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sábado, 23 de agosto de 2014

O ESPELHO DA RELAÇÃO...

★★★★★★★
Título: Complicações do Amor (The One I Love)
Ano: 2014
Gênero: Comédia, Fantasia, Drama, Romance
Classificação: 14 anos
Direção: Charlie McDowell
Elenco: Mark Duplass, Elisabeth Moss, Ted Danson
País: Estados Unidos
Duração: 90 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Na tentativa de recuperar um casamento que está nos seus últimos suspiros, um casal resolve passar um final de semana em uma casa de campo para tentar recuperar o que resta, chocando frente a frente com os sucessos e fracassos de cada um.

O QUE TENHO A DIZER...
O que aconteceria se um casal tivesse a oportunidade de poder voltar a encontrar em cada um deles a essência daquilo que os deixaram apaixonados um pelo o outro? E como reagiriam se pudessem trocar o que são pelo que já foram? É essa a questão levantada na estréia tanto do diretor Charlie McDowell, quanto do roteirista Justin Lader. Mas ao contrário do que se espera, apesar de alguns tropeços aqui e alí, o filme é muito bem dirigido e o roteiro foi basicamente técnico, com apenas 50 páginas, já que a dupla de atores foi incentivada pelo diretor e pelo roteirista a improvisarem boa parte dos diálogos para manter um nível de cumplicidade maior e que com certeza são sentidas pelo espectador.

A história começa com relatos do casal a um terapeuta sobre a forma como se conheceram, como se apaixonaram e o esforço que ambos agora encontram para reinventar coisas que deem satisfação aos dois e a continuidade da relação. Esse início é bem parecido com A História de Nós Dois (The Story Of Us, 1999). Mas essa semelhança é interrompida logo depois de 4 minutos de filme, quando recebem uma proposta do terapeuta de passarem alguns dias em uma casa de campo, lugar onde muitos casais voltaram renovados, segundo ele mesmo diz. Até então imagina-se que esta será mais uma comédia romântica qualquer. Ledo engano para quem acreditar nisso.

Embora seja uma comédia romântica, também é um drama muito pontual com pitadas de uma ficção fantástica incorporada pelo roteirista apenas para os personagens, ao mesmo tempo que expressam seus sentimentos, também conseguem vê-los do lado de fora da relação quando se confrontam com aquilo que eles já foram, a essência de suas relações e como tudo seria se fosse diferente.

Embora o fenômeno principal que ocorre no filme já é revelado ao espectador logo nos primeiros 15 minutos, dizer logo de cara o que acontece pode tirar a breve e interessante expectativa que a história constrói.

Claro que dentro da proposta de Lader, os personagens irão lidar com sentimentos universais e assuntos corriqueiros de uma relação quando esta já se estagnou pela sua rotina ou pela confiança perdida por conta de alguma decisão errada tomada por uma das partes. Isso não é nada diferente do que outros filmes do gênero já fizeram, mas o diferencial aqui é a forma como Lader dispõe essas discussões e conflitos, e como ele articula tudo de maneira bastante incomum, original e envolvente, fugindo completamente dos clichés. E de situações que para o espectador normalmente seriam bastante familiares em outros filmes, se tranformam em uma experiência completamente distorcida do comum, e dentro dessa esquisitice existe um grande e curioso atrativo.

Com excessão de Ted Danson no papel do terapeuta, desconheço completamente demais trabalhos do casal de atores Mark Duplass e Elisabeth Moss. Duplass é também o produtor do filme juntamente com seu irmão Jay Duplass, e Elisabeth é a estrela do seriado Mad Man. O desempenho dos atores é fundamental para o desenvolvimento da história. Eles não apenas são bastante convincentes como um casal disposto a reconstruir a relação por respeito aos sentimentos verdadeiros que um sente pelo outro como também convencem mais ainda quando representam versões melhores deles mesmos. A edição do filme também foi fundamental para que os diálogos e as diferentes personalidades sejam mostradas sem confusão.

Sem dúvida o grande ponto positivo de todo o filme é a forma como o fantástico é embutido no conflito do casal, criando uma outra dimensão não apenas a eles como também ao espectador, erguendo questões fundamentais e uma forma diferente de se discutir a constante busca pela plena felicidade e os rumos que naturalmente levam a esse insucesso, bem como os excessos, ausências e a constante busca pelo novo e excitante, nos levando a decisões precipitadas para a satisfação momentânea, mas que nunca evitará, por fim, o mesmo fim. Nesse aspecto o filme também se assemelha à moral de Entre o Amor e a Paixão (Take This Waltz, 2011), mas ele não chega a ser tão dramático quanto o filme de Sarah Polley graças ao humor contido na surreal situação em que Ethan e Sophie se encontram.

Infelizmente o clima é quebrado quando o roteiro tenta, de alguma forma, dar explicação ao inexplicável que acontece, e no fim das contas essa redundância deixa tudo mais confuso do que a princípio já era, e aqueles que tentarem encontrar uma justificativa para tudo vai perder tempo e o foco principal da história.

CONCLUSÃO...
Uma história comum, com discussões comuns, dentro de acontecimentos surreais em um filme que, a princípio, é esquisito, mas quando abstrai-se o absurdo e compreende-se que ele foi apenas uma ferramenta para que os personagens possam conflitar saudavelmente entre si, a essência do filme é bastante relevante e atual, e o final acaba surpreendendo.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

VIRA VILÃ, VIRA HEROÍNA...

★★★★★
Título: Malévola (Maleficent)
Ano: 2014
Gênero: Fantasia
Classificação: Livre
Direção: Robert Stromberg
Elenco: Angelina Jolie, Elle Faning, Sharlto Copley, Lesley Manville, Imelda Stauton, Juno Temple, Sam Riley
País: Estados Unidos, Reino Unido
Duração: 97 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma variação da história de A Bela Adormecida, dessa vez mostrada pelo ponto de vista da fada má, conhecida como Malévola.

O QUE TENHO A DIZER...
Malévola é o primeiro filme dirigido por Robert Stromberg, que já chegou a ganhar dois Oscars em Melhor Direção de Arte por Alice (Alice In Wonderland, 2010) e Avatar (2009).

O filme vai contar a história da Bela Adormecida pelo ponto de vista da fada má conhecida como Malévola, e se tem alguém que ainda não conhece esse conto de fadas da Disney é porque ainda não nasceu.

O que pouca gente sabe é que a versão que conhecemos é apenas mais uma variação de diversas versões e variações que a história sofreu durante os séculos. A primeira versão publicada é datada de 1528 e, da mesma forma, acredita-se que seja mais uma variação herdada de contos populares de origens desconhecidas. As versões mais famosas, além da versão da Disney, são as dos irmãos Grimm e a de Charles Perrault.

Tanto as histórias dos irmãos Grimm (sim, eles mesmos fizeram várias versões) quanto a versão de Perrault, são muito mais obscuras do que o conto de fadas adaptado pela Disney. Na versão de Perrault, a princesa chega até a ser estuprada por um rei, a engravidar e dar a luz, tudo durante o seu sono eterno que apenas é interrompido quando tem seu indicador chupado pela sua filha pequena, que suga a maldição injetada pela agulha da roca de fiar.

Não é possível ignorar o fato de que, mesmo tardio, o filme tenta pegar carona no sucesso de Branca de Neve e o Caçador (Snow White And The Huntsman, 2012) e pela rainha má do filme, vivida por Charlize Theron, ter chamado mais atenção do que a própria heroína e a história (lamentáveis por sinal). E é claro que depois de Shrek (2001/2004/2007) é impossível levar um conto de fadas a sério novamente e por essa razão a história mostrada aqui sofreu novas mudanças para se afastar da já conhecida e batida história da Disney, o que fica claro que Malévola é mais uma variação de diversas outras variações, sendo esta a pior delas, sem dúvida alguma.

A idéia principal é até interessante, e o alvoroço sobre o "retorno triunfal" de Angelina Jolie depois de quatro anos conseguiu alavancar o sucesso de bilheteria. Mas a verdade é que não há muita coisa que salve o filme de sua qualidade mediana, nem mesmo a própria atriz.

O filme começa com Malévola sendo apresentada como a fada das fadas, a única com as características que ela tem. Uma garota alegre, feliz, que mora em Moor, um território mágico e colorido almejado pelos homens comuns por conta de riquezas que o lugar esconde. Ela desconhece completamente a maldadade até se apaixonar por Stefan, um jovem plebeu do reino dos homens que a conhece quando criança e a beija pela primeira vez na adolescência, sumindo por anos depois disso. Com a promessa do rei de se tornar seu sucessor aquele que matar Malévola e o reino mágico ser conquistado, Stefan volta para a terra de Moors e, incapaz de assassina-la, arranca suas asas para provar ao rei sua vitória. Enganada, traída e usada, Malévola conhece o ódio pela primeira vez. É por esse ódio que toma conta que ela se torna a vilã que conhecemos. Bom... até certo ponto.

Malévola sempre foi, dentro do conto de fada da Disney, uma vilã sem passado para que julguemos que sua maldade seja uma característica nata. Dar um passado a ela agora deveria ter sido o foco principal e não apenas uma breve introdução. Por conta disso o filme já começa incoerente na forma como esse background doce e inocente do passado da personagem é apresentado, primeiro porque, sem qualquer razão de ser, ela é uma fada boa que possui fisionomia demoníaca e um nome que já carrega em si o significado da maldade. É a mesma coisa que ir pro céu e o anfitrião dizer "Bom dia, meu nome é Satanás". Ou seja, não cola. Não dentro do mundo perfeito e dicotômico da Disney. Frente a tantas mudanças estruturais que a história sofreu, teria sido mais coerente se a imagem da personagem tivesse passado por uma transformação resultante dessa força obscura que lhe tomou conta, e Malévola um pseudônimo adotado para representar toda mudança de caráter. 

Essa insistente mania de Hollywood em vitimizar vilões ou antagonistas para provar que a maldade pode ser transformada e assim morais sejam pregadas, exemplos negativos sejam evitados e apelações dramáticas existam, são os grandes inimigos de qualquer história quando utilizados de forma tão banal como é aqui, porque para Malévola ser personagem principal de um filme ela precisa ser uma heroína, mas como fazer isso com alguém que classicamente é uma das maiores e mais relembradas vilãs dos contos de fada? Dêem a ela o remorso e o arrependimento e assim de vilã ela vira heroína, o mais velho brinquedo da Disney.

A inabilidade do diretor, bem como o roteiro bem aéreo, não souberam ser hábeis o suficiente para dar uma maior percepção de passagem de tempo e profundidade na história, além de outras situações esquisitas como o reino humano e o reino mágico viverem em constante conflito, mas quando princesa Aurora nasce, mesmo sabendo que Malévola ainda vive, o rei Stefen não apenas convida as fadas de Moor para a festa como elas são incumbidas de cuidarem da criança. Ok, isso faz parte dos contos que conhecemos, mas é encaixado com esforço no meio dessa história. Esse é talvez o maior e mais incoerente buraco.

Realmente faltou uma evidente atenção no roteiro, isso porque ele foi escrito por Linda Wooverton, que no passado escreveu os excelentes A Bela e a Fera (Beauty And The Beast, 1991) e O Rei Leão (The Lion King, 1994), ambos da Disney. Explorar a imagem da atriz pode ter ajudado o filme, e a atenção visual dada pessoalmente por ela durante a produção também fizeram grandes diferenças na personificação da vilã, mas isso apenas não basta, até porque a presença de Angelina é sempre muito forte, mas ela nunca foi mais atriz do que estrela. Nem mesmo houve cuidado com os efeitos especiais que mais parecem uma animação mal feita em muitas vezes do que algo grandiosamente competente, como visto em O Senhor dos Anéis, por exemplo. Isso porque uma das experiências profissionais no currículo do diretor é como Supervisor de Efeitos Visuais.

Poderia ter sido um filme memorável e muito mais grandioso do que é caso não tivesse sucumbido às hoje antiquadas filosofias da Disney sobre suas produções, além de ainda acreditarem que a imagem de Jolie compensa um roteiro mal acabado. O resultado de tudo é apenas uma oportunidade para a atriz novamente ser caricata, usar seu horroroso e falso sotaque britânico e mostrar que o que ela realmente gosta é de personagens sombrias.

CONCLUSÃO...
Não vai fazer diferença para o público infantil, mas se a intenção foi de também conquistar o público adulto, ele falha com muita certeza. Apenas os fãs da atriz serão capazes de inventar qualidades para o filme que, em sua essência, pode até ter um ou outro momento, mas não cheira e nem fede, além de estar longe de ser uma variação relevante de um dos contos mais famosos do mundo.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

PARAÍSO DAS DESCOBERTAS E DAS FRUSTRAÇÕES...

★★★★★★★★★☆
Título: Paraíso: Esperança (Paradies: Hoffnung)
Ano: 2013
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Ulrich Seidl
Elenco: Melanie Lenz, Joseph Lorenz
País: Áustria, França, Alemanha
Duração: 92 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Enquanto sua mãe, Teresa, está passando o feriado no Quenia e sua tia, Anna Maria, está curtindo suas férias em penitência, Melanie vai para um acampamento de jovens para emagrecer e a dar seus primeiros passos nas descobertas e frustrações adolescentes.

O QUE TENHO A DIZER...
Esperança (Hoffnung, 2013) é, por fim, a última parte e a conclusão da trilogia Paraíso (Paradies), de Ulrich Seidl, com roteiro escrito por ele e sua mulher, Veronika Franz. 

A história acontece paralelamente às duas partes anteriores. Melanie, filha de Tereza e sobrinha de Anna Maria, vai para um acampamento de jovens enquanto sua mãe passa os dias de feriado em uma praia paradisíaca na costa do Quenia redescobrindo uma vida sexual cheia de decepções, e sua tia fica de férias do trabalho para pregar a palavra divina e oprimir seus próprios desejos carnais.

A princípio tudo parece nada demais no início dessa terceira parte, e como já foi exposto de forma muito breve e implícita na primeira parte da trilogia, Melanie é uma adolescente de 13 anos que lida com uma ausência paterna que não é esclarecida e que tem uma relação um tanto distante com sua mãe, caracteristicas bastante recorrentes e comumente vistas atualmente, pois essa sociedade moderna é a alma principal das análises de Seidl na trilogia.

O comportamento da personagem é como o de muitas outras garotas de sua idade. É desleixada, preguiçosa, sedentária e que passa seu tempo livre dentro de seu quarto mexendo em seu celular, o que não seria diferente no acampamento. Em um primeiro momento essa falta de ordem realmente chega a ser irritante até para o próprio espectador, que logo percebe que a adaptação da garota não será muito fácil por conta da rígida disciplina cobrada pelos monitores, mas nada que limita esse grupo de jovens a ter seus momentos de diversões e descobertas até mesmo fora de hora, situações que nunca são tratadas de maneira proibitiva pelos superiores, mas repreendidas com ponderação justamente para que eles aprendam determinados valores e limites necessários para o desenvolvimento do respeito e a educação.

Ir para o acampamento e conhecer outros adolescentes de sua idade e relativamente com os mesmos problemas é simbolicamente o grande momento em que a personagem deixará de ser uma menina para finalmente se deparar com as verdadeiras descobertas da adolescência. As trocas de confidências revelam no grupo que Melanie é a única virgem entre suas colegas de quarto e que nem ao menos sobre o beijo ela conhece além daquilo que observa nas pessoas a sua volta. De certa forma isso a coloca em uma posição desafiadora porque os testemunhos alheios despertam curiosidades e vontades que ainda permaneciam adormecidas em sua ingenuidade. É o momento em que Seidl começa a vagarosamente soltar seu arsenal de simbolismos e como cada vez mais está inevitável que os adolescentes sejam expostos a decisões e comportamentos precoces, bem como nenhum ambiente também os privarão de perigos e tendências desvirtuosas quando vemos o que acontece dentro do acampamento ou fora dele, em uma das noites em que Melanie e sua amiga resolvem "fugir" para se divertirem em um bar nas proximidades.

De maneira proposital ou não, talvez por lidar com um tema tão delicado como é a essa fase da vida, as descobertas, valores e como tudo isso implica na vida adulta futura, o diretor é bastante sutil e delicado no desenvolvimento do filme, mas ainda firme em suas abordagens e propósitos, principalmente quando coloca no caminho de Melanie um homem que representará a perda de sua ingenuidade.

O primeiro contato entre a Melanie com o médico do acampamento, e o tratamento especial dado por ele, despertam nela multiplos sentimentos que se transformam em confusas fantasias e expectativas. Pela ausência paterna e por estar sozinha em uma ambiente desconhecido, ela enxerga nele uma figura masculina segura que lhe falta, e por ser um desconhecido que a trata com certa proximidade sentimental, suas vontades sexuais naturalmente afloram. Ao mesmo tempo ela não enxerga a forte tendência pedófila que é conscientemente contida por ele, tentada a todo momento pela insistente persistência de Melanie em conquistá-lo com sua natural e incorrompida sexualidade que desabrocha. A diferença é que ele já é um homem esclarecido e maduro, e ela uma adolescente que ainda desconhece determinados limites. 

O interessante é que Seidl é tendencioso na condução de suas cenas, e mesmo sabendo do grande erro que seria caso a relação entre os dois personagens se consumasse, as situações são construídas de forma a nos convencer de que, no fundo, é isso o que esperamos e queremos que aconteça, nos colocando tanto na condição dela quanto dele. Essa perspectiva desafiadora do diretor deixa o próprio espectador em conflito e a se questionar até que ponto somos capazes de nos manter racionais, a não cairmos em tentações e nos livrarmos do mal, amém. Não é à toa que, em uma das sequencias mais tensas do filme, o médico cheira o corpo de Melanie que está esticado e inconsciente em um bosque, e ele o faz como um cachorro a farejar uma carcaça. Essa foi a metáfora mais clara do diretor para o despertar de nossos instintos mais animais e irracionais, uma cena perfeita que conclui com muita coerência e exatidão a idéia exposta no prólogo do primeiro filme sobre a inconsciência de nossos atos ser tal qual uma demência.

Depois de tanta densidade nos dois filmes anteriores, a apreensão pelo pior é inevitável. O espectador fica um tanto tenso na espera de que a qualquer momento algo muito chocante possa acontecer não apenas pelas condições em que os personagens se encontram, mas também pela maneira densa, precisa e estática como elas são mostradas, muito mais do que em .

Para quem assistiu as duas primeiras partes da trilogia, notará que visualmente este filme é (felizmente) o menos chocante dos três, mas nem por isso deixa de ser forte e impactante.

De certa forma a história de Melanie e seus primeiros passos no mundo das descobertas e frustrações também é bastante parecida com aquelas sofridas por sua mãe no Quenia em Amor, o que nos remete a também pensar na perpetuação dos erros e sofrimentos pelas gerações seguintes, como se fosse uma condição genética. A grande diferença é que, nessa história, há diversas esperanças, incluindo a de que isso não ocorra mais.

CONCLUSÃO...
Siedl novamente não hesita em levantar questões sobre os problemas do mundo moderno, concluindo com chave de ouro uma trilogia de filmes que possuem diferentes histórias em diferentes locais e situações, mas todas dentro de um mesmo contexto. Amor, e Esperança podem ser diferentes, mas todos eles se complementam não apenas no signficado da palavra que seus títulos carregam, mas também são a alma de três brilhantes histórias que exemplificam através de uma intensa linguagem semiótica social e comportamental coerente todos os mais diversos e complexos comportamentos humanos.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

PARAÍSO DA FÉ E DA CARNE...

★★★★★★★★
Título: Paraíso: Fé (Paradies: Glaube)
Ano: 2012
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Ulrich Seidl
Elenco: Maria Hofstatter, Nabil Saleh
País: Áustria, Alemanha, França
Duração: 115 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Anna Maria é uma devota cristã que realiza seus trabalhos diários em casa e fora dele, bem como peregrinações levado consigo uma imagem de Virgem Maria e a palavra divina, julgando e condenando as decisões e os prazeres alheios, e pagando suas penitências para que possa continuar realizando o seus próprios pecados.

O QUE TENHO A DIZER...
 (Glaube, 2012) é a segunda parte da trilogia Paraíso (Paradies), do austríaco Ulrich Seidl, com roteiro escrito por ele e pela sua mulher Veronika Franz.

Enquanto na primeira parte da trilogia, Amor (Liebe, 2012), foi possível ver as experiências sexuais caóticas e não muito agradáveis de Teresa em sua viagem na costa paradisíaca do Quenia, nessa segunda parte veremos a história de sua irmã, Anna Maria, uma católica devota que, durante suas férias, passará seu tempo fazendo aquilo que mais gosta: seja cantando músicas sacras; seja em suas reuniões com seu grupo particular de orações; seja peregrinando pelos bairros pobres de Viena com uma imagem de 30cm de Virgem Maria, batendo de porta em porta na casa de estrangeiros pagãos para pregar a palavra divina; ou seja quando, confrontada pela descrença ou por atos pecaminosos testemunhados, ela se martiriza com penitências ortodoxas para evitar sucumbir às tentações que eles despertam, e não porque as ofendem.

Como muito bem dito por Nick Pinkerton, o prólogo de Amor talvez seja a maior definição sobre o que é a trilogia Paraíso e a condição humana que cerca seus personagens quando vemos os deficientes mentais se batendo desordenadamente uns aos outros com os carros elétricos no parque de diversões, onde as câmeras capturam objetivamente os choques e as reações de cada um deles, nos mostrando metaforicamente como nos chocamos violentamente uns contra os outros sem qualquer compreensão dos motivos e razões de fazermos isso. Se em Amor temos uma personagem se chocando com pessoas, culturas e a ausência de sentimentos sem muita consciência das razões de fazer isso, em  temos outra personagem se chocando contra ela mesma e com diferentes crenças e interpretações, com uma visão bastante intransigente que a aliena sobre as realidades e os motivos de agir dessa forma.

A história acontece em paralelo com a viagem de Teresa ao Quenia. Logo na primeira cena vemos Anna Maria se autoflagelar com uma chibata diante do crucifixo de um quarto tratado com esmero tal qual uma sagrada capela, ao mesmo tempo que também é sua sala particular para suas torturas, autopunições e castigos, já que, trancado em um armário, Anna esconde os mais diversos e bizarros instrumentos utilizados de maneira meticulosa para diferentes penitências. Assim ela acredita provar, através de sua carne e sangue, que sua devoção é maior do que suas mais íntimas vontades carnais e seus mais profundos desejos mundanos. Um presídio dentro de sua própria casa, a representação de sua doente psiquê e de como o mundo deveria ser, além de uma necessidade sagrada de estar dentro dele.

Novamente Siedl não poupa em ser chocante e constrangedor e nesse filme o seu estilo realista se mantém, mas de forma mais fria e distante. No primeiro filme tínhamos um leve e quase imperceptível humor dramático que a própria personagem carregava consigo, aqui não há espaço para isso. Há apenas um drama carnal que cresce progressivamente conforme Anna se confronta mais e mais com seus temores e o diretor consegue ser bruto e chocante tanto em cenas explícitas quanto naquelas implícitas, de tão forte como ele utiliza os ícones e a maneira que são representados nas cenas.

Em um determinado momento a personagem acredita estar sendo testada por Deus, pois ao invés de sentir mudanças relativas aos seus incansáveis esforços religiosos, ela só recebe em troca o descaso libertino ou o inadvertido retorno de seu marido paraplégico, um muçulmano que estava ausente há dois anos (talvez) pela intolerância ao fanatismo religioso de Anna.

Seidl usa esse conflito entre religião e sexo frequentemente para dar vazão a demais simbolismos que levam a outras relevantes discussões, bem como a hipocrisia que os acompanha, como o fato de Anna encontrar em seus rituais diários uma válvula de escape para seus medos particulares, em um fanatismo religioso que, como já dito, leva a personagem a alienar-se sobre as realidades e os próprios pecados cometidos. Mesmo quando consciente disso, ela acredita que sua purificação virá através da penitência. Esse círculo vicioso lhe dá o direito de agir livremente, assim como faz quando invade a casa das pessoas durante suas peregrinações. Sua presença chega a ser tão invasiva e brutal que é impossível não considerá-la como um estupro, sugerindo o sadismo subliminar da personagem, tal qual suas punições e autoflagelamento, métodos nos quais ela sente estar mais próxima da figura divina, quando na verdade é o prazer sadomasoquista que compensa a ausência dos prazeres sexuais em si.

A integral devoção de Anna à imagem de Jesus Cristo também deixa de ser uma fé quando vista dentro deste conceito, e passa a ser a representação da sua imagem particular daquilo que considera a figura masculina ideal dotada de um senso de justiça arbitrário, tal qual suas arbitrariedades sobre as coisas do dia a dia e pessoas que ela mal conhece.

Há também espaço para outras discussões, como o conflito caótico com seu marido, que também simboliza as questões sociais da intensa imigração de estrangeiros para a Austria, já que mais de 15% da população é imigrante, o que tem gerado ondas de intolerância e xenofobia, assim como uma preocupação também latente de um novo crescimento do anti-semitismo.

O filme foi recebido positivamente, onde muitos o consideraram um grande complemento à primeira parte da trilogia e uma excelente obra, porém difícil e perturbadora. Seus grandes problemas são em não defini-lo realmente como um acontecimento paralelo aos dois outros títulos e também nessa relação pouco esclarecida entre ela e seu marido.

De qualquer forma, o enorme número de simbolismos disponibilizados pelo diretor oferece possibilidade e liberdade para as mais diveras interpretações, o que também caracteriza o longa como bastante controverso e, ao mesmo tempo, um exercício de observação e associação com a realidade que vivemos. Talvez toda essa massiva simbologia utilizada não tenham sido tão intencionais como parecem, mas se encaixam perfeitamente dentro dos contextos tanto do filme como uma unidade, tanto como parte de um mesmo conceito.

CONCLUSÃO...
Muito mais denso e perturbador que a primeira parte da trilogia, sem dúvida é um exercício de observação e associação com a realidade que vivemos devido aos inúmeros simbolismos utilizados e/ou que possamos identificar.

domingo, 10 de agosto de 2014

PARAÍSO DO SEXO E DAS DECEPÇÕES...

★★★★★★★
Título: Paraíso: Amor (Paradies: Liebe)
Ano: 2012
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Ulrich Seidl
Elenco: Margarete Tiesel, Peter Kazungu, Inge Maux, Dunja Sowinetz, Helen Brugat, Melanie Lenz
País: Áustria, Alemanha, França
Duração: 120 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma mulher de meia idade resolve realizar um turismo sexual para um paradisíaco resort na costa do Quênia juntamente com outras mulheres da mesma faixa etária.

O QUE TENHO A DIZER...
Dirigido por Ulrich Seidl com roteiro escrito também por ele juntamente com sua mulher, Veronika Franz. É a primeira parte de uma trilogia do diretor que contará três histórias paralelas. Por ter sido um filme com roteiro realizado fora dos padrões estéticos convencionais por conta do teor documentado proposto, o diretor chegou no fim das filmagens com material suficiente para mais de cinco horas de filme. Durante as edições percebeu-se que as histórias paralelas não tinham força para manter umas às outras dentro de um único contexto, e foi então que ele decidiu separá-los em três filmes distintos, já que cada um deles vai contar três episódios de três personagens, que ocorrem em três cenários diferentes, mas dentro de um mesmo espaço de tempo.

A história desse filme mostrará a viagem de Teresa (Margarethe Tiesel), uma austríaca de 50 anos que resolve passar alguns dias em um paradisíaco resort africano no litoral do Quenia juntamente com outras mulheres solteiras, viúvas ou desquitadas, dentro da mesma faixa etária e igualmente bem estruturadas financeiramente, que viajam para se aproveitar do intenso turismo sexual já conhecido por algumas.

Embora bastante independente e financeiramente estável, Teresa é uma mulher solteira e solitária, frustrada sexualmente em suas relações anteriores, e que não possui grandes preocupações além da sua casa, sua gata, sua filha e sobre algumas pressões sociais recorrentes na cultura ocidental a respeito dos padrões de beleza e estética.

No primeiro dia de viagem uma de suas amigas comenta sobre a facilidade de conhecer homens locais para sexo e que todas as mulheres austríacas os atraem independente do biotipo ou da idade, pois são bastante diferentes das mulheres locais. Teresa se envergonha sobre o assunto por conta de sua ingenuidade e inexperiência, embora sua curiosidade passe a ser alimentada por fantasias que ela nunca expressa.

Após uma frustrante tentativa de conhecer o primeiro homem na viagem, um segundo, chamado Munga, se aproxima de forma muito delicada e solícita que a cativa. Ele faz questão de andar de mãos dadas com ela pela cidade, dizendo que a ama e o quanto ela é atraente, o que inevitavelmente a leva a se apaixonar por ele. Alguns dias depois Munga mostra algumas realidades do precário modo de vida das pessoas, e solicita ajuda financeira para seu sobrinho que está internado, para a irmã que tem dificuldades e para a professora da escola local. Tereza doa grandes quantidades sem questionar, mas uma noite ele se nega a ter relações sexuais com ela dizendo que o dinheiro dado foi pouco, e que por isso ele a proibe de tocá-lo. Tereza vai embora e nunca mais tem notícias dele, até flagrá-lo na praia com sua mulher e filhos. E essa mesma história se repete com os demais homens que ela conhece por lá.

Desde o princípio o espectador sabe que a abordagem de Munga, bem como dos demais sobre ela e as outras mulheres, é apenas para explorar sua vulnerabilidade como turista, de sua carência e de uma certa ingenuidade que persiste em existir, e o momento em que Tereza é negada é o choque que ela tem com a realidade em perceber que esses homens são prostitutos que se aproveitam dessas suas fraquezas tanto quanto os homens antes dele também já fizeram. Esta situação rende uma das cenas mais dramáticas do filme, e do sentimento explícito da personagem de ter sido abusada, explorada e enganada mais uma vez.

Para quem assiste o filme é fácil perceber que a abordagem que a personagem constantemente sofre é um meio de vida dos habitantes locais disfarçadas de alguma forma, já que a prostituição no Quênia é ilegal. Isso se deve por conta dos altos índices de pobreza e desemprego (a renda média de um queniano é de 4 euros) o que leva a crianças e jovens à precoce prostituição para ajudar seus familiares financeiramente, com comida e outras necessidades.

Embora a realidade mostre que os índices de prostuição sejam mais altos no sexo feminino e o cinema explore isso regularmente, o diretor inverte os papéis para mostrar um ignorado ponto de vista sociocultural sobre isso. Enquanto os homens entendem o sexo como uma necessidade fisiológica e fácil de ser consumada, as mulheres entendem como uma consequencia (ou um resultado) de uma afinidade emocional. Siedl criou uma história utilizando mulheres na meia idade para intensificar a inibição social que elas sofrem dentro da tendenciosa cultura machista que descarta aquelas que estão fora de padrões de beleza ditados pelo sexismo ocidental e, por isso, construindo uma narrativa que mostra que o turismo sexual buscado por elas tem objetivos bastante diferentes dos homens. Elas também buscam o sexo e pagam por ele para, como diz uma das personagens, serem vistas e aceitas pela sua essência, já que não são mais aceitas pela beleza física que não possuem mais.

Todas essas situações se tornam muito mais interessantes quando percebemos que, embora as necessidades sexuais entre homens e mulheres sejam diferentes, as condições machistas e abusivas dos homens sobre elas continuam as mesmas, independente das mulheres serem as que recebem pelo sexo ou as que pagam por ele.

A beleza do filme se dá por lidar com essas sutilezas e incompreensões da sensibilidade sexual feminina de uma sociedade estável e, em paralelo, as terríveis condições determinantes que levam uma população de vida tão precária a encontrar no sexo a única alternativa viável de renda mais do que uma resposta de um sentimento. Mesmo mostrando duas culturas e comportamentos sexuais completamente diferentes, e como eles se interceptam, todos continuam sendo vítimas de um mesmo sistema cruel que por um lado dita regras comportamentais e por outro dita as regras sociais.

A maneira documentada de filmagem que Seidl utiliza para mostrar esses paradoxos e atores que estão completamente fora de qualquer padrão de beleza comumente explorados no cinema são os mais próximos da realidade que poderiamos encontrar e que direcionam o espectador a cenas de nudez explícita e aproximações sexuais sem soar vulgar. O erotismo natural em nenhum momento aparenta abusivo ou fora de contexto, até porque os personagens, mesmos despidos, estão expondo seus sentimentos e vulnerabilidades de forma mais explícita do que o próprio sexo.

Os cenários naturais da costa índica africana, filmados nas praias de Mombaça, são deslumbrantes, e a fotografia realista, bem como o filme em si, se atenta a retratação do cotidiano em ações e diálogos, e aquilo que vemos no filme é exatamente aquilo visto pelo diretor, sem nada a acrescentar ou a retirar daquela realidade, tanto que o elenco masculino é de moradores locais e amadores. É um filme logo e lento, que não consegue evitar sua previsibilidade por ser verdadeiro, além de bastante corajoso na sua temática e nas construção das imagens, utilizando um leve humor dramático para amenizar toda a crueza de duas grandes diferentes realidades sociais e comportamentais, nunca esquecendo também de pontuar levemente algumas (in)tolerancias raciais.

O filme venceu os prêmios de Melhor Filme, Diretor e Atriz no Festival de Filmes da Austria, além de ter concorrido a Palma de Ouro em Cannes e em outros festivais internacionais. Foi muito bem recebido pela crítica, embora bastante comparado ao francês Vers Le Sud (2005) que também conta três histórias paralelas sobre três turistas que viajam ao Haiti com o mesmo objetivo.

CONCLUSÃO...
Mesmo longo e previsível, é um filme belo e amargo sobre confrontos culturais, sociais e comportamentais entre a razão e a emoção, a valorização de insignificâncias e a desvalorização das poucas importantes que restam.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O GRANDE SINTOMA DA IMPUNIDADE...

★★★★★★★★★☆
Título: O Ato de Matar (The Act Of Killing)
Ano: 2012
Gênero: Documentário
Classificação: 14 anos
Direção: Joshua Oppenheimer, Christine Cynn, (anônimo).
Elenco: Anwar Congo
País: Dinamarca, Noruega e Reino Unido
Duração: 115 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
O documentário desafia os ex-líderes dos esquadrões de morte anti-comunistas indonésios, que atuaram durante o golpe militar de 65, a reencenarem seus assassinatos em qualquer gênero cinematográfico que eles desejarem, desde cenários clássicos de filmes hollywoodianos a exuberantes números musicais.

O QUE TENHO A DIZER...
Dirigido pelos norteamericanos Joshua Oppenheimer e Christine Cynn, e por um indonésio anônimo, o documentário demorou seis anos para ser finalizado, muito embora, de certa forma, as pesquisas já tenham tido início já em 2001, quando Opphenheimer e Cynn começaram a se aprofundar sobre os crimes indonésios que ocorreram na década de 60.

Esses crimes foram resultado de uma série de ações militares realizadas na Indonésia durante os anos de 1965 e 1966, após uma fracassada tentativa de um golpe militar no governo de Sukarno, o primeiro presidente indonésio que estava no poder desde 1945, responsável pela independência do país contra a Holanda e que defendia ideais comunistas e nacionalistas. A tentativa do golpe teve início com o assassinato de seis Generais, e membros do exército ligados ao grupo comunista, que por sinal era apoiado por Sukarno, foram acusados dos assassinatos. O golpe não teve sucesso, mas serviu como um grande motivo para os grupos separatistas e anti-comunistas, junto com o apoio dos Estados Unidos, a oprimirem e impedir o crescimento de ações comunistas no país. Isso levou a Força Armada a liderar uma campanha opressora e uma caçada impiedosa aos revolucionários, o que levou a morte de mais de 500 mil civis, muito embora estima-se que os números possam chegar a quase 1 milhão até os dias de hoje já que a população indonésia é ainda coagida pelas forças militares e paramilitares, como a Pemuda Pancasila (ou Juventude Pancasila), grupo fundado pelos gangsters que lideravam os esquadrões anti-comunistas de extermínio e ainda em intensa atividade. Esses líderes criminosos nunca foram julgados e vivem em liberdade apoiada pelo próprio governo até os dias de hoje.

A princípio o diretor queria fazer um documentário que focasse apenas as famílias das vítimas e seus relatos, mas durante as entrevistas muitos deles acabaram sendo presos e as filmagens ficaram sem conclusões levando a produção a seguir outro rumo quando ex-líderes de grupos anti-comunistas demonstraram interesse em falar sobre o assunto como forma de promover e manter a memória de uma época que eles consideram importante para o fortalecimento da nação, julgando que as gerações atuais e futuras devem conhecer esta história sangrenta para dar continuidade e impedir que o comunismo se reerga, já que esse controle militar ainda atua de maneira avassaladora.

Os relatos são dados principalmente por Anwar Congo, um dos mais importantes líderes dos esquadrões de extermínio daquela época, responsáveis por um dos mais sangrentos massacres da História moderna contra civis, muitos deles julgados aleatoriamente, apenas para promover o medo e o terrorismo psicológico para oprimir as oposições. Mas Anwar foi apenas um deles. Ele, assim como todos os outros líderes de esquadrões de extermínio, eram pessoas comuns que foram convocados pelas Forças Armadas anti-comunistas, aos quais eram dadas total liberdade de caçar, julgar e matar.

Ao mesmo tempo que o filme é um documentário, também pode ser visto como um ensaio cinematográfico. Pelos executores serem grandes fãs do cinema hollywoodiano, material relatado por eles como a principal fonte de inspiração para os métodos de execução que utilizaram, Oppenheimer então propôs que eles reproduzissem seus crimes dentro dos gêneros cinematográficos preferidos. Anwar, que se auto entitula um gangster, afirma que que as sessões de tortura e assassinato realizadas por ele e seus comparsas eram fortemente baseadas naquelas mostradas nos filmes western ou sobre a máfia. De forma muito natural chega a declarar diversas vezes e sem remorso que eles eram muito mais cruéis, pois buscavam maneiras para superar a crueldade que viam nos filmes.

Anwar e seus amigos expressam para as câmeras suas experiências e relatam seus métodos criminosos através de memórias e sentimentos positivos sobre as execuções acreditando que todo o genocídio cometido foi para manter o rígido controle e a ordem do país. Aos poucos as cenas são reproduzidas em um estúdio e interpretadas pelos próprios executores, com direito a atores de apoio, maquiagem e cenários construídos de acordo com suas vontades. As filmagens acabam tomando forma e até elementos míticos são incorporados nas cenas para dar um tom mais cinematográfico para a história que é construída. Oppenheimer se aproveita disso de maneira muitas vezes sensacionalista mostrando as cenas de torturas e assassinatos como um grande sintoma da impunidade, o que ele consegue fazer muito bem.

Anwar Congo acredita ter matado sozinho aproximadamente mil pessoas, geralmente utilizando arame para estrangular suas vítimas das formas mais engenhosas possíveis. A ferramenta também foi inspirada pelos filmes, pois ele observou que era uma das poucas que aderiam à pele de tal forma que a vítima não teria oportunidade para se defender, tamanha a covardia das atitudes brutais. Com o tempo ele aprimorou a ferramenta com novas técnicas e métodos de execução para que pudessem ser mais rápidas, práticas e menos "sujas".

O diretor também consegue fazer do material em produção uma verdadeira análise psiquiátrica quando inverte os papéis e o ponto de observação entre executores e executados. Anwar, que passou quase cinco décadas se gabando de seus atos anti-comunistas, além de ser a figura paternal mais importante do grupo paramilitar Pemuda Pancasila, resolve atuar no papel de vítima durante as filmagens já que ele diz conhecer o sentimento patriótico de um executor, mas desconhece o sentimento de ser um criminoso comunista em julgamento.

Conforme novas cenas são filmadas, toda a frieza e o passado sangrento de cada um volta a tona como um tsunami. Anwar não consegue levar as filmagens adiante no papel de vítima, chegando a sofrer até um colapso momentâneo no set de filmagem. Mas é ao assistir novamente as cenas em sua casa, junto com seus netos, que toda a verdade sobre sua falta de humanidade e suas cruéis atitudes se revelam a sua frente em um mar de horror interpretado por ele como um grande e infinito pesadelo. Em prantos, ele diz sentir a dor e o medo de suas vítimas, e Oppenheimer o confronta, dizendo que esse sentimento está longe de ser o verdadeiro, já que as vítimas tinham a certeza de morrer, enquanto ele sabia que tudo era apenas uma encenação. Anwar teme que sua alma esteja amaldiçoada e que ele sofra as consequencias disso quando morrer, pois ele acreditava que o que ele fazia era o correto, pois era obrigado a fazer, mas que suas noites mal dormidas e os pesadelos constantes o torturam.

Confrontando seu lado mais obscuro e irracional, o arrependimento tardio de suas sangrentas ações são exorcizados fisicamente entre ânsias e vômitos vazios vindo de uma alma carregada que finalmente não encontra mais forças para conter tanto remorso e, talvez, agora vulnerável o bastante para ser espancada pelas milhares de almas torturadas. Mesmo não sendo julgado e ser um homem livre, sua punição de conviver com isso o mantém preso dentro de um mundo hostil de dor e sofrimento.

As razões para se assistir esse documentário são óbvias, pois ele definitivamente nos coloca face a face com a crueldade e os arrependimentos, mesmo que tardios, bem como em deixar evidente um lado da história abafado e distorcido sobre a imagem divulgada sobre os comunistas ou revolucionários. Com este material é impossível evitar comparativos com momentos históricos no nosso país e de outros países no mesmo período, onde a ditadura militar também perseguiu, torturou e executou milhares de civis com a mesma crueldade e justificativa, dos quais muitos ainda são classificados como desaparecidos. Todas essas ações brutais foram apoiadas pelos Estados Unidos em políticas anti-comunistas que divulgavam aos governos ações de contenção e erradicação de qualquer movimento revolucionário, além de infiltrar e interferir diretamente em políticas sociais de outros países nas décadas de 60 e 70. A opressão sofrida pelos comunistas ou revolucionários ultrapassa uma simples posição política para se tornar claramente um genocídio injustificável. Como dito por um dos próprios comparsas de Anwar, contar e reproduzir a realidade dos fatos é mostrar para as pessoas que a História enganou a todos quando julgaram os comunistas como pessoas perigosas e cruéis, pois não foram eles quem executaram dezenas de milhares de pessoas ao redor do mundo da maneira mais brutal possível, destruindo e trazendo consequencias irreversíveis a milhões de outras pessoas. Também é impossível ignorar que, apesar dos pesares, vivemos em um país onde, hoje em dia, temos a liberdade de pensar e expressar nossas idéias, oposições e insatisfações graças a uma democracia que pode não ser 100% eficaz, mas que para algumas nações essa possibilidade ainda é remota mesmo no século XXI e um ideal que não pode nem ao menos ser expressado.

O filme, de 2012, só foi lançado nos Estados Unidos em 2013, o que o levou a concorrer ao Oscar de Melhor Documentário em 2014. Era o favorito até então, mas por razões até meio óbvias (já que o próprio governo norte-americano é responsável), perdeu para A Um Passo do Estrelato (20 Feet From Stardom, 2013). O material foi aclamado pela crítica mundial, mas é visto pelo governo indonésio como uma ameaça e uma fonte de informação enganosa e deturpada sobre os acontecimentos daquela época. O diretor Oppenheimer foi acusado de ter agido de má fé, informando ao governo e aos envolvidos que o material seria usado para um longa metragem que contaria a história dos grupos anti-comunistas, quando na verdade ele foi utilizado para um documentário histórico contra eles, o que é negado pelo diretor. Chegou até a ser comparado com uma reencenação dos crimes nazistas, o que o diretor afirmou estar longe de ser, já que o nazismo foi erradicado, enquanto na indonésia os criminosos ainda dominam.

Prevendo possíveis retaliações e perseguições dos grupos anti-comunistas, 48 pessoas da equipe de filmagem, incluindo o co-diretor, proibiram seus nomes de serem divulgados. Anwar Congo chegou a relatar em um programa da rede Aljazeera que ele tem alguns arrependimentos devido a negativa reação do governo sobre as declarações finais dadas por ele no filme e que agora estão lhe causando grandes problemas. A repercursão mundial ergueu grandes discussões ao redor do mundo, incluindo a ONU e entre os próprios indonésios sobre possíveis intervenções nas políticas humanas do país, mas que as dificuldades são grandes, já que os Direitos Humanos é tido pelo governo indonésio como uma inútil tentativa de controle externo e que não é permitida para dentro de suas fronteiras. Há uma crescente cobrança da população indonésia hoje em dia para que o caso seja aceito pela corte e os responsáveis julgados, muito embora eles não possam mais ser condenados porque os crimes já prescreveram, mas a cobrança de uma retratação pública sobre os erros e crimes cometidos em 1965 é mais do que uma exigência, é um direito.

CONCLUSÃO...
A Arte de Matar é um documentário chocante não por imagens, mas pelas discussões que ele levanta sobre os limites e o total desrespeito aos valores humanos e democráticos, ainda ignorados de maneira arbitrária, opressiva e justificável apenas por aqueles que veem na liberdade o grande obstáculo e o maior inimigo de seus objetivos e ambições. Uma verdadeira aula obrigatória sobre o lado mais cruel do ser humano e até que ponto ele pode chegar para concentrar o poder nas mãos daqueles que não sabem controla-lo.
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