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quarta-feira, 21 de março de 2018

LIBERDADE ACIMA DE TUDO...

★★★★★★★★☆☆
Título: Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantástica)
Ano: 2017
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Sebastián Lelio
Elenco: Daniela Vega, Francisco Reyes
País: Chile, Alemanha, Espanha, Estados Unidos
Duração: 100 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma transexual terá de lidar com diversas outras dores além da perda repentina de seu namorado.

O QUE TENHO A DIZER...
Grande vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2018, sua vitória foi bastante comemorada, não por realmente se colocar como o melhor filme entre os finalistas, mas porque é um tema inédito a vencer em qualquer categoria da premiação. Pode ter sido um esquema da Academia em se promover como um grupo diversificado e que, ao contrário do que a História nos mostra, seja a favor da diversificação.

A vitória do filme veio em um momento muito delicado no cinema mundial, onde diversos grupos reivindicam seus diretos. Os negros exigindo maior espaço, as mulheres exigindo maior igualdade e, porque não, transgêneros também exigirem o respeito social e profissional que lhes são merecidos por direito humano e civil.

Sebastián Lelio é o mesmo diretor e roteirista responsável pelo grito empoderador da mulher independente que a todo instante caminha contra o preconceito e o machismo no filme Gloria (2013), o qual também concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2014, e agora está sendo refilmado para o público norte-americano pelo próprio diretor com Juliane Moore no elenco.

Portanto, não é de se espantar que sua sensibilidade sobre o tema seja refinada o suficiente ao ponto de outra vez desenvolver um grito empoderador e de liberdade relevantes aqui, e por uma personagem que igualmente caminha contra o preconceito, o machismo, a discriminação, o assédio, a violência e a todos os demais adjetivos desumanos que estão agregados nesta história. Não é à toa que Lelio materializa essa difícil batalha em uma das cenas mais simbólicas do filme, quando Marina (Daniela Vega), a grande heroína da história, caminha na rua contra uma rajada de vento, onde cada passo se torna mais difícil de sustentar, mas incapaz de impedí-la ou derrubá-la mesmo assim.

E é em cima dessa metáfora que todo o filme será construído, sendo a trajetória da protagonista baseada em histórias reais espalhadas pelo mundo, pois representa muitos casos similares ao dela em estados ou países que não amparam uniões estáveis como a dela, ou transgêneros como ela.

As situações por muitas vezes podem parecer exageradas no sentido de que, a partir do momento que Orlando (Franciso Reyes) morre, morre junto qualquer compaixão e respeito que exista, fazendo-a novamente encarar a bruta realidade de pessoas movidas por ódios injustificáveis, que ignoram completamente que a escolha individual de cada um deve ser respeitada independente de qual seja, levando-a a uma sucessão de conflitos desnecessários que a impedem de prosseguir com sua vida com dignidade.

Essa hiperbolização das situações tem um propósito chocante deliberado para sentimos o peso maciço das dores e de como a integridade da personagem é constantemente atacada e testada por puro sadismo e ignorância. O luto de Marina sequer é respeitado, além dela ser tratada como uma criminosa, responsabilizada não apenas pela morte de Orlando, como também pelas escolhas e infelicidades dos outros. É assim como faz a ex-mulher do falecido, que não se conscientiza que Orlando a deixou por uma escolha dele. A revolta de Sonia (Aline Küppenheim) não é por ter sido trocada por outra mulher, mas ter sido substituída por uma transexual, ferindo sua feminilidade narcisista, notado quando ela deixa claro que considera Marina uma aberração.

De atitudes familiares estúpidas, como exigir a devolução do carro e do apartamento deixados por Orlando, das ameaças que Marina sofre de seu enteado em crise sexual, das ofensas gratuitas que ouve dos demais familiares, nada parece o bastante até ser proibida de comparecer no funeral, numa situação muito parecida com a história real do casal Shane e Tom, contada no documentário Bridegroom (2013), onde Shane foi igualmente impedido de comparecer no funeral de seu marido, e que volto a dizer, é uma situação mais comum do que se imagina.

O desamparo legal, social e familiar, o escárnio, o desrespeito e a violência sofrida por todos os lados só acontecem dessa forma por ela ainda ter seu nome de batismo na sua carteira e pela inabilidade da sociedade em ser pluralista e diversificada. A depredação psicológica e física que Marina constantemente sofre mostra uma realidade tão brutal e desumana difícil de engolir. Seu comportamento sempre pacífico e calado, e a consciência que tem de que responder aos ataques só daria mais razões para a continuidade do sofrimento é o que também nos dá o igual sentimento de impotência e vulnerabilidade que ela tem, mas ao mesmo tempo nos deixa mais claro que a luz do dia de como sua integridade, respeito e educação são maiores do que de qualquer outra pessoa.

Por muitas vezes nos deparamos com a personagem se olhando ao espelho. Não é ela se questionando se deveria ser diferente, mas sim, o que há de errado com as pessoas em não aceitá-la como é, já que diariamente ela aceita e respeita todas as outras que frequentam o restaurante onde trabalha, ou a casa de shows em que apresenta seus números de canto. E a conclusão é que a ignorância é a única responsável por impedir essa reciprocidade.

É um filme difícil, mas há uma beleza implícita em todo o drama da protagonista e, acima de tudo, uma mensagem motivadora forte de que todos nós devemos impor o respeito pelo nosso espaço a partir do momento que ele é invadido. E o que acontece com ela é uma invasão tão brutal que se assemelha a um estupro, seja quando é coagida a realizar um exame de corpo delito, seja quando é sequestrada por um grupo, um momento tão apavorante e aterrorizante que só podemos pensar o pior.

O semblante que carrega do fardo da batalha que trava diariamente contra os achismos e demandas sociais irrelevantes nos deixa evidente que a vida de Marina nunca foi um mar de rosas, e que não era necessário maiores motivos para ela ser uma pessoa tão retraída e apática como demonstra na maioria das vezes. É a pele que engrossa e a casca que endurece em um mundo que se mostra cada vez mais incapaz de diálogo e compreensão. Só assim para ela conseguir dar a reviravolta emocionante que consegue na história, como um grito de independência e, finalmente, a tão esperada liberdade.

segunda-feira, 19 de março de 2018

DIVERSIDADE SEMPRE BEM VINDA...

★★★★★★★★☆
Título: On My Block
Ano: 2018
Gênero: Drama, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Sierra Capri, Jason Genao, Brett Gray, Diego Tinoco, Ronni Hawk, Peggy Blow, Jessica Marie Garcia
País: Estados Unidos
Duração: 25 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
A relação entre cinco amigos adolescentes e suas experiências em uma pequena cidade no interior de Los Angeles.

O QUE TENHO A DIZER...
Assim como Cara Gente Branca (Dear White People, 2017), essa série chega para incrementar a proposta diversificadora do Netflix, e por que não, conscientizadora também. Igualmente apelativa para o público mais jovem, com aquele visual descolado, diálogos cheio de gírias caricatas, comportamento progressistas, personagens irreverentes e uma trilha sonora pra lá de popular, ela pode não ter o mesmo peso crítico-social presente na sátira de Justin Simien, mas a intenção existe de igual forma principalmente pelo elenco ser predominantemente latino, algo um tanto inédito para uma produção de distribuição mundial.

Aqui as tramas se desenvolvem dentro de um bairro, colocando todos os personagens em um mesmo ecossistema, numa mesma condição demográfica. Não existe uma discrepância sócio-econômico-cultural entre eles, o que existe é uma dinâmica social um tanto autônoma que cria suas próprias regras e leis para compensar a negligência dos grandes escalões sobre políticas inclusivas, resultando em problemas comuns encontrados em grupos sociais carentes.

Mas a série, a princípio, não tratará tudo isso como um grande problema a ser enfrentado pelos personagens, pelo contrário, é encarado pelos cinco amigos como uma realidade cotidiana tal qual tentar adivinhar o calibre da arma pelo tiro que ouvem na rua. E isso, para eles, é divertido, porque não há outra maneira de combater essa realidade além da proposital alienação.

O drama apenas surge quando Cesar (Diego Tinoco) é incluído entre os Santos, uma gangue na qual o seu irmão Oscar (Julio Macias) é chefe, e a possibilidade dele abandonar os estudos e o convívio com os amigos para viver do crime aumenta cada vez mais. É então que os cinco amigos percebem que a vida adulta se aproxima mais rápido do que imaginavam, e junto com isso problemas que, até então, pareciam fáceis de serem contornados. E também quando percebemos que a série não será apenas sobre dramas colegiais, ansiedades do primeiro beijo, discursos sobre a virgindade ou a busca pela popularidade na escola.

A grande sacada da série é misturar as complexas responsabilidades que surgem com os dramas da idade à realidade em que vivem, algo complexo e triste quando percebemos que é a situação de muita gente por aí, e como a transição para a vida adulta se torna uma tarefa mais difícil do que já é em condições como essa. Mas longe de dramatizarem demais o cenário, tudo é levado com bom humor na medida do possível. O elenco, formado em sua maioria por atores pouco experientes, consegue ser cativante o suficiente, numa química necessária para nos convencer de que tudo, no fim, dará certo. O lema de respeitarem uns aos outros como uma família se torna uma bela perspectiva quando é a única realidade na qual podem agarrar com todas as forças para superarem os obstáculos. Por isso que, em muitas situações, nenhum problema entre eles será grande o bastante para abrirem mão disso.

É interessante a forma como discussões cotidianas também são desenvolvidas, porque o roteiro não se esquece em nenhum momento que os personagens são adolescentes, e a distimia presente em seus comportamentos ora infantis, ora adultos, são coerentes, sendo perdoáveis até momentos em que garotos tenham comportamentos machistas, ou alguém tenha um diálogo mais malicioso ou preconceituoso. Mesmo porque sempre terá alguém para confrontar essas situações, criando momentos de reflexão, como Monse (Sierra Capri) muitas vezes faz. São pessoas em formação, que estão aprendendo a lidar com o peso daquilo que dizem e fazem, com grandes ideais pela frente, mas que ainda não tem a menor noção de como atingi-los.

A surrealidade aparece em pequenas doses para esquecermos dos pesos dramáticos e as situações cômicas serem atenuadas sem apelações para o cliché pastiche. A maioria desses momentos cabe nas inesperadas aparições de Jasmine (Jessica Marie Garcia), uma personagem bem coadjuvante, mas recorrente, de hilária autoconfiança, mas solitária por conta de sua inconveniência. Ela é assediada moralmente por todos, inclusive pelos próprios protagonistas, e seu comportamento histriônico é consequência dessa rejeição sofrida e da ânsia de ser aceita e sentir-se inserida em algum grupo. Mas de uma forma brilhante o texto consegue transformar todo esse peso dramático da personagem em um dos elementos mais hilários da série, alfinetando discretamente o comportamento social frente aquilo que seja diferente ou excêntrico, criando uma empatia quase imediata com o espectador. Mérito indiscutível da própria atriz, que transforma a personagem em uma montanha inabalável de autoestima.

A consciência dos personagens a respeito daquilo que são, de suas origens e condições sociais é o que faz os momentos dramáticos não caírem no comum. Pelo contrário, essa consciência é o que justifica cada um ser exatamente como é, dando aos nossos heróis e heroínas características únicas como poderes. Seja no excesso de sensatez de Monse, na fatalista conformidade de Cesar, na positividade de Ruby, na honestidade de Jamal ou na ingenuidade de Olivia, são as qualidades de cada um que irá complementar as ausências e defeitos uns dos outros.

A variedade cultural que o seriado traz também é um dos elementos de destaque porque igualmente temos um elenco de diversidade racial e étnica muito grande, não sendo à toa que a trilha sonora reflita bastante essa atmosfera tão misturada que permeia pelos episódios, com músicas que navegam pelos diferentes estilos da black music, influenciados ou não pela cultura latina, incrementando mais ainda todo o universo pluralista que a série tenta ostentar. Seja no Funk, no Soul, no Rap, R&B, Hip-Hop, ou até mesmo no Pop ou Eletrônico, as músicas utilizadas são dignas de atenção. Preparem o Shazam e estejam dispostos a conhecer excelentes artistas do cenário atual que fogem da obviedade e nos faz perguntar onde estavam para nunca termos descoberto eles antes.

On My Block é uma versão mais séria e adulta de Stranger Things por conta de seu enredo girar em torno de um grupo de amigos, resgatando uma semelhante atmosfera fraternal sincera e inspiradora, deixando a fantasia um pouco mais de lado e trazendo à tona elementos do cotidiano. Não que subtramas mais aventurescas e fictícias não aconteça, como Jamal (Brett Gray) acreditar que existe um tesouro enterrado no bairro e passar grande parte dos episódios atrás de pistas que o levem até ele, sendo apoiado apenas por uma velha senhora que acredita que os sonhos nunca devem ser esquecidos. Mas é na trama de Cesar que a realidade toda vez é trazida à tona como um puxão, bem como a finitude das coisas é uma ameaça constante, e como o calibre de uma arma não é apenas uma charada, mas o triste elemento da violência que os rodeia.

Engraçado, motivador e emocionante na medida certa, entre conflitos românticos e terrores sociais,  o seriado muitas vezes nos deixa sem saber onde é que estamos indo ou em que terrenos vamos pisar, e por isso é surpreendente e imprevisível, com um grande futuro pela frente, basta que as pessoas se abram a ele, como ele se abre sem vergonha alguma para nos conquistar.

DOIS PARA FRENTE, DOIS PARA TRÁS...

★★★★★★☆
Título: Invocação do Mal 2 (The Conjuring 2)
Ano: 2017
Gênero: Terror
Classificação: 16 anos
Direção: James Wan
Elenco: Vera Farmiga, Patrick Wilson, Frances O'Connor, Maria Doyle Kennedy, Franka Potente
País: Canadá, Estados Unidos
Duração: 134 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Ed e Lorraine Warren tentam se afastar de casos paranormais quando sua mulher tem uma visão perturbadora, porém um caso familiar os reaproxima de novo a um caso sobrenatural muito mais sério do que imaginavam.

O QUE TENHO A DIZER...
James Wan voltou para dar continuidade às histórias do casal Ed e Lorraine Warren depois de dirigir a continuação Sobrenatural, Capítulo 2 (Insidious - Chapter 2, 2013) e contribuir para a franquia multimilionária, Velozes e Furiosos 7 (Furious 7, 2015), tentando escapar do gênero que o consagrou e mostrar ao público sua versatilidade. O que o ajudou de certa forma, já que será o diretor de Aquaman.

O filme começa de maneira interessante fazendo referência ao caso de Amtyville, o acontecimento mais famoso do casal Warren. Mas ao invés de recontar uma história que já foi incansavelmente recontada no cinema, a situação serve apenas como uma introdução ao filme mesmo, uma referência e um gancho para os eventos seguintes.

Wan mantém muitas das mesmas técnicas que ele utilizou no filme anterior, como algumas poucas cenas em plano sequência para incrementar os estilos visuais e dar uma sensação mais fluida e participativa, ou as câmeras em angulações incomuns para aumentar o clima sombrio e distorcido. É indiscutível que dessa vez ele utilize melhor as técnicas para conduzir a história ao invés de abusar dos jump scares, aqueles elementos jogados repentinamente na tela com um som estrondoso para causar sustos deliberados. Não significa que eles não existam aqui, pelo contrário, qualquer coisinha ainda é motivo para um barulho atrapalhar a experiência, e muitas cenas acabam não funcionando, seja porque o efeito sonoro desnecessário atrapalha, seja porque a cena realmente é fraca e o som evidentemente entra para obrigar o espectador a ter alguma reação. E o primeiro motivo ainda é o grande vilão, na mesma intensidade que no filme anterior.

A história em si não é muito diferente, outra vez baseado em um fato real, e um dos mais investigados e explorados pela mídia até hoje, sobre uma família que passa a ser atormentada por eventos sobrenaturais. Enquanto na história anterior era um espírito, aqui será uma entidade, o que faz a situação ficar mais séria de maneira que Lorraine afirma jamais ter visto, e que se o inferno for como ela visualizou, ela espera não ter a mesma experiência nunca mais. Uma situação um pouco complicada para a franquia quando a personagem afirma isso porque automaticamente já diminui a complexidade de qualquer filme seguinte, mas enfim... ignoremos porque os roteiristas irão ignorar também. Mas não ignoremos o fato de que a Igreja Católica e os dogmas religiosos novamente conduzem muitas situações outra vez, quando, para dar uma variada, poderiam servir como elementos de dúvidas e questionamentos. Mas ninguém quer cutucar leão com vara curta. Falar sobre demônios pode, mas duvidar da fé não.

Aos poucos é possível perceber uma maior maturidade no diretor para construir a atmosfera que pretende, como a colocar elementos aleatórios em segundo plano nas cenas, fazendo o espectador ser pego de surpresa não porque foi jogado na tela, mas porque ele próprio, de soslaio, percebe que no fundo do cenário, ou no canto da tela, tem alguma coisa estranha na parede ou na cadeira de balanço, por exemplo. Coisas que sempre funcionam muito bem para dar aquele arrepio na espinha de que alguma coisa errada acontece, o tal elemento inusitado que desafia a percepção que há muito tempo eu não via ser feito em filmes de terror, porque na verdade é isso o que mais assusta, é o inusitado, a aparição de algo que está lá, mas você não nota de imediato.

Outra coisa muito interessante, e mérito dos roteiristas Chad e Carey Hayes, é fazer os eventos acontecerem sem ordem. Chega daquela história cliché de fantasminha ser calculista e ficar quieto quando a polícia estiver perto ou só pregar peça nas crianças quando os pais estiverem dormindo. Não importa quem seja ou que horas seja, as coisas acontecem mesmo assim, quebrando a sensação de obviedade que os filmes do gênero costumam ter.

O problema é que, ao mesmo tempo que os roteiristas dão dois passos à frente com essa interessante sacada, eles voltam ao mesmo lugar dando dois para trás ao criar conflitos incoerentes, como no caso de diversos personagens não acreditarem que a família Hodgson esteja sofrendo com atividades sobrenaturais, mesmo todos eles sendo testemunhas de vários acontecimentos, incluindo os próprios protagonistas. Sim, incluindo Ed e Lorraine Warren.

Chega a ser inacreditável a repetitividade com que os personagens discutem a realidade dos fatos, mesmo quando eles mesmos sofrem alguma violência que não tem explicação lógica, como na sequência em que Ed é atacado no porão, mas logo em seguida acredita que tudo possa ser uma farsa. A situação culmina ao ridículo quando o casal de investigadores até abandona a família "por falta de provas". Momentos como esse que nos perguntamos como os roteiristas são capazes de dar reviravoltas tão absurdas e impensadas, e como um diretor que tentou se consagrar no gênero permitiu descontextualidades tão grandes assim.

Muitas vezes um filme de terror não depende de sua história para ser aterrorizante ou simplesmente causar um ou outro medo, mas as incoerências aqui são tão grandes que realmente acabam ferindo o resultado final. É claro que para os espectadores menos atentos isso tudo será praticamente irrelevante porque existem outros elementos que para eles chamarão mais atenção e foram, na verdade, as razões de se interessarem pelo filme, como as figuras da Freira ou do Homem Torto. A Freira realmente é uma figura perturbadora, rendendo sequências bastante obscuras e que vão fazer muita gente acender a luz antes de sair de frente da televisão. Mas aí voltamos ao mesmo problema de dois passos pra frente e dois para trás quando apresentam o Homem Torto, uma figura mais cômica do que assustadora, feito inteiramente em computação gráfica, sem o menor impacto ou importância na história, pecando no excesso, mais parecendo um personagem que saiu de algum filme de Tim Burton do que outra coisa.

Ou seja, Wan pode ter a visão necessária para criar um bom filme de horror, mas precisa aprender a abrir mão de elementos comerciais demais, apelativos apenas para atrair a atenção do público, mas não na manutenção do universo que ele cria. A partir daí podemos ter uma noção do que poderão ser os filmes que se originarão desses personagens. Até porque é aquilo que sempre digo: o cinema nunca consegue se dar bem quando tenta explicar a origem de um mal, e toda vez que alguém se aventurou a isso, como fizeram com Freddy Krueger, Jason, Leatherface, e outros, acabou destruindo os conceitos originais. E além de Wan não ser o diretor responsável por esses filmes, muito menos será da terceira parte de Invocação, segundo ele informou em uma entrevista. Então podemos ter certeza que a exploração desenfreada do gênero outra vez será a razão de seu retrocesso.

Ou seja: novamente dois passos pra frente, e dois para trás.

AINDA HÁ ESPERANÇA PARA O TERROR...

★★★★★★☆☆
Título: Invocação do Mal (The Conjuring)
Ano: 2013
Gênero: Terror
Classificação: 16 anos
Direção: James Wan
Elenco: Vera Farmiga, Patrick Wilson, Lili Taylor, Ron Livingston
País: Estados Unidos
Duração: 112 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma família começa a ser perturbada por espíritos assim que se muda para um nova casa.

O QUE TENHO A DIZER...
Invocação do Mal foi a tentativa de James Wan dar continuidade ao gênero que ele acredita ter se dado tão bem.

Depois do sucesso de Sobrenatural (Insidious, 2010), o diretor acabou "tropeçando" na biografia de Ed e Lorraine Warren, dois investigadores paranormais que dedicaram suas vidas a esse tema, alegando terem participado e investigado diversos casos, sendo o mais famoso deles o de Amityville, incansavelmente explorado pelo cinema. Lorraine ainda vive, aos 91 anos, enquanto Ed faleceu em 2006, aos 76 anos. Segundo Wan, a história do casal já era interessante sozinha, mas eles também tinham diversas experiências documentadas tão fantásticas que poderiam ser exploradas no cinema de igual forma.

E foi o que ele fez aqui, pegando a história da família Perron, que havia se mudado para um lote no interior de Rhode Island, nos Estados Unidos, onde havia vivido uma bruxa no século XIX que, segundo o casal Warren, almaldiçoou o lugar, condenando todos que morassem lá depois dela à morte. Obviamente que o roteiro de Chad e Carey Hayes adapta livremente o que os Warren estudaram, mas consegue fazer um trabalho descente com o gênero em pleno século XXI, onde os filmes de terror que seguem estruturas mais clássicas não mais assustam porque a audiência se acostumou com o exagero e o sensacionalismo explícito.

Recentemente, em uma entrevista para promover seu próximo filme, A Freira (The Nun, 2018), mais uma extensão do universo que ele tem criado em cima das histórias dos Warren, Wan afirmou que sua intenção é resgatar o respeito que os filmes de terror merecem. Vale dizer que, por ironia do destino, ele mesmo foi um dos maiores responsáveis pela mudança de percepção do público daquilo que passou ou não a ser considerado assustador.

Quando lançou Jogos Mortais (Saw, 2004), Wan não imaginava o quanto seu thriller sanguinário influenciaria o gênero nos anos seguintes. Na época em que foi lançado, ele realmente impressionou por ser explícito e trazer um terror visual tão contundente e chocante que automaticamente o gore voltou a ser explorado em demasia pelo cinema. Os filmes posteriores a ele, incluindo suas sequências, abandonaram a exploração do gênero pelo lado psicológico e técnico, oferecendo cenas de susto fácil ao jorrar suco de tomate pela tela ao desmembrar, decapitar, escalpelar ou dissecar personagens de maneira explícita. Foi instaurado aí um outro nível tolerância ao gênero, e aqueles que ainda apostavam no terror mais clássico e sobrenatural, sofreram com essa resistência do público ao que era mais subliminar ou subjetivo, e filmes que não tivessem alguns elementos desses estavam fadados ao fracasso ou ao esquecimento.

Mas a felicidade de Wan é que sua percepção sobre como contar histórias é diferente, e mesmo que ele tenha contribuído com o aumento da tolerância visual na qual os espectadores ficaram expostos nos filmes de terror, talvez ele tenha notado o rumo absurdo e gratuitamente violento no qual o gênero caminhou por conta disso e preferiu resgatar certas origens. Foi a partir de Gritos Mortais (Dead Silence, 2007), que não chega a ser um spino-off de Jogos Mortais, mas ainda é um evidente reaproveitamento e uma referência direta do que Jigsaw representou em seu filme anterior, que o diretor percebeu que era possível expandir idéias e universos apresentados em uma história, o que ele começou a explorar com mais profundidade depois do sucesso de Sobrenatural, que abriu portas para ele solidificar uma legião de fãs que viriam garantir a ele uma estabilidade suficiente para fazer o que ele agora faz: contar histórias de terror de maneira um tanto autoral, já que as idéias são originalmente dele.

Enquanto Sobrenatural já está indo para seu quarto filme, Invocação do Mal não só vai ter sua terceira parte como também tem dois spin-offs, Annabelle e sua sequência (2014/2017) e o já mencionado A Feira, a estrear este ano. Portanto, Wan se tornou uma grande referência do gênero, mas isso não significa que ele seja excelente para isso.

Wan é muito bom para criar histórias e personagens, mas como diretor ainda peca bastante em diversos aspectos porque seu estilo puxa muito mais pro suspense do que para o timing certeiro que o terror exige. Ele consegue construir personagens e atmosferas, mas por muitas vezes opta pelo susto fácil com elementos clichés, como o uso indevido do som naqueles típicos "barulhões" sem sentido que acontecem quando algo surge repentinamente na tela, artifício manjado e usado com excesso. E o engraçado é que não era necessário. Várias vezes voltei a cena e deixei no mudo só para perceber se a sensação de espanto ou surpresa teria sido a mesma. A conclusão foi que, sim, a construção das cenas são boas o bastante para, sozinhas, as técnicas visuais funcionarem mais do que as sonoras. Uma pena que ele não percebeu isso antes porque muito desses efeitos sonoros inúteis poderiam ter sido evitados, e a sensação aterrorizante e incômoda daquilo que desconhecemos teria sido muito maior.

O mesmo sobre elementos narrativos que também não apenas já foram usados incansavelmente, como também reforçam a presença de uma cultura religiosa que chega a ser desrespeitosa não com a religião em questão, mas da forma imperativa como ela é representada.

Depois de O Exorcista (The Exorcist, 1973), é praticamente impossível fazer um filme que tenha uma narrativa parecida, ou que leve a narrativa para esse fim, e que consiga ficar livre de comparações com o clássico de William Friedkin. E é isso o que acontece quando o filme caminha para sua conclusão e um dos personagens é finalmente possuído pelo espírito maligno. Sabemos que a igreja será procurada, que o padre precisa de provas e da aprovação do Vaticano, mas de alguma forma alguém corajoso o suficiente irá ler o sagrado texto em latim e o demônio voltará pisando alto pro inferno. Sabemos porque sim. 99% dos filmes com possessão segue esse protocolo. Não precisamos de mais um filme contando essa história, assim como não precisamos de mais um filme mostrando o personagem possuído ficar desfigurado enquanto vomita na cara das pessoas.

Foi aí que parece que a sacada de cobrir o personagem com um lençol se tornou uma coisa simples e quase genial, uma forma de querer dizer: "ok, todo mundo já sabe o que vem depois disso, então ninguém precisa ver de novo". Mas nada disso ameniza o fato de que, sinceramente, não precisávamos de mais uma sessão dessas. E aí entramos na outra questão, a da religiosidade e da constante necessidade da cultura cinematográfica em nos obrigar a crer que a Igreja Católica é a grande salvação para qualquer mal. Eu me perguntava durante as cenas do exorcismo se apenas católicos são possuídos, e se rituais como esse são feitos apenas por padres católicos. E não, não são. Embora igreja e espiritualidade sejam dois temas que podem ser muito bem explorados (como foi em O Exorcista), em um determinado momento o padre diz a Ed (Patrick Wilson) que o exorcismo não pode ser feito porque a família não frequenta a igreja e as crianças não são batizadas, e é exatamente este ponto que me incomoda, porque na maioria das vezes não consigo considerar algo bom essa constante demonização de pessoas taxadas de "pagãs", ou a constante pregação de que apenas a Igreja Católica seja capaz de expulsar o mal. O mundo não é feito apenas de católicos, e o cristianismo não é a única vertente religiosa que existe.

O grande mérito do filme é, acima de qualquer coisa, ter um elenco bom e tentar manter a técnica a mais presente possível. Pode não espantar e tirar o espectador da cadeira, ou deixá-lo roendo o toco das unhas de medo, mas Wan conseguiu criar diversas sequências bastante obscuras e que surpreendem justamente por tentar reaver o clássico e abandonar o excesso visual. Seu pecado foi não ter se atentado de que o terror é sempre sutil, e se tivesse permanecido assim do início ao fim, sem obrigar situações ao impor alguns efeitos sobre a estrutura narrativa, sem dúvida Invocação teria causado um impacto muito maior do que permite.

quinta-feira, 15 de março de 2018

NÃO JULGUE PELA CAPA...

★★★★★★★★★☆
Título: A Grande Jogada (Molly's Game)
Ano: 2017
Gênero: Drama, Biografia
Classificação: 16 anos
Direção: Aaron Sorkin
Elenco: Jessica Chastain, Idris Elba, Kevin Costner, Michael Cera
País: China, Estados Unidos, Canadá
Duração: 140 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Sobre uma competidora de nível olímpico que se torna uma das maiores gerenciadora de jogos de poker em Hollywood e Nova York, para depois ser alvo do FBI.

O QUE TENHO A DIZER...
Jessica Chastain não é ainda um nome memorável, ou que imediatamente remeta à imagem de uma grande e popular estrela, como acontece como Julia Roberts, Meryl Streep ou Nicole Kidman.

Não nos lados de cá.

Se você não é uma pessoa que assiste filmes com regularidade ou pouco se importa com fichas técnicas, provavelmente deixou passar em branco muitos títulos em que ela foi protagonista em algum momento, talvez aí a razão de seu nome sequer soar familiar. O que é uma pena, porque Jessica é, junto com Amy Adams, uma das maiores atrizes de sua geração no momento. Não é à toa que, quando interpretou a socialite expansiva e engraçada, mas que por trás dessa imagem vulnerável escondia a sobrevivência de uma avassaladora violência doméstica em Histórias Cruzadas (The Help, 2011), tudo mudou. Ela concorreu ao seu primeiro Oscar como coadjuvante e daí pra frente sua carreira engatou a sexta marcha e nunca mais parou, protagonizando filmes com personagens determinadas, em sua maioria baseadas em figuras reais que tiveram uma grande história em meio a situações lideradas por homens.

A Grande Jogada segue esse mesmo perfil que se tornou a marca registrada da atriz, que entre uma ou outra produção séria, acaba fazendo filmes mais despretensiosos, mas que estão longe de ter a mesma qualidade narrativa e construtiva que a maioria de seus filmes tem.

Aqui ela vai interpretar Molly Bloom, uma garota de classe média que cresceu praticando esqui livre e se profissionalizando em nível Olímpico na adolescência, cujo pai, além de ser seu treinador, era professor universitário e médico psiquiatra. Mas depois de um acidente que quase lhe custou a vida durante uma competição, abandonou o esporte e foi cursar faculdade de direito. Ou melhor dizendo, tentou.

O filme é baseado na biografia da verdadeira Molly Bloom, que descreve sua trajetória desde uma mera competidora de nível olímpico até se tornar uma das mais influentes gerenciadoras de jogos em Hollywood e Nova York.

É sem dúvida uma daquelas histórias que só acontecem no mundo financeiro e megalomaníaco do Estados Unidos, lugar onde se concentram as figuras mais excêntricas dispostas a qualquer coisa para atingir o cultural sonho americano do sucesso e da fama. Guiadas por essa cultura social há gerações, não é de se espantar que a incidência de fraudes, golpes, casos de duplicação de patrimônio a curto prazo ou enriquecimento ilícito tenham os números mais expressivos nesse país. Como as chances de se dar bem de forma fácil são sempre pequenas, basta uma oportunidade para se deixarem cair na tentação, sendo exatamente assim como nossa protagonista irá sair do subúrbio para o mundo do luxo e da influência social e fatalmente se tornar um dos maiores alvos do FBI.

O que sabemos desde o princípio é que Molly, assim como o filme e o livro no qual é baseado, nunca irá falar toda a verdade que acontecia nos bastidores e nos anônimos encontros de jogatina que ela organizava, mas o que podemos ter certeza é que ela é uma pessoa de confiança, e que a traição nunca fez parte de seus planos para alcançar seus objetivos, nem mesmo quando ela mesma foi traída. Caso fosse assim, tenho certeza que ela não estaria viva para contar essa história.

Logo no começo do filme é possível perceber que tudo será construído em cima de uma narrativa rápida e bastante visual, por muitas vezes até difícil de acompanhar mesmo quando tenta ser o mais didático possível, seguindo uma estética parecida com a de outro filme de título até similar, A Grande Aposta (The Big Short, 2015), só não tendo a quebra da quarta parede. A intenção do diretor e roteirista Aaron Sorkin ao fazer isso é reproduzir a maneira rápida e focada como a protagonista pensa, raciocina e coloca em prática.

É um tanto atordoante como os diálogos metralhados acabam se sobrepondo uns aos outros e como a edição picota as imagens em um ping-pong que intensifica mais ainda essa sensação de se perder no meio de uma discussão, não sendo à toa que os momentos mais interessantes do filme sejam exatamente as poucas - mas longas e até incômodas - pausas, principalmente em cenas entre ela e seu advogado, interpretado por Idris Elba. Momentos estes que é possível notar como os personagens estão cansados de argumentar, numa disputa verbal sempre engatilhada pelos pré-conceitos de Charlie e pela falta de confiança de Molly, levando ambos a se testarem constantemente, culminando no emocionante discurso do advogado aos promotores.

Sim, embora ocorra tudo numa velocidade na qual seja fácil o espectador perder o fio da meada, os diálogos são incisivos e interessantes com seus excessos de contra-argumentos, principalmente quando zomba da obviedade e da forma rasa como costumamos observar ou pensar sobre as coisas, ditadas muitas vezes pela mídia desinformativa. Portanto, é interessante assisti-lo em uma noite com tempo de sobra, não apenas pelas suas mais de 2 horas de duração, mas porque esse tempo pode aumentar significativamente dependendo do interesse e do tanto de vezes que você apertar o botão de retroceder para acompanhar melhor muitas das cenas.

No fim, não importa se você irá entender como funciona as estratégias do pôquer ou de como a protagonista conseguia administrar gorjetas, lucros, empréstimos, dívidas, pagamentos ou comissões, porque nada disso fará diferença, nem mesmo elementos ou personagens fictícios que entram para incrementar os conflitos e arcos dramáticos. O resultado final é unica e simplesmente sua determinação de construir um império próprio usando a observação e perspicácia, dominando da noite para o dia um negócio masculinizado e sexista, que acreditava que mulheres neste ramo eram apenas objetos de diversão. O que culmina na situação em que a motivação de Molly para se manter no negócio deixa de ser uma mera ambição para se transformar numa declarada e inconsciente guerra pessoal ao domínio machista opressor que passou a tomar formas violentas e covardes. Maravilhosa a forma como a protagonista resolve montar uma equipe só de mulheres para ajudá-la a recrutar novos jogadores e manipular suas participações, se aproveitando da ignorância dos homens e de suas constantes esterotipações femininas.

Molly Bloom não apenas construiu um império, como sua conduta pacífica e sua política bastante restrita fizeram-na se tornar uma figura respeitável e reconhecida. Mas, como de praxe em histórias de repentino sucesso como o dela, por um pequeno deslize quebrou todos os princípios que a fizeram chegar onde chegou em tão pouco tempo. Decisões mal calculadas que foram responsáveis pela sua queda e seu indireto envolvimento com a máfia. O interessante é que mesmo que o roteiro tente manter a integridade de sua figura, ela mesma não se impede de pontuar seus erros, exageros e deslizes, não com objetivo redentor, mas para mostrar ao espectador que somos nós mesmos os únicos responsáveis pelo nosso sucesso ou fracasso.

No caso, a colocou no centro do radar não apenas de muitos clientes poderosos, como também do FBI, que tentou coagi-la de todas as formas a se tornar uma informante e revelar nomes envolvidos em esquemas que ela mesma desconhecia, ou fazia questão de desconhecer.

Em sua estréia na direção, Sorkins desenvolve um trabalho consistente o suficiente, que pode ter lá suas liberdades dramáticas, mas que acontecem em momentos muito exatos e quebram a seriedade quase sufocante da trama em que a protagonista se envolve. Dramas humanos e comuns, como na conflituosa relação entre a protagonista e seu pai, rendendo uma sequência bastante emocionante e de uma sinceridade que pode parecer até óbvia, mas que assim é vista exatamente quando deixamos de negligenciá-la. O mesmo sobre os alívios cômicos, raros, mas que sempre entram na narrativa ou nos diálogos para dar tempo do espectador respirar e se revigorar nesses breves parênteses.

Os papéis que Jessica tem desempenhado nos últimos anos se superam em qualidade, trabalho após trabalho. Sua performance aqui mantém características que a individualizam das demais, mas possui a mesma consistência e competência vista em Armas Na Mesa (Miss Sloane, 2016) e O Ano Mais Violento (A Most Violent Year, 2014), além de tecnicamente se equivaler ao que Erin Brockovich foi para Julia Roberts, ou Um Sonho Possível foi para Sandra Bullock, ou Eu, Tonya foi para Margot Robbie. Ela não se impota na caracterização física, dando preferência a detalhes que fizeram essas pessoas serem únicas e se destacarem, e dessa vez ela preferiu dar atenção às vulnerabilidades e fraquezas da personagem.

A atriz foi uma das exigências da própria Molly Bloom para que o filme fosse produzido, e segundo ela, foram detalhes que não apenas fizeram as cenas convincentes como muitas vezes fizeram Molly sentir que era ela mesma na tela, tamanha a semelhança das situações com a realidade e da interpretação certeira da atriz sobre sua própria personalidade.

É inacreditável como este filme passou despercebido pelos cinemas, e extremamente ignorado pela temporada de premiações, principalmente o Oscar, cujas indicações da atriz já poderiam ser facilmente equivalentes às 5 indicações que já conquistou no Globo de Ouro nos últimos seis anos. O filme concorreu apenas ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, de um livro que, apesar de seu título enorme e disperso (segundo Molly, decisões de sua própria editora), dizem ter um conteúdo que nunca deveria ser julgado pela sua capa, assim como foi esse o maior objetivo da personagem durante toda sua história.

quarta-feira, 14 de março de 2018

DECLARAÇÃO DE AMOR...

★★★★★★★★☆
Título: Com Amor, Van Gogh (Loving Vincent)
Ano: 2017
Gênero: Drama, Animação, Biografia, Crime
Classificação: 12 anos
Direção: Dorota Kobiela, Hugh Welchman
Elenco: Douglas Booth, Saoirse Ronan, Jerome Flynn, Helen McCrory, Eleonor Tomlinson
País: Polônia, Reino Unido, Estados Unidos
Duração: 94 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Animação baseada nas obras e na biografia de Vincent Van Gogh.

O QUE TENHO A DIZER...
Esta obra genial e trabalhosa é uma biografia diferente porque, através de uma reimaginação da história, fatos reais são contados, e também é uma animação bastante peculiar porque utilizou técnicas que nunca haviam sido usadas antes. Os diretores e roteiristas, Dorta Kobiela e Hugh Welchman, conseguiram fazer deste filme o maior projeto artístico já realizado no mundo ao unir a terceira e sétima arte, além de ser a primeira animação inteiramente realizada com pintura à óleo.

Sem dúvida é uma enorme declaração de amor à vida e obra do pintor, e a vontade de tocar o projeto partiu de Kobiela, depois de passar meses lendo as cartas de Van Gogh, analisando seu estilo e estudando todas suas obras durante um momento muito difícil e particular de sua vida. Muitos foram os obstáculos para tocar um projeto no qual era constantemente afirmado ser impossível de realizar devido às dificuldades técnicas em sequenciar as pinturas e transformá-las em frames (as fotografias que, quando agrupadas, formam um segundo de imagem em movimento) e assim obter-se uma cena. Os diretores foram encorajados a realizar o filme em computação gráfica, mas a idéia era transpor não apenas o estilo de Van Gogh de maneira realista, mas também uma forma de captar sua essência e os sentimentos que seus traços despertam, objetivos presentes em suas obras.

Foi então que, em 2012, vários processos foram testados e eles concluíram que, ao contrário do que diziam, realizar uma sequência em pintura a óleo era algo possível. Com a maturação da idéia, foi criado o chamado "processo de captação do movimento". As cenas foram gravadas com atores reais em um cenário em chroma key, seguidos de uma pós-produção que utilizou um misto de efeitos especiais e computação gráfica para, por fim, servirem como matriz para os mais de 80 pintores contratados de diversas partes do mundo reproduzirem as cenas a óleo utilizando os mesmos traços característicos do pintor.

Outra dificuldade encontrada é que as obras de Van Gogh variavam em tamanho (grandes ou pequenas) e posição (horizontais ou verticais), e como elas são reproduzidas em detalhes por serem as referências principais de todo o longa, era necessário complementar livremente a composição de muitas delas quando seu tamanho era menor que o tamanho do frame de um filme. Muitos quadros também tinham iluminações ou a reprodução de determinadas estações do ano que não condiziam com a narrativa, e por isso foram igualmente adaptados, respeitando os demais elementos originais.

Com exceção dos flash-backs da história, que foram propositalmente realizados com técnicas preto-e-branco justamente para se diferenciarem das demais e preencher lacunas da história, já que são os únicos momentos em que nenhuma obra de Van Gogh foi utilizada como referência, todas as demais respeitaram seus estilos, que nunca foram únicos ao longo de toda sua vida. Há momentos em que é explicita essa diferença entre uma cena e outra porque Van Gogh experimentou várias técnicas em suas obras, se adequando a algumas delas ao longo de sua carreira. O único elemento comum em situações como essa é o protagonista, que acabou recebendo um tratamento mais diferenciado e padrão justamente para se destacar como um elemento fictício.

Mas também é possível notar a diferença de estilos entre os próprios pintores que fizeram parte do projeto, mesmo quando todos tentam, ao máximo, se manterem fiéis aos estilos referentes a cada uma das obras de Van Gogh que inspiraram as cenas realizadas. Mas de nenhuma forma isso reduz a qualidade e o desafio de um filme tecnicamente desafiador e visualmente brilhante, que reuniu mais de 66 mil pinturas, em um total de 800 a 1000 telas, já que muitas delas eram reaproveitadas para se utilizar os elementos estáticos de uma cena e assim os pintores não terem a necessidade de refazer tudo frame a frame, economizando tempo, material e trabalho. Segundo o making of da produção, se todas as pinturas fossem colocadas lado a lado em seus tamanhos originais, seria possível cobrir todo território de Londres ou da Ilha de Manhattan.

A história é uma imaginação sobre os dias que sucederam a morte do pintor, e a partir disso sua biografia será contada de forma bastante resumida enquanto o protagonista tenta desvendar os motivos da tentativa de suicídio de Van Gogh e demais mistérios em torno de sua estranha figura, que ao mesmo tempo que era respeitada por muitos, era vista com bastante estranheza por outros devido aos problemas psicológicos que enfrentava e que a sociedade desconhecia. E por desconhecerem, não sabiam como lidar.

Claro que o estilo diferenciado da animação pode acabar limitando seu público porque não tem a mesma fluidez das produções modernas e comerciais, estando longe de ter o nível de entretenimento que as produções da Disney/Pixar oferecem. É uma animação para um público mais adulto mesmo, aquele que se importa com a terceira arte e que gosta de admirar projetos desafiadores como esse, mesmo que a história também tenha um ritmo bastante lento porque foi criada respeitando a vida e as obras de Van Gogh, e tudo não passa de um pretexto para a exaltação de tudo isso.

Os esforços da produção foram reconhecidos, chegando a concorrer ao Oscar de Melhor Animação em Longa Metragem, perdendo para Viva (Coco, 2017), da Pixar. Isso nos faz voltar à velha questão, desde quando esta categoria foi criada em 2002, do que de fato faz uma animação ser considerada a melhor. Porque ao longo dos anos muitos filmes apresentaram de técnicas inovadoras àquelas que retomaram técnicas clássicas esquecidas, mas a preferência sempre vai para as grandes produções comerciais em computação gráfica e de grande bilheteria, que podem ser bonitos, mas de nenhuma forma se equivalem à originalidade que encontramos, por exemplo, aqui. Mais do que uma história, a Academia deveria observar a técnica, afinal, o que está sendo analisado é a animação acima de qualquer coisa, principalmente quando não há subcategorias específicas para o gênero, o que poderia e deixaria tudo muito mais dividido e democrático se existisse.

De qualquer forma, Com Amor definitivamente nos motiva a mergulhar na cabeça do pintor, não nos seus problemas e dificuldades, mas na maneira bastante simples e ingênua como ele enxergava o mundo, coisas e pessoas, criando cenários que, mesmo bastante lúdicos na sua expressão, nunca deixam de ser verdadeiros em suas formas e traços.

segunda-feira, 12 de março de 2018

PRETENSÃO MAIOR QUE A IDÉIA...

★★★★☆
Título: Os Defensores (The Defenders)
Ano: 2017
Gênero: Ação, Super Herói
Classificação: 16 anos
Direção: Vários
Elenco: Charlie Cox, Krysten Ritter, Mike Colter, Finn Jones, Elodie Yung, Sigorney Weaver
País: Estados Unidos
Duração: 47 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Assim que Nova York começa a ser ameaçada por uma organização secreta chamada Tentáculo, quatro heróis acabam tendo seus caminhos cruzados e descobrem que para salvar a cidade precisarão uns dos outros.

O QUE TENHO A DIZER...
Os Defensores foi um projeto ambicioso, pois tinha a intenção de ser o primeiro maior crossover de heróis na televisão, e o segundo maior da Marvel depois de Os Vingadores. Não foi à toa que ele seguiu à risca o mesmo caminho traçado pela Marvel nos cinemas, apresentando os heróis individualmente em suas respectivas séries para, só depois, a mini-série de oito capítulos ser oficialmente lançada.

Demolidor (2015) foi um enorme sucesso, o primeiro herói do selo a ter um conteúdo adulto, e por isso abordou muito bem a violência urbana e a máfia novaiorquina em meio à sua fantasia. A crítica foi extremamente positiva outra vez com Jessica Jones (2015), cheio de metáforas feministas e empoderadoras que carregam a história para um suspense psicológico às vezes até perturbador. Luke Cage (2016) foi igualmente bem recepcionado, resgatando o gênero blaxploitation que engrandece qualquer intenção do personagem em trazer para o primeiro plano a cultura negra e hip-hop.

Mas quando Punho de Ferro (2017) chegou, a parceria da Netflix com a Marvel levou seu primeiro tombo. Depois de três séries aclamadas, a expectativa para o quarto e último personagem era muito alta. Mas a história fraca, personagens mal construídos e uma trama inconsistente fizeram a decepção do público ser maior. Isso teve um impacto direto no lançamento d'Os Defensores porque o público já estava com um senso crítico muito elevado, e depois de Punho, tudo apontava que a reunião dos heróis não poderia ser tão boa quanto se imaginava.

E realmente não foi. A recepção foi morna, a crítica foi mista, e falharam ao entregar aquilo que cultivaram por três anos.

Quando o último episódio chega ao fim, nos perguntamos qual a razão da tentativa de todo esse grande espetáculo, já que o resultado final mostrou que nada daquilo era necessário, pois não evoluiu para qualquer lado a história de cada um dos heróis, e muito menos teve uma grande trama que justificasse a presença ativa de todos.

Seu grande erro foi tentar enfiar muitos conflitos ao mesmo tempo de uma vez só. Tem os heróis com seus conflitos pessoais e individuais, os conflitos que criam entre si, os conflitos de interesse que a trama cria, os conflitos que terão com seus antagonistas, os conflitos entre os antagonistas, e por aí vai. São cenários com muita hostilidade para serem diluídas ou resolvidas, caindo em situações clichés inócuas e aquilo que foi o maior desastre de toda a produção: tentar desenvolver em cima de tudo isso alguma química entre os protagonistas.

Sabe-se que nos quadrinhos Os Defensores foi um grupo com diversas formações, assim como Os Vingadores. Não havia necessidade de fazê-los aqui um grupo conflituoso, em meio a tantas tramas paralelas que naturalmente desenvolveriam isso por eles. Até mesmo a tentativa de fazer Luke Cage e Punho de Ferro serem uma dupla foi um fiasco, já que nos quadrinhos eles são amigos, sendo a relação entre personagens mais aguardada pelos fãs e um banho de água fria para os mesmos.

O que se vê com a mini-série é um festival de papo-furado entre quatro pseudo super-heróis com personalidades difíceis e irredutíveis que se chocam com personalidades individualistas e mau-humoradas o tempo todo, deixando evidente que eles estão desconectados uns dos outros e que em nenhum momento o contrário vai acontecer porque os diálogos sofríveis e a relação que o roteiro cria entre eles não vai deixar isso acontecer em momento algum.

E desconectados eles também estão do universo que estão inseridos. A maioria dos acontecimentos do universo Marvel ocorrem em Nova York, que é onde todos eles estão e onde toda a trama principal se desenvolve, mas a constante negação dos personagens daquilo que são e daquilo que podem fazer não convence que a Nova York que estão é a mesma que foi defendida por Homem de Ferro e seus amigos, já que os eventos de Demolidor, e das séries seguintes, ocorrem um ano após os eventos de Os Vingadores.

Explico.

É muito cansativo eles constantemente duvidarem que neste mesmo universo em que vivem podem existir coisas estranhas e bizarras, ignorando completamente que eles mesmos não são normais. Um exemplo disso é quando Danny explica como se tornou o Imortal Punho de Ferro, e Luke Cage reage com cinismo por achar a história absurda demais. Danny responde simplesmente dizendo que a história é tão absurda quanto Luke ser à prova de balas. Essa resposta sai até como um desengasgo do próprio espectador, porque neste mesmo cenário temos dois cegos que "enxergam" e uma mulher com super força. E no mesmo teor todas as vezes que a policial Misty Knight entra em cena e nunca acredita que coisas muito mais poderosas do que uma simples arma de fogo podem existir, enquanto um homem indestrutível não só está em sua frente como salvou a sua vida diversas vezes.

Ignorância contextual a níveis extremos.

Essas situações são tão incoerentes por si só que não conseguem sequer ser o alívio cômico que pretendiam, transformando-se em momentos extremamente patéticos não só para toda a série, como para os próprios personagens. O pior é que esse é o comportamento que eles terão ao longo de boa parte dos oito episódios.

Não dá para levar a sério um roteiro que remói o mesmo assunto em todo episódio e que sempre coloca um personagem achando aquilo que o outro diz um absurdo, uma mentira, ou um produto imaginário só para criar conflitos fáceis. As constantes idas e vindas das tramas, principalmente nas decisões individuais de trabalharem ou não em equipe, chega a ser de uma repetitividade dolorosa.

Esses conflitos pobres de personalidade unidimensional não ajudam a dar densidade na história em momento algum, aliás essa irredutibilidade de cada um, e que já poderia ser bem mais amena, considerando que cada um deles já apresentou essas personalidades e já trabalhou com seus traumas e problemas pessoais antes em suas séries individuais, é apenas uma estratégia dramática de atrasar a história e retardar eventos porque toda vez que a história tenta avançar, ou uma relação tende a criar algum vínculo afetivo, alguém puxa ela pra trás. Seja Jessica Jones que sempre vai fazer um comentário grosseiro e mau humorado ou Luke Cage que sempre vai repelir alguma proximidade, ao invés do roteiro evoluir esses elementos, acontece o contrário e eles ficam estagnados.

As gafes aqui também são monstruosas por diversas vezes, como no momento em que Sticky usa um incenso para intoxicar Luke Cage. A fumaça é tão seletiva que não atingiu ninguém mais além dele, e só foi atingir apenas Punho de Ferro porque o roteiro assim quis. E demais outros momentos nas cenas de ação que não condizem com os poderes de cada personagem, numa igual seletividade usada apenas para justificar uma ação ou uma reviravolta forçada.

Enfim, em sua boa parte, a mini-série é uma grande decepção. As atuações são ruins, os atores parecem desinspirados e apenas cumprindo uma obrigação contratual. Salvo exceções, não dá pra não enjoar dos cacoetes de Charlie Cox e as caretas que faz para fingir que é cego, da boquinha apertada de Finn Jones pra mostrar que está... sentindo qualquer coisa, ou Elodie Young, que novamente oferece a pior Elektra que a personagem um dia poderia ter.

É inacreditável que os roteiristas tenham feito de heróis tão interessantes um grupo tão fraco e patético, e de uma organização com membros que, em um determinado momento dizem que na última vez que se reuniram ocorreu uma chacina, mal conseguirem se manterem em pé por muito tempo. De todos só sobra a velhinha chinesa que sempre vence apenas com o poder do "rá", enquanto Sigourney Weaver nunca se mostra tão poderosa quanto diz ser, até porque a própria história não consegue explicar ou desenvolver um grande agente motivador que convença o espectador de que o objetivo dos vilões tenha um propósito consistente o suficiente para destruírem uma cidade.

Levando um grande nocaute, Os Defensores não consegue se manter em um ringue onde os heróis se dão melhor sozinhos, em suas próprias séries. O mais revoltante de tudo é que a produção teve uma janela de três anos para projetar tudo até seu lançamento, e a impressão que se tem é de tudo ter sido feito em cima da hora, com os roteiristas escrevendo, literalmente, em cima das coxas.

sexta-feira, 9 de março de 2018

LINDO...

★★★★★★★★☆
Título: Viva: A Vida É Uma Festa (Coco)
Ano: 2017
Gênero: Animação, Comédia, Fantasia
Classificação: Livre
Direção: Lee Unkrich, Adrian Molina
Elenco: Anthony Gonzalez, Gael Garcia Bernal, Benjamin Bratt
País: Estados Unidos
Duração: 105 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um garoto tenta seguir sua carreira musical, mas acaba desafiando toda a tradição familiar, que aboliu a música há quatro gerações, indo parar na terra dos mortos, só conseguindo voltar se encontrar tataravô, um famoso cantor.

O QUE TENHO A DIZER...
Aproximadamente 10% da população nos Estados Unidos é de descendência mexicana. Além de México também ser um dos maiores consumidores diretos dos produtos e da cultura que sai de lá. Por coincidência, este filme foi lançado em uma época muito interessante, em meio à discussão a respeito da imigração ilegal e do Governo intervir diretamente na fronteira entre os dois países, além de decisões drásticas de deportação de imigrantes ilegais e as idéias desumanas que acompanham tudo isso, ferindo a dignidade e os direitos humanos.

É claro que a produção de um longa animado não acontece na mesma velocidade que um filme não animado. Hoje em dia uma animação em longa metragem tem um tempo de produção que pode variar de 3 a 6 anos, dependendo de sua complexidade. Então é um tanto errôneo afirmar que o filme foi lançado propositalmente para confrontar as discussões xenofóbicas e hispanodiscriminatórias que começaram a surgir com a candidatura de Trump à presidência em 2017.

Foi uma coincidência, e uma feliz coincidência, por sinal.

Em primeiro lugar porque o filme é, sem dúvida, uma grande homenagem à cultura mexicana, abusando da reprodução fotográfica e principalmente do complexo significado de algumas de suas tradições. E por ser um país culturalmente abundante, a história foca um momento bastante específico: o popular e mundialmente conhecido Dia dos Mortos. Cheio de detalhes folclóricos inseridos no meio da narrativa, conseguimos compreender porque esse dia tem tanta importância na cultura daquele país, as razões de ser tão respeitado e, acima de tudo, uma celebração à vida e à morte. 

Como é de praxe nos filmes da Pixar, desde antes de ser englobada pela Disney, todos os personagens são extremamente carismáticos, até mesmo os vilões. Aqui não seria diferente, cheios de detalhes que lhe dão personalidades físicas tão distintas que se tornam convincentes, como as bochechas de Miguel, um lado com cova, outro sem, como ele mesmo faz questão de mostrar, porque isso o faz ser único. Até mesmo sua bisavó, tão velhinha e enrugada que é cativante desde a primeira vez que aparece.

Viva não apenas é um excelente entretenimento como também uma grande inspiração por conta da forma como ele aborda diversos assuntos, oferecendo às crianças - sempre o público alvo das animações - um outro ponto de vista sobre a morte e à perda, que mais do que algo simplesmente mórbido, pode ser belo, significante, alegre e colorido. Além da importância da manutenção da memória e dos laços familiares, que obviamente não se limitam apenas a isso, e acabam sendo metáforas sobre tudo aquilo que seja importante na vida e na cultura que nos rodeia, que faz parte de nossas raízes e que precisam ser mantidas, caso contrário se tornarão esquecidas e perdidas no tempo como ouro em pó.

Ao contrário de outros filmes e diretores que já abordaram o outro lado da vida de maneira lúdica, como os filmes de Tim Burton, A Noiva Cadáver (2005) ou Frankenweenie (2012),  a tendência é sempre seguir para o caminho mais gótico, ou até mesmo mais obscuro, como é Coraline (2009), que não fala necessariamente sobre a vida do outro lado, mas tem a morte como assunto embutido nesse filme de Henry Selick, baseado na história de Neil Gaiman. Mas em Viva a abordagem é totalmente contrária. Transita entre os momentos dramáticos e cômicos com uma leveza agradável, se transformando naquele filme que abraça o espectador de maneira tão confortável que somos transportados para um universo que não queremos sair nunca mais.

A transição de Miguel entre a terra dos vivos e dos mortos, e as figuras que ele encontra no meio do caminho, nos dá oportunidade para descobrir e conhecer as referências e os significados de mínimos detalhes, como o uso de cores e desenhos, a origem de determinados simbolismos e até a função de coisas que, para quem desconhece a cultura, deixam de ser unicamente decorativos, e cada um deles passa a ter vida e razão de existir.

Tudo é construído com tanto respeito, delicadeza e cuidado que é impossível não se hipnotizar pela forma como o protagonista nos conduz na busca pela realização de seus sonhos, mostrando que a quebra de preconceitos são necessárias, e que só conseguiremos isso quando pararmos de seguir regras cujos motivos se perderam no tempo, e que a necessidade de nos familiarizar com aquilo que desconhecemos é um grande e importante passo para isso. Ou seja, precisamos evoluir e nos atualizar, mas nem por isso esquecer nossas origens.

Os desafios nos quais Miguel se sujeita enfrentar para atingir seus objetivos é inspirador, e o roteiro poderia ter mantido a forma como se desenvolve até próximo de seu fim, sem a necessidade de criar personagens maniqueístas óbvios, como é de praxe em toda animação ou história fantástica. Por um instante fiquei até impressionado como tudo se desenvolveu tão bem sem a maldade ter que se tornar o maior obstáculo do enredo, mas quando a reviravolta na jornada do protagonista acontece, vilões surgem e aquela tradicional, batida e desnecessária briga do bem contra o mal toma forma. Nesse instante, parece que todo o conceito brilhante que o filme teve até então se perde. Nada que estrague a experiência, mas que teria calhado muito bem se tivesse seguido por um caminho que não buscasse essa resolução cliché da maldade ter que se fazer existir para exaltarmos a felicidade e o poder do bem. O vilão não precisava ser um vilão, poderia ser o mesmo personagem carismático como foi apresentado a princípio, e toda a conclusão poderia ter sido apenas uma questão de engano, um acidente, e não de deliberada falta de escrúpulo.

A animação é tão cuidadosa ao falar da morte e de como ela é um processo natural, e de repente mostrar um assassinato por uma ambição vazia digna de (vejam só) uma novela mexicana, foi uma derrapada feia.

Mas tirando este mero detalhe, é um maravilhoso material que deve ser apresentado as crianças, e toda sua simbologia deveria ser minuciosamente explicada para que elas percebam que o mundo não precisa ser tão horrível quanto pareça, e nem tão fantasioso para ser encoberto, mas que pode existir um meio termo que faça a transição entre um e outro se tornar leve e menos traumática conforme as noções da vida adulta e da maturidade começam a marcar sua presença.

quinta-feira, 8 de março de 2018

A VIDA DEPOIS DA TRAGÉDIA...

★★★★★★★★☆☆
Título: Três Anúncios Para Um Crime (Three Billboards Outside Ebbin, Missouri)
Ano: 2017
Gênero: Drama, Crime
Classificação: 16 anos
Direção: Martin McDonagh
Elenco: Frances McDormand, Woody Harrelson, Sam Rockwell
País: Reino Unido, Estados Unidos
Duração: 115 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma mulher desafia as autoridades da pequena cidade ao publicar em três outdoors mensagens sobre a não resolução do assassinato de sua filha.

O QUE TENHO A DIZER...
Três Anúncios é um daqueles filmes em que percebemos que um bom escritor não precisa de muito para uma grandiosa idéia. Segundo o diretor, roteirista e produtor Martin McDonagh, a idéia para o filme surgiu após ficar intrigado com três anúncios sobre um crime à beira de uma estrada durante uma viagem que fazia pela Georgia, na Flórida. Ele nunca foi atrás para descobrir a história de fato, mas quando decidiu por conta própria que a autora dos anúncios poderia ser de uma mãe, todo o cenário fez sentido.

Mesmo a cidade de Ebbin ser fictícia, McDonagh consegue dar vida e características próprias à ela com pouco, utilizando apenas alguns cenários e personagens que já dizem muito sobre o estilo de vida de seus habitantes em um estilo bastante similar ao dos irmãos Ethan e Joel Cohen, este último, por sinal, casado com Frances na vida real. Mas aqui os estereótipos não estão na caricatura, mas centrados na figura e no comportamento. Não há sotaques interioranos, não há personagens falando errado, não há dissimulação ou pessoas cuspindo na rua. O que existe são pessoas comuns vivendo em uma pacata cidade, acostumadas com as ironias do dia a dia e com o comportamento familiar, criando suas próprias leis e rotinas. Uma população pequena e pouco diversificada, por isso preconceituosa, com dificuldade de lidar com suas próprias diferenças, ignorâncias e problemas.

Quando um crime acontece, onde uma garota é brutalmente morta, estuprada e queimada, a cidade rapidamente se esquece, o crime não é resolvido por falta de provas e sete meses depois é como se nada tivesse acontecido. A vida continua e a cidade também. Ou é assim que deveria ser. Embora o sabor amargo da injustiça permeie no ar de alguma forma, junto com o sentimento de impotência que algumas pessoas sentem frente a isso, perceptível principalmente na maneira como Red (Caleb Landry Jones), o responsável pela publicidade local, desafia as autoridades locais mesmo nunca tendo nenhum vínculo com Mildred (Frances McDormand).

O que dificulta o processo é que Mildred não apenas remói suas dores como obriga a cidade a remoer as dores com ela, impedindo que a ferida se cicatrize. Ela perpetua a tragédia por não conseguir se desvincular dela e seguir com a vida, igualmente impedindo que os outros a façam. A dor da perda de um filho é inimaginável e imensurável, e o filme não necessita de flashbacks para mostrar o processo de luto e dor que a protagonista passou. Frances McDormand, em um papel escrito especialmente pra ela, novamente desenvolve um trabalho brilhante, fazendo da personagem nada mais que uma pessoa vazia, apática, sem uma gota a mais de emoção ou sentimento, esgotados pela dor da perda e pelo sentimento de injustiça, sobrando apenas um mero resquício de um humor inexpressivo, como o resto de uma esperança escondida em algum lugar, usados para se defender com suas respostas afiadas e certeiras, oferecendo momentos de excelentes diálogos, como quando repreende um padre com um sermão digno de igreja. Talvez uma das melhores performances de sua carreira, e um merecido segundo Oscar de Melhor Atriz este ano.

Não, não é aquele tipo de filme onde uma mãe militante sai por aí pregando cartazes pela rua e fazendo discursos políticos em emissoras de televisão. Aqui a mãe não se reconhece mais nem como pessoa e nem como parte daquilo que sobrou de uma família. Ela não espera que sua filha volte, mas acredita que a vingança ou a justiça pessoal possa, de alguma forma, preencher o buraco aberto, ou lhe conceder o direito do perdão por erros passados, e só assim obrigando-a a parar de alguma forma.

Mildred não é uma personagem autodestrutiva, mas ela caminha em direção a um trem o filme todo. Contraditório, mas é apenas dessa forma para ela interromper um processo que, em sua cabeça, não tem fim.

Por outro lado, temos Dixon (Sam Rockwell), o policial preconceituoso e imaturo que vive com sua mãe controladora e alcólatra. Suas atitudes inconsequentes são sempre acobertadas pelos demais colegas e, principalmente, pelo respeitado delegado Willoughby (Woody Harrelson), que na intenção de evitar maiores problemas em uma cidade que não precisa delas, não percebe que alimenta mais ainda a constante falta de percepção das pessoas ao fazer isso, ao ponto de um crime bárbaro  ter acontecido e ninguém saber quem foi, ou como foi, deixando um trauma que ninguém esqueceu, mas que também ninguém comenta.

O filme não consegue deixar de ser uma realidade dura da hipocrisia e da injustiça que abraça a sociedade como um caldo grosso e pegajoso, onde dificultar parece ser sempre mais fácil que solucionar, um extremo que naturalmente leva indivíduos a se confrontarem sem sequer lembrarem quem são e quais suas funções. E entre o humor negro e atitudes dos personagens que nos levam a momentos genuinamente emocionantes, o roteiro de McDonagh constrói um arco complexo de reflexões e arrependimentos a cada nova sequência. Uma jornada dolorosa para os personagens e para o espectador, que não apenas sofre com o que eles passam, mas que também sofre em querer compreender toda essa natureza complexa entre aqueles que são incapazes de se desvincularem de um passado, e daqueles incapazes de projetarem qualquer futuro. E de repente os vemos aos poucos mudando suas percepções da realidade, encontrando um denominador comum para interromperem as dores e seguirem suas vidas, independente do caminho escolhido.

Cheio de reviravoltas interessantes e que de maneira intrigante nos faz supor conclusões bastante precipitadas, como a provocar os nossos próprios níveis de preconceito, McDonagh nos insere no contexto discriminatório e do falso julgamento que permeia como fantasma toda a história, cuja percepção mais cômica ou mais trágica partirá do próprio espectador, mas o resultado será o mesmo.

Sem dúvida um dos grandes títulos de 2017, que constrói sua narrativa de maneira lenta, mas compassada, com alguns intercursos desnecessários como o flashback que esclarece a relação entre Mildred e sua filha. Uma sequência que não agrega muito à narrativa além de intensificar ao espectador a angústia da protagonista, esta que já era grande e presente o suficiente sem maiores argumentos.

quarta-feira, 7 de março de 2018

10 MOTIVOS PARA IEMANJÁ DEVOLVER...

★★★☆☆☆☆☆☆☆
Título: A Forma da Água (The Shape Of Water)
Ano: 2017
Gênero: Drama, Fantasia
Classificação: 14 anos
Direção: Guilhermo Del Toro
Elenco: Sally Hawkins, Octavia Spencer, Richard Jenkins, Michael Shannon
País: Estados Unidos
Duração: 123 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma mulher solitária que trabalha como faxineira de uma estabelecimento secreto do Governo constrói uma relação diferente com uma criatura anfíbia capturada para estudos.

O QUE TENHO A DIZER...
01. O filme já começa errado com Sally Hawkins nua, numa masturbação tão frenética que a princípio achei que era a Reagan com o crucifixo...

02. A cena se repete depois.

03. Lá pela metade do filme ela transforma um banheiro em um aquário gigante só colocando toalhas no rodapé. Se eu estivesse no cinema, juro, teria ido embora aí.

04. Fotografia bonitinha e só, mas nada demais porque o filme não sai dos mesmos cenários. Não é à toa que custou só US$19 milhões.

05. Vale a pena assistir pra ver a cara de nojo da Octavia Spencer.

06. Sem dúvida ele nada em muito daquilo que o francês Jean-Pierre Jeunet já fez, não é à toa que ele TAMBÉM acusou Guilhermo-Guilherminho-Guilhermuxo de plágio.

07. Trama simples, confrontos bestas, Guerra Fria como pano de fundo só pra dizer que é profundo. Prefiro Splash! (1983), ao menos não tinha Del Toro fazendo questão de querer esconder que era um filme besta.

8. Ok, o anfíbio é alto, tem sex-appeal e é tarado, E vale a pena assistir pra ver a cara da Octavia Spencer tentando imaginar como ele consegue ser "tarado".

09. Então chega aquele fim bosta que te faz ter certeza de que tudo foi a maior propaganda enganosa do cinema em toda sua existência, e que só Octavia Spencer sabia disso.

10. E tem gente que ainda vai gostar, chorar e dizer que é o melhor filme que assistiu na vida. Lógico. Gosto é igual noção: tem gente que não tem.

terça-feira, 6 de março de 2018

O OUTRO LADO DA HISTÓRIA...

★★★★★★★★☆☆
Título: Eu, Tonya (I, Tonya)
Ano: 2017
Gênero: Comédia, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Craig Gillespie
Elenco: Margot Robbie, Allison Janney, Sebastian Stan
País: Estados Unidos
Duração: 120 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
A história da patinadora Tonya Harding, sua ascensão entre as maiores patinadoras do mundo e o polêmico incidente envolvendo sua rival Nancy Kerrigan.

O QUE TENHO A DIZER...
Eu tinha 13 anos quando Nancy Kerrigan foi atacada.

O vídeo em que aparece chorando desesperadamente de dor depois do ataque, perguntando por quê fizeram aquilo, exatamente como o filme recriou, foi produto do sensacionalismo. Um momento chocante que marcou a memória de muita gente e cumpriu sua função tendenciosa de sensibilizar nações, reproduzida incansavelmente em todas as emissoras do mundo, em tudo quanto foi tipo de programa por semanas a fio todo momento que o nome de Kerrigan era citado, como que a nos lembrar constantemente como ela foi violentada e como merecia nossa infinita compaixão.

Não que não merecesse, mas foi essa persistente idéia que fortaleceu cada vez mais todo o antagonismo de Tonya na história.

As suspeitas de seu envolvimento no ataque já começaram a existir bem antes da final olímpica porque as investigações avançadas já ligavam o caso a seu ex-marido, levando muita gente, incluindo o próprio Comitê Olímpico, a questionar a participação da patinadora na competição.

Acredita-se que a grande imprensa e os meios de comunicação conseguiram influenciar no adiamento do julgamento de Tonya para depois das Olimpíadas para que a mídia, como um todo, se favorecesse com isso mais do que já estava.

O escândalo do ataque se transformou em uma grande história tipicamente americana, na qual Nancy Kerrigan se tornou a grande vítima e Tonya a maquiavélica vilã. A especulação e difamação dos jornais e tablóides foi tão grande que o último capítulo desta grande novela tinha obrigatoriamente que ter como cenário a grande final olímpica, seguida do julgamento. Na falta de Big Brother na época, era assim como a imprensa manipulava casos públicos como esse, transformando fatos em novelas reais, ganhando em troca aumento de audiência e ofertas de anunciantes.

A demonização de Tonya não entra com muita ênfase na narrativa, muito embora seja citada em um momento, quando a protagonista explica que quiseram fazer de Kerrigan a imagem da patinadora perfeita, a princesa do gelo.

E foi realmente assim.

A rivalidade que criaram entre ela e Kerrigan foi desumana, começando pela diferença social entre uma e outra, depois de educação e postura, do vestuário ao tipo de maquiagem. O peso de uma espantosa responsabilidade, criando uma cruel repercussão pública cujas protagonistas eram apenas duas garotas de 23 anos.

Tonya nunca foi delicada e sutil em suas apresentações. Ela era grosseirona e pesada, mas realizava os movimentos com perfeição técnica, inclusive no famoso Triple Axel, um movimento que, na época, apenas duas patinadoras conseguiam fazer, sendo Tonya uma delas, tamanha complexidade.

Esse tipo de rivalidade é algo que historicamente sabemos que a mídia recria de tempos em tempos entre duas personalidades para poder vender notícias, principalmente entre mulheres, inferiorizando-as e jogando-as umas contra as outras, manipulando o cenário como o seriado Feudo (Feud, 2017) mostrou muito bem na verídica história de Bette Davis e Joan Crawford.

O caso entre as patinadoras não foi diferente. Foi uma situação tão fora de proporção e psicologicamente devastadora que nos intervalos da escola eu via garotas tirando par ou ímpar para decidir qual Barbie seria a Nancy (a princesa) e qual seria Tonya (a bruxa). Era algo que na época parecia engraçado e normal, mas lembrando hoje percebo como foi assustador, principalmente depois de assistir ao filme.

O pior de tudo é que naquela época todo mundo comprou o que a mídia vendeu. Por conta disso, é um grande erro atribuir a Nancy Kerrigan o papel de única vítima da história, como ela mesma sempre afirmou, porque Tonya também foi por todos os lados, desde a violência doméstica que sofria da mãe e do ex-marido, até o assédio moral e psicológico por toda a mídia e imprensa. E o resto do mundo foi responsável por isso também a partir do momento que alguém escolheu um lado, tal como faziam as meninas com suas Barbies, pois foi exatamente isso que a indústria do entretenimento e o Comitê Olímpico quiseram, tanto que a apresentação final é, até hoje, uma das transmissões mais assistidas da história da CBS.

Logo no início, o filme deixa claro que é baseado em entrevistas reais feitas com Tonya Harding e Jeff Gilolly, livre de ironias e extremamente contraditório. Essa explicação, que por si só já é irônica e dá início ao tom cômico da narrativa, não é aleatória. Segundo a própria atriz Margot Robbie, todo mundo tem a sua opinião a respeito do que aconteceu, mas o que o filme tenta fazer é dar a oportunidade que Tonya nunca teve: de contar a sua versão, e não aquela que todo o espetáculo criou e vendeu como verdade.

Além do roteirista Steven Rogers construir uma narrativa que favoreça o ponto de vista de Tonya, ele também abusa do humor e da quebra da quarta parede. Isso ajuda na inclusão de parênteses que amarram melhor os fatos, aliviam o peso dramático, e fazem a cumplicidade entre a personagem e o espectador acontecer de forma mais rápida e forte. Há até inserções locutivas que inteligentemente são usadas como mais um elemento de narração, um pouco mais didático, mas ao mesmo tempo um tanto lúdico. Essa junção de diferentes elementos faz a jornada dramática da protagonista ser muito mais convincente e profundamente emocionante. Rogers também evita ao máximo incluir Kerrigan no desenvolvimento, e a personagem entra muda e sai calada em momentos muito pontuais e específicos, somente onde é necessário. Ele não faz isso porque queira favorecer a imagem de Tonya, mas por respeito, evitando distorções da realidade ou o maniqueísmo que imputaram nos fatos.

Quando Margot Robbie foi escalada para o papel, a primeira coisa que pensei na época foi: "ok, mais uma atriz que precisa de uma biografia para ganhar um Oscar". E me enganei duas vezes. Uma porque ela não ganhou o Oscar, embora merecesse caso 2018 não tivesse sido tão bem concorrido, e duas porque, assim como em Esquadrão Suicida (2017), Margot simplesmente domina cada centímetro de espaço em cena, sendo até arrepiante em algumas delas, como nos momentos antes da sequência da apresentação final, em que não existe nada mais no cenário além dela e a câmera, uma construção cênica frequente no filme e que Gillespie não tenta fazer disso momentos melodramáticos gratuitos, mas porque a interpretação da atriz realmente merecia ser destacada da mesma forma como Allison Janney foi, esta que atua numa força avassaladora, merecidamente dominando a temporada de premiações desse ano.

Sobrou espaço até para fazer uma autorreferência bastante engraçada à sua personagem Harlequina, de Esquadrão, pela qual ficou famosa.

E com um treinamento exaustivo, Margot realizou boa parte das cenas de patinação que são mescladas com as cenas com dublê de forma imperceptível graças à edição. Não é à toa que o filme também concorreu nesta categoria, porque é esse um dos fatores mais mágicos de todo o visual e que o faz manter o ritmo, junto à fotografia digna de nota e um figurino que reproduz com quase perfeição a década de 90.

Aliviar o peso dramático e intensificar o humor foi uma maneira interessante de também amenizar a responsabilidade de um assunto que foi explorado à exaustão e desgastou muita gente envolvida. Mas isso infelizmente acabou sacrificando detalhes da história que teriam justificado melhor esse ponto de vista mais indulgente, como a já dita ausência da manipulação midiática que existiu e que polarizou a opinião popular; ou da dissecação pública da vida de Tonya que levou a devastação da sua imagem, onde qualquer coisa era motivo para uma capa de jornal ou tablóide.

A relação dela com seu pai também foi pouquíssimo explorada. Se mostrou tão forte e importante no começo do longa, mas depois foi completamente esquecida, da mesma forma que esqueceram do fato de que Al Harding estava na arquibancada da apresentação olímpica apoiando sua filha, um detalhe fundamental desperdiçado na história que mostra que ela não passou por tudo sozinha, como o filme dá a entender.

Hoje a mídia reconhece a maneira brutal como lidaram com o assunto na época. A sentença do julgamento com a consequente perda permanente do direito de Tonya participar de competições ou se beneficiar profissionalmente da patinação de qualquer maneira que fosse, bem como ter sido banida de diversos reconhecimentos competitivos e olímpicos, como se nunca tivesse existido, ainda é motivo de estudo e controvérsia.

Ao longo dos anos Tonya incansavelmente relatou, inclusive em sua própria biografia, que ela nunca soube do ataque, embora tenha chegado a ouvir conversas entre Jeff, seu ex-marido, e Shawn, o lunático que trabalhou como seu guarda-costas, que jamais a levaram a entender que era sobre algum provável plano porque eram assuntos corriqueiros sobre rotina de treinos e competições. Até porque as investigações nunca conseguiram encontrar provas que realmente ligassem Tonya como a mandante do crime, como os acusados alegaram.

Gillespie conseguiu pegar um fato polêmico e controverso e fazer disso um filme biográfico respeitável que certamente foge de padrões narrativos típicos de filmes do gênero e que fizeram total diferença aqui como material de entretenimento, que além de divertir também emociona, como também oferece a oportunidade do espectador interessado conhecer o outro lado da história, que entre aquilo que pode ser verdade, mentira ou exagero narrativo, deve ser respeitado da mesma forma (ou até mais) que os 24 anos de história que favoreceram apenas o lado de Kerrigan.
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