar Isaac) e descobre que ele é um americano que mora em Atenas e trabalha como guia turístico, pois ainda não decidiu o que fazer de sua vida pessoal e profissional. O casal contrata o guia e algumas semelhanças levam Rydal a uma fascinação por ambos que o sujeitará a ajudá-los quando Chester é perseguido pela polícia por motivos que para não são claros, mas que colocarão Rydal dentro de uma trama perigosa que ele não imaginava.

Depois que Anthony Minghella realizou o deslumbrande O Talentoso Ripley, elogiado pelo mundo todo pelas excepcionais qualidades visuais, técnicas e pela habilidade que ele teve em desenvolver a história com um cativante suspense progressivo e dramático, até mesmo ao incluir uma personagem que não existia no livro e aumentar sua participação apenas para dar mais destaque ao desempenho de Cate Blanchett, que ao invés de adulterar os rumos da história apenas incrementou ainda mais o tom hitchcockiano que ele deu à trama, o cinema ficou novamente carente de suspenses psicológicos sofisticados como aqueles entre as décadas de 40 e 60 referenciados e homenageados por Minghella.

Ao assistir o trailer de As Duas Faces de Janeiro a fotografia clássica juntamente com o estilo literário já conhecido da autora Highsmith, gerou uma grande expectativa pela estréia de Hossein, e referências à obra de Minghella foram inevitáveis. A tentativa de repetir a fórmula de sucesso da adaptação de O Talentoso Ripley são tão evidentes que um dos produtores executivos é Max Minghella, filho do falecido diretor.

Realmente não dá para evitar comparações, mas ao invés delas se tornarem referências nostálgicas e até uma excelente oportunidade para homenagear Minghella e os méritos alcançados por ele em um dos seus últimos grandes filmes, tudo se transforma numa experiência bastante frustrante em muitos aspectos.

A narrativa condensada, o suspense envolvendo o passado desconhecido dos personagens e acontecimentos chaves que ocorrem em momentos exatos logo na primeira meia hora conduzidos pela trilha sonora de Alberto Iglesias com grandes referências a Bernard Herrmann em Psicose (Psycho, 1960) claramente conduzem e preparam o espectador à atmosfera esperada. Mas infelizmente a robustez desse início perde a força quando o roteiro entra em um platô superficial que não ousa em momento algum abusar do passado e dos conflitos psicológicos individuais dos personagens que justifiquem de fato suas atitudes e os posicionem na trama como acontece no livro, principalmente a respeito de Rydal, o ângulo reto do triângulo que se forma.

O título do filme se refere ao deus romano de duas faces, Jano (ou Janus), guardião das transições, das portas, das decisões e do início, com uma face voltada para o passado e a outra para o futuro. Essa figura romana representa o ajuste de contas que Rydal fará com seu passado ao enfrentar as decisões perigosas do presente, além da história ocorrer no início de Janeiro, que também simboliza a oportunidade do grande recomeço na cultura popular. Na obra de Highsmith, essa associação do título com a trama se revela quando Rydal encontra uma estranha e penosa semelhança de Chester com seu falecido pai, e de Colette com uma garota por quem ele foi perdidamente apaixonado na adolescência. A transferência dessas duas fortes figuras de sua vida no casal é o que leva Rydal se manter próximo a eles na inconsciente busca pela resolução de sua traumática relação com seu detestável pai, e no romance interrompido com a garota na adolescência.

Motivos tão importantes como esses e as verdadeiras fundações de toda a trama não são exploradas da forma devida. Há apenas breves referências a respeito da semelhança física de Chester com o falecido pai de Rydal, sem maiores desenvolvimentos que esclareçam ao espectador o motivo dessa transferência de personas tão forte e a relação de amor e ódio que cresce entre eles. Os principais macroacontecimentos no filme seguem a mesma cronologia do livro, com algumas alterações que até beneficiariam a adaptação dentro do gênero proposto caso a atenção devida aos problemas já mencionados tivessem sido dados, mas ao contrário do suspense psicológico bem orquestrado do livro, tudo se transforma em uma história de crimes passionais comum no filme, com perseguição policial tola e um triangulo amoroso formado da maneira mais simples possível que explora uma ingenuidade de Colette inexistente, já que no livro sua infidelidade era recorrente. O resultado é um filme vazio, com um final banal que torna toda a trama redundante ao invés de significar o ápice dramático, a definitiva e esperada grande libertação de Rydal de seus conflitos, sua final jornada pela simbólica absolvição tão buscada.

Mesmo desenvolvendo um excelente trabalho, Viggo Mortensen tem seu talento deseperdiçado aqui por conta do filme esquecível que impressionantemente é. Kirsten Dunst ainda não aprendeu a ter uma postura sofisticada sem parecer estudante universitária, e como sempre suas melhores partes são quando as personagens sofrem maiores pressões. Desperdiçadas também são as locações na Grécia e Turquia, ao contrário do que foi feito por Minghella ao transformar a exuberância das paisagens italianas um grande adendo no misto de beleza e delicada crueldade contidas em O Talentoso Ripley. Oscar Isaac tem impressionantes momentos, talvez por conhecer a obra original e saber que seu personagem é muito mais complexo do que o roteiro apresenta, mas que para o espectador que é mal esclarecido por todos os 96 minutos, as atitudes de seu personagem soarão apenas como uma fixação vazia e romanticamente descabida, sem pretexto coerente algum.

CONCLUSÃO...
Uma adaptação banal e redundante para o espectador que foi muito mal introduzido e situado em todo o contexto, ao contrário da obra literária que conduz a história para um suspense psicológico baseado em um simbolo mitológico que justifica todo o ciclo dramático do personagem principal.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

PLURALIDADE SEM ESTEREÓTIPOS...

★★★★★★★
Título: Deixe a Luz Acesa (Keep The Lights On)
Ano: 2012
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Ira Sachs
Elenco: Thure Lindhardt, Zachary Booth, Julianne Nicholson
País: Estados Unidos
Duração: 100 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um jovem documentarista dinamarquês tem que lidar com as dificuldades de manter sua relação com seu namorado norteamericano, um advogado viciado em drogas e com grandes dificuldades de se reabilitar.

O QUE TENHO A DIZER...
O filme é dirigido pelo norteamericano Ira Sachs, com roteiro escrito por ele mesmo em parceria com o brasileiro carioca Mauricio Zacharias. Embora um diretor desconhecido no circuito comercial, já possui seis longas metragens no currículo. Zacharias foi responsável pelos roteiros de Madame Satã (2002) e O Céu de Suely (2006), dentre os mais conhecidos. Teve sua estréia no Festival de Sundance de 2012, o qual foi bastante elogiado, e ganhou o Festival de Berlim, além de ter concorrido ao Independent Spirit Awards. Foi um filme recorrente em festivais e ainda é em mostras internacionais do circuito GLBT pelo mundo.

Mesmo não dizendo isso em nenhum momento (nem ao menos nos créditos), curiosamente ele é baseado na vida do próprio diretor e sua complicada relação com Bill Clegg, um agente literário que publicou seu próprio livro de memórias, Portrait Of An Addict As A Young Man (2010), relatando as dificuldades que teve com seu vício nas drogas ao longo dos anos. Segundo o próprio diretor, ele ainda possui amizade com Bill, o qual o apoiou incondicionalmente na realização deste filme, o primeiro com referências autobiográficas na carreira do diretor.

A história vai girar em torno de Erik (Thure Lindhardt), um documentarista dinamarquês que vai para Nova York coletar relatos para sua nova produção a respeito do artista Avery Willard, e que passa a maior parte do seu tempo vago no telefone em grupos de conversa gay na intenção de esquecer seu ex-namorado e na possibilidade de conhecer alguma outra pessoa interessante. Entre sexos sem compromisso e encontros fúteis, acaba conhecendo Paul (Zachary Booth, de Damages), um jovem advogado que namora uma garota e tem dificuldades de assumir sua homossexualidade. Esse encontro acaba despertando uma paixão que faz com que Paul assuma sua sexualidade e também revele a Erik seu vício em crack. Erik, a princípio, acredita que Paul tenha controle sobre isso, a relação evolui para um casamento e, com o passar dos anos, aquilo que parecia um mero detalhe se transforma em um grande problema que interfere na sanidade e no relacionamento dos dois até atingir uma situação insustentável.

Embora o filme tenha temática gay e até trate de alguns assuntos recorrentes e que serão bastante familiares para a audiência homossexual masculina, como a poligamia, a falta de comprometimento, a superficialidade sentimental e material existente nos guetos, além da constante sombra da Aids, ele é bastante realista e verdadeiro na retratação das dificuldades sofridas pelos personagens como pessoas e não como exemplos ou pontos de referência, o que felizmente os deixam longe das estigmatizações ou estereotipações comumente vistas em filmes do gênero. Sutilmente o filme até brinca com determinados preconceitos logo no início, quando vemos Erik ao telefone agindo de forma bastante promíscua e depois com o comportamento sofisticado de Paul, para depois a história nos mostrar como é fácil nos enganarmos com as aparências.

Por um lado temos Erik que tem de lidar com sua obsessão por Paul, e por outro temos Paul que precisa aprender a lidar com o seu vício que aumenta todas as vezes que Erik tenta controlá-lo. Como enredo isso parece algo bastante simples, mas desenvolve uma história de dois círculos viciosos que se interceptam formando um elo que nunca poderá ser rompido unilateralmente. Os dois sofrem psicologicamente com esses dilemas, e tudo se desenvolve de forma bastante densa em meio a sexo, drogas, amor, vida, amigos e os argumentos entre tudo isso, fórmula pronta para o melodrama, mas o diretor e roteirista tiveram cuidado em não transformá-lo em um. Ao invés disso, o que vemos entre os anos de 1998 a 2006 na história, divididos em quatro partes, é justamente o que faz as dependências de Erik sobre Paul, e de Paul sobre as drogas, existirem. Essas idas e vindas e a repetitividade das situações ocorrem cada vez com maior intensidade por conta dos desgastes passados e das novas incertezas futuras. Eles se amam, e isso é evidente, mas o amor apenas não é o suficiente, independente dos esforços. O amor também é mostrado na sua forma mais pura e verdadeira, sem clichés românticos ou ideais, com cenas de sexo que poderão parecer explícitas para a audiência que se choca com maior facilidade, mas são muito mais eróticas e sensuais do que obcenas, pois são verdadeiras e representam a transparência da relação entre os dois personagens, e ao invés de serem dispensáveis, se tornam um forte complemento narrativo.

O roteiro de Zacharias também consegue explorar nuances sexuais e observacionais do cenário gay das metrópoles de uma forma bem menos americanizada do que poderia ser caso o roteirista fosse norteamericano, até mesmo pela variedade étnica que vemos e a referência direta à pluralidade social em todos os aspectos, algo que apenas um brasileiro saberia compreender o que isso significa e transpor para um roteiro de uma forma tão bem organizada como ele faz neste filme.

O elenco, mesmo formado por poucos conhecidos atores, talvez seja um dos maiores atrativos. Segundo o diretor, ainda há uma imensa dificuldade nos Estados Unidos em encontrar atores que se disponham a realizar filmes com cenas homossexuais românticas ou eróticas por conta de um conservadorismo recalcado que pesa sobre a indústria. Avy Kaufman foi a responsável pelo elenco. Ela foi a mesma a escalar o elenco de O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005). Mesmo com esta importante bagagem no currículo teve dificuldades em completar o casting. Eles acreditam que tanto os atores quanto seus agentes consideram os papéis nesses projetos um carimbo que os deixariam inelegíveis para futuros grandes papéis. Um grande preconceito que, segundo o diretor, seria bastante minimizado se a produção tivesse sido filmada na Europa e para o público europeu, mas aí a intenção não teria sido a mesma. O casal de atores principais pode ser convicente, mas a interpretação do dinamarquês Thure Lindhardt beira a perfeição nos sistemáticos detalhes que ele embutiu no personagem e que o identificam claramente na história, além de darem uma personalidade única com uma imagem ríspida e bastante masculinizada, mas com atitudes e expressões tão delicadas e sutis que por muitas vezes é impossível não se emocionar.

A linha temporal é dividida em quatro partes, com um espaço de três anos entre uma e outra, sendo esta a única referência de tempo que temos, pois entre uma parte e outra a passagem dos anos é notada apenas na narrativa e em algumas situações. Os cortes da edição são bruscos, há raras cenas de transição durante o filme todo. Então, uma cochilada é suficiente pra deixar muita gente perdida no espaço temporal do filme quando acordar.

Vale dizer que uma pequena parcela do ainda sim baixíssimo orçamento do filme foi pago através de doações realizadas ao Kickstarter por mais de 300 pessoas. E a título de curiosidade, o desconhecido e importante artista citado no filme (Avery Willard) realmente existiu. Ele foi um fotógrafo, cineasta, editor e ativista que, dentre seus trabalhos, está a retratação do cenário gay novaiorquino entre as décadas de 70 e 90 sob o pseudônimo de Bruce King. Uma biografia mais detalhada por ser encontrada AQUI. Durante o desenvolvimento do filme o diretor conseguiu material suficiente que posteriormente se transformou no documentário de curta metragem In Search Of Avery Willard (2012), dirigido por Cary Kehayan.

CONCLUSÃO...
Um filme realista e bastante interessante que, mesmo tendo abordagem homossexual, trata de assuntos bastante corriqueiros e universais na sociedade jovem atual, além de conseguir se abster de estrereótipos para contar uma história com diversas situações paralelas sem soar cliché ou parecer que foi feito para públicos específicos graças a articulação do roteirista brasileiro e da ampla abordagem social do diretor.
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