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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

GRANDE COMO SPIELBERG PODE SER...

★★★★★★★☆☆
Título: O Bom Gigante Amigo (The BFG)
Ano: 2016
Gênero: Aventura, Fantasia
Classificação: Livre
Direção: Steven Spielberg
Elenco: Ruby Barnhill, Penelope Wilton, Rebecca Hall
País: Reino Unido, Canadá, Estados Unidos
Duração: 117 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma garota, ao avistar um gigante, é raptada por ele de seu orfanado para que ele não corra o risco do segredo de sua espécie ainda existir ser revelado. Ele a leva para onde mora, no País dos Gigantes, onde uma genuína amizade será construída, da qual ambos ficarão fortalecidos para enfrentar suas dificuldades.

O QUE TENHO A DIZER...
Assistir O Bom Gigante Amigo é chegar à conclusão de que nenhum diretor seria melhor do que Spielberg para realizá-lo, e quando ele assina a produção através de sua tão amada produtora Amblin Entertainment, acredite, é um projeto mais que pessoal.

Esse sentimento é tido por vários motivos. O principal deles é o diretor voltar a pisar em um terreno infantil no qual se distanciou desde de E.T. (1982). Claro que a fantasia nunca foi abandonada nesses 33 anos que se passaram, mas nenhuma das poucas produções desse gênero realizadas por ele, até mesmo Tintim (2011), trouxe a mesma ingenuidade ou delicadeza metafórica e inspiradora como foi com o extraterrestre, que felizmente ele repete aqui. 

Adaptado do livro homônimo de Roald Dahl, publicado em 1982, o projeto estava no papel desde 1991, mas só em 2014 foi finalmente parar nas mãos de Spielberg, que afirmou sempre ter tido vontade de dirigí-lo, pois o autor foi genial ao empoderar as crianças, sendo ousado ao introduzir uma combinação entre o obscuro e o lúdico de tal forma que apenas a Disney havia feito em seus primeiros clássicos, capaz de assustar e ser reconfortante ao mesmo tempo, oferecendo uma moral que é única a todos. E claro, não é à toa que a Disney co-produziu e distribuiu o longa.

O que Spielberg humildemente esqueceu é que seu clássico anterior se tornou uma referência justamente por ter as mesmas características, e é exatamente aí que essa linda produção igualmente se destaca. A outra razão óbvia é que o roteiro também foi escrito por Melissa Mathison, a mesma de E.T. e do maravilhoso A Chave Mágica (The Indian And The Cupboard, 1995), de Frank Oz. Melissa acabou falecendo no final de 2015 enquanto O Bom Gigante estava em produção, sendo a ela que o filme é dedicado nos créditos finais.

Portanto, não é à toa que o diretor utiliza a mesma estética narrativa de E.T. em alguns momentos, e o mesmo fez Melissa com o roteiro, levando tanto os personagens quanto os espectadores a uma inicial apreensão sobre o que irá acontecer, e se o gigante envelhecido, de silhueta envergada, seja tudo aquilo de ruim que habita a fantasia das pessoas que cresceram ouvindo os mais diferentes contos e lendas envolvendo figuras desconhecidas como ele, tanto quanto foi com o extraterrestre de olhos imensos e de corpo atrofiado, e por conta disso parecerem tão atemorizantes em um primeiro contato. São nesses momentos que sua delicadeza se destaca da mesma forma como ele descreveu a obra original de Dahl, porque ele consegue transformar até mesmo o apavorante em algo bonito e carismático, como a ensinar que o medo é apenas uma hipérbole da nossa fértil imaginação e que só cabe a nós dominá-lo.

A história volta a repetir a velha moral de que nada deve ser julgado por aquilo que aparenta ser, de que todos nós somos especiais de alguma forma e que, embora únicos, nunca estamos sozinhos, sendo essas as características que nos aproximam de semelhantes e os vínculos de amizade e amor fraternal nascem. Assim é a forma como a relação entre BFG e Sophie (Ruby Barnhill) ocorre. Simples, porém inspiradora e sólida o suficiente para sustentar todo o filme.

Ao mesmo tempo que a estética de BFG seja ameaçadora em um primeiro momento, sua expressividade serena (que muito se assemelha a um Spielberg sem barba), o sorriso singelo e espontâneo de canto de boca (que muito lembra Harrison Ford), além do aspecto frágil junto a um comportamento ora ágil, ora desastrado, é o que embute o humor e a leveza que igualmente se expressam no seu linguajar confuso, o qual infelizmente se perde na tradução/dublagem em português. Mas é quando sua personalidade se desenvolve e seu arco dramático toma forma que finalmente o conhecemos e nos sensibilizamos com seu drama comum de viver uma vida solitária e complexada, já que é o menor e mais fraco dos gigantes, sendo constantemente assediado e humilhado pelos demais, taxado como uma vergonha de sua espécie. Olha-lo novamente depois disso é compreender sua postura diminuída, de andar tímido e pés interiorizados. É quando ele se torna um personagem lindo por essência, é quando queremos ser seu amigo por compaixão.

Seus irmãos gigantes são liderados pelo maior e mais forte deles (mas também o mais ignorante). Fleshlumpeater carrega em si uma revolta que alimenta seu ódio por humanos e que o fez desistir de suas funções de ente responsável pelo equilíbrio da natureza e das coisas, função que BFG ainda exerce incansavelmente há séculos, capturando sonhos e distribuindo-os pelas sombras na calada da noite, evitando ser visto na cidade pelas mais variadas e mirabolantes camuflagens possíveis, numa destreza impecável e até bastante engraçada.

Visualmente a produção é impecável, principalmente o design de produção assinado por Janusz Kaminski, que há 26 anos trabalha com Spielberg. Ele abusa de cores quentes e estéticas um tanto circenses no cenário para compensar a ambientação soturna em que boa parte da história se passa. É claro que a sensação plástica ainda existe nos cenários e animações, mas a expressividade dos personagens digitais, principalmente nos milimétricos movimentos faciais e na sincronia labial, é de longe a melhor já feita, conseguindo superar até mesmo a captura de movimentos de Smeagol/Gollum para a trilogia O Senhor dos Anéis. Não seria de se assustar se BFG concorresse ao Oscar (se isso fosse possível), mesmo sendo um personagem animado, pois ele é tão convincente quanto consegue ser Ruby Barnhill, que por sua vez é tão carismática quanto Drew Barrymore em E.T.

Um dos poucos defeitos do filme é justamente não deixar claro na história os verdadeiros motivos pelos demais gigantes terem se tornado tudo aquilo que a lenda urbana agora os descreve - que é por onde a narrativa do filme tem início - ficando difícil compreender porque existe tanta diferença entre BFG e os outros, mesmo que Fleshlumpeater afirme em um determinado momento ter desistido dos humanos, deixando subentendido que isso aconteceu por algum trauma passado, ou pelo isolamento no qual foram obrigados a se submeter em alguma época por, talvez, serem considerados aberrações. Sua reta final também deixa um pouco a desejar, levando os personagens a um encontro inusitado com uma figura inusitada em um lugar mais inusitado ainda, talvez para tentar mostrar às crianças e adultos que tudo é possível quando existe honestidade e boas intenções, mas isso leva a uma intervenção na conclusão na história que poderia ter sido menos autoritária como foi e que acaba ferindo toda a moral construída desde o princípio, como uma ralada no joelho.

De qualquer forma, não dá para ignorar que muitos dos elementos do clássico de ficção de Spielberg estejam novamente presentes aqui, não como referências, mas como resgate de uma narrativa fantasiosa, que motiva o público infantil e o transporta para o lado mais profundo de seu imaginário sem subestimá-lo ou diminuí-lo em momento algum. Pelo contrário, o filme empodera e engrandece este público, além de mostrar aos adultos que a ilusão e a fantasia ainda existem independente da idade, só é necessário dar asas a isso.

A narrativa, como muito foi citada pela crítica, é lenta, mas caprichosa, fluida (até chegar na tal infeliz reta final), um filme para ser visto através dos olhos das crianças, caso contrário ele não terá o mesmo efeito. Fazendo isso, no fim todos serão imersos dentro de uma mesma atmosfera onde cresce uma história comovente, com personagens carismáticos e cativantes, uma fotografia lúdica de brilhar os olhos e uma trilha sonora de John Williams de arrancar lágrimas de satisfação por conta da pefeita sinergia e sincronia com que Spielberg desenvolve tudo numa paixão pessoal que não se via desde As Aventuras de Tintim (2011) ou Lincoln (2012), fazendo aquilo que parecia complexo se tornar simples aos olhos e aos sentimentos.

CONCLUSÃO...
Infelizmente foi muito ignorado, custando US$140 milhões e arrecadando um pouco mais de US$170 milhões no mundo, estatisticamente considerado um fracasso. Pouco do público conseguiu se imergir na história como Spielberg propõe, talvez pelo fato desse público estar desacostumado com uma visão mais ingênua da qual o cinema se esqueceu em uma época onde tudo é irônico, tudo é sarcático e dúbio. Tecnicamente impecável, além de ter uma sensibilidade típica de um Spielberg que agora consegue aflorar emoções e sentimentos mistos sem ser apelativo, como já foi no passado.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

FRUTOS...

★★★★★★★☆☆☆
Título: Verão Em L.A. (August)
Ano: 2011
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Eldar Rapaport
Elenco: Murray Bartlett, Daniel Dugan, Adrian Gonzalez
País: Estados Unidos
Duração: 99 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Quando retorna a Los Angeles depois de cinco anos em Barcelona, ao procurar seu ex para tentar consertar um passado de erradas decisões, descobre que o resultado de tudo foi consequência dele mesmo.

O QUE TENHO A DIZER...
Ontem, pesquisando no Netflix, resolvi assistir um filme com temática homossexual. Já expressei em outras resenhas que não é um estilo que particularmente me agrada justamente pelo excesso de clichés e estereótipos que costumam ter. Com algumas excessões ou outras, como Longe do Paraíso (Far From Heaven, 2002), Delicada Relação (Yossi & Jagger, 2011), Direito de Amar (A Single Man, 2009), Tomboy (2011), Queda Livre (Freier Fall, 2013), dentre poucos outros, percebe-se a seriedade sobre o tema mais do que o reforço da idéia comum do comportamento gay ou trangênero. Tanto que, correndo entre as opções disponíveis no serviço, as sinopses costumam ser as mesmas: do amigo que não se aceita ao do namorado traído, com pequenas variações de um a outro.

Verão em LA foi o que pareceu ser o menos forçado deles, algo que ainda remetesse um comportamento comum, mas que ao mesmo tempo pudesse ser mais realista, menos romântico, debochado ou caricato.

O filme começa sem créditos, com o protagonista sendo entrevistado para um emprego. Quando vi o ator, imaginei conhecê-lo de algum lugar. Sim, estava lhe faltando o bigode. Ele é Murray Bartlett, o Dom, do verdadeiro e delicioso falecido seriado Looking (2014-2015), da HBO, que durou apenas duas temporadas porque a audiência não era satisfatória, mas mesmo assim ganhou um filme este ano, produzido pela própria HBO, justamente para concluir tudo e satisfazer os fãs.

Aqui já é possível compreender porque Bartlett posteriormente foi parar no seriado. Seu personagem não de todo estereotipado, e o ator, além de ser obviamente atraente, também é competente. Ele interpreta Troy, o galã de Los Angeles que deixou uma fila de corações partidos quando se mudou para Barcelona. Um tipo que diz não se apaixonar, um solteirão convicto. Tanto que os demais personagens sempre afirmam que, bem... ele é Troy! A figura conhecida, temida e ao mesmo tempo cobiçada de toda Los Angeles, o troféu inalcançável, o macho alfa entre os gays da cidade dos anjos.

Depois de cinco anos, Troy retorna a sua cidade natal para passar o verão, rever familiares e amigos, mas acima de tudo, se curar de uma provável crise existencial. Troy não é muito diferente de Dom, o do seriado. Eles possuem as mesmas características: a mesma determinação, o mesmo sex appeal. Mas Troy aparenta estar em uma crise mais sentimental, ao invés da crise profissional e dos 40 de Dom. Ele entra em contato com seu ex-namorado, justamente aquele o qual deixou sentimentalmente perturbado depois de um repentino fim às vésperas de se mudar para Barcelona.

Jonathan (Daniel Dugan) agora vive com o argentino Raul (Adrian Gonzalez), o qual, nas dificuldades de ser um imigrante, se casou com a melhor amiga de seu namorado. Raul conhece toda a história entre Jonathan e Troy, e a princípio é bastante compreensível com tudo, acreditando que a volta do ex seja importante para a cura de feridas ainda abertas e que possa tornar sua relação mais sólida e menos traumática.

E por aí a história se desenvolve, e o filme realmente é aquilo que eu esperava quando li sua sinopse. Não é abusivo, não é deliberadamente melodramático, não abusa de estereótipos e carrega toda a história com bastante honestidade sobre o ponto de vista dos três personagens, mesmo que o foco principal seja Troy.

O roteiro consegue explorar os erros e arrependimentos do protagonista, sobre sua falta de comprometimento e irresponsabilidades com sentimentos alheios de um passado imaturo. Mudar-se para Barcelona pode ter sido sua fuga da realidade em ter magoado tantas pessoas sem qualquer pretexto, sendo lá que seu egocentrismo e egoísmo se dissolveram quando ele se apaixonou por alguém que deve tê-lo feito sofrer no mesmo peso e medida. O filme não mostra nada disso, mas deixa implícito que as coisas foram assim, e ter seu sentimento ferido por alguém o fez relembrar das pessoas que ele feriu, especialmente Jonathan.

A situação que Troy se encontra não é uma praga rogada, como ele afirma algumas vezes, mas uma situação na qual todos estamos vulneráveis. É a reciprocidade que a própria vida fornece, na qual devemos aceitar e aprender a lidar.

Esses dias atrás escrevi um longo post sobre relações abusivas por conta de uma ironia, e por outra ironia assisti esse filme, no qual enxergo como um filme sobre o ponto de vista não de quem sofre, mas de quem fez sofrer. O resultado daquilo que é plantado e colhido, o inevitável futuro daquele que um dia abusou ou assediou, independente da forma.

O arrependimento, mesmo que tardio, é válido, mas isso não significa que ele conserte o passado, ele só o torna menos doloroso. Constantemente infligir dor a outras pessoas, mesmo que inconscientemente, uma hora se torna um fardo, e é esse fardo que Troy carrega. Como dito, a busca de Troy é, apesar dos pesares, compreensível e louvável, a possibilidade de curar feridas ainda abertas para que cada um possa seguir seu caminho sem tropeços ou mancadas.

A forma como Troy representa tudo isso é bem desenvolvida, um arquétipo que constantemente encontramos, ou que até já fomos algum dia.

CONCLUSÃO...
A recorrência do tema que o filme aborda é comum, e não é necessário ser gay para se identificar com tudo. Às vezes acontecimentos como esses só acontecem para nos testar, e nos mostrar que, apesar de dores e sofrimentos, certas escolhas realmente acabam sendo libertadoras.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

BURTON POUCO INSPIRADO...

★★★★★★☆
Título: O Lar das Crianças Peculiares (Miss Peregrine's Home For Peculiar Children)
Ano: 2016
Gênero: Aventura, Fantasia
Classificação: 12 anos
Direção: Tim Burton
Elenco: Asa Butterfield, Eva Green, Chris O'Dowd, Judi Dench, Samuel L. Jackson, Terence Stamp, Ella Purnell
País: Reino Unido, Bélgica, Estados Unidos
Duração: 127 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um garoto descobre pistas que o levam para um orfanado de crianças peculiares que vivem sempre em um mesmo dia, em uma outra época, sob os cuidados de Sra. Peregrine. Mas aquilo que a princípio era mágico e fantástico, de repente começa a mostrar seus perigos conforme ele descobre e conhece mais sobre cada uma deles.

O QUE TENHO A DIZER...
Numa mistura entre X-Men, Mary Poppins e Peter Pan, existe algo em Miss Peregrine que deixa uma certa frustração no ar. O novo filme de Tim Burton, baseado no primeiro livro de uma trilogia do autor Ransom Riggs, por vezes entrega aquilo que essencialmente faz parte do seu estilo, mas por outras não. Algo que geralmente ocorre nos filmes em que ele é contratado para realizar, e não porque foi um projeto pessoal, como Frankenweenie (2012), Alice (2010), A Noiva Cadáver (2005), ou Batman: O Retorno (1992), para citar apenas alguns.

Existe uma grande diferença entre os projetos pessoais do diretor com os projetos em que ele é encaixado. É o que acontece aqui, uma produção que, mesmo possuindo características de Burton e para ele, por muitas vezes a impressão tida é contrária. Claro que há momentos em que seu estilo se destaca e traz um certo sorriso de satisfação e nostalgia ao ponto de dizermos "ah, isso é Burton!", como os personagens em si, que podem ser bizarros, mas são cativantes; os arbustos em forma de animais no jardim do orfanato, em uma referência a seu clássico Edward Mãos-de-Tesoura (1990); na batalha de bonecos em stop-motion, uma técnica na qual é apaixonado; ou na mesa de jantar, quando ele não tem receio algum de mostrar ao público infantil como Claire (Raffiella Chapman) consegue ser bastante estranha por traz de tanta doçura. Há outros momentos como esse, mas é bem nítido que Burton está pisando em um um terreno que não vemos a paixão pelo projeto sangrar pelos seus olhos.

Há uma certa apatia no ar, uma desconexão entre ele e o resto da equipe, já que a Fox começou a produção em 2011 e Burton só foi contratado em 2014. Boa parte da equipe não é a mesma com quem costuma trabalhar, nem mesmo a trilha sonora ajuda muito, talvez pela falta de Danny Elfman, seu colaborador de décadas. Até a fotografia, mesmo sendo de Bruno Delbonnel, que já trabalhou com ele em Grandes Olhos (Big Eyes, 2014) e Sombras da Noite (Dark Shadows, 2012), é possível sentir que tudo está um pouco mais aguado e/ou distante, tanto quanto esses mesmos filmes também foram, já que não são os seus melhores.

Talvez o que mais "maltrate" o diretor como um todo seja o roteiro de Jane Goldman (ironicamente, a mesma de X-Men: Primeira Classe), que não é ágil, e só vai se tornar um pouco empolgante depois de mais da metade da história, quando quase uma hora e meia se passou e todo mundo já estiver um pouco entediado com tanto vai e vem, principalmente as crianças. O que é outro grande e óbvio problema é que, embora o livro seja direcionado para um publico juvenil e jovem-adulto, o filme poderia ter um tom menos sombrio justamente para agradar os mais pequenos, pois mesmo tendo uma classificação indicativa de 12 anos, foram os mais novos que preencheram boa parte das salas de exibição.

A história a princípio parece simples, mas vai ficando complexa para coisas pequenas e pouco fluida, tendendo a piorar com o desenvolvimento dela mesma. Tudo fica meio confuso quando a intenção era simplesmente entreter, chegando num momento em que o espectador simplesmente se desliga dela e só quer saber como vai terminar. E ainda termina apressada e sem clímax, apenas com tentativas frustradas de um vilão (Samuel L. Jackson) fraco e de motivações vagas querer impressionar a todo custo com entonações vocais, gargalhadas do mal e piadinhas bem chochas. O que salva é que Samuel tem um sarcasmo muito forte e sua presença é sempre grandiosa, salvando uma cena e outra de algum bocejo.

Para as crianças ou adolescentes que pouco prestarão atenção na história mais do que no visual, definitivamente o filme poderia ter tido uma atmosfera mais receptiva, já que a intenção da história é justamente fazer aquilo que Burton sempre faz em seus filmes, mostrar que ser diferente não é um defeito, mas uma qualidade única de cada um, algo que, por incrível que pareça, dessa vez não teve muito sucesso nessa moral que no livro parece ser tão forte, segundo aqueles que leram.

Mesmo sendo mais um filme no currículo de Burton que não impressione tanto quanto outros, de qualquer forma, ainda é uma aventura fantasiosa a ser apreciada por algumas particularidades e por um elenco que, dentro do possível, é carismático em sua maioria, principalmente Eva Green (a mesma do seriado Penny Dreadful), com seus grandes e expressivos peculiares olhos.

É mais uma daquelas produções em que muita gente pode amar e outras odiarem, além de muitos fãs dos livros ficarem desapontados pelo filme não representar as coisas da forma como imaginavam, ou deixar de colocar na história elementos que particularmente gostaram ou se identificaram. Algo compreensível, principalmente no cinema comercial.

CONCLUSÃO...
A história em si é cativante, mas parece não ter o mesmo apelo na tela, e o visual se destaca muito mais do que ela própria, mesmo que menos inspirado do que Burton costuma ser.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

DA POLÊMICA À SUA RELEVÂNCIA...

★★★★★★★★★
Título: Aquarius
Ano: 2016
Gênero: Drama, Suspense
Classificação: 16 anos
Direção: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Sonia Braga, Zoraide Coleto, Pedro Queiroz, Maeve Jinkings
País: Brasil, França
Duração: 142 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Aquarius é o nome do condomínio que fica na orla de Boa Viagem, em Recife, onde Clara (Sonia Braga) vive há mais de 35 anos, mas agora se vê em uma disputa com uma grande empreiteira que pretende comprar seu apartamento, o último a ser desocupado, e assim construírem um novo edifício.

O QUE TENHO A DIZER...
A história, dividida em três capítulos, começa com Clara nos seus 30 anos, em 1980. Empolgada para mostrar a seus amigos/parentes um "novo som", uma "nova música". Ela coloca a fita K7 no aparelho do carro para tocar Another One Bites The Dust, do Queen, um dos grandes hits daquele ano, mas que, exatamente naquele momento, ainda era desconhecido por aqui. Isso mostra o engajamento de Clara com a música, sendo desta paixão que irá se firmar como uma reconhecida escritora/jornalista.

Ela volta para seu apartamento, onde um grande número de outros amigos e parentes a aguardam para comemorar um aniversário. Pelo número de crianças que se divertem no quintal, chegamos a pensar que a festa é para alguma delas, mas não. A comemoração é para Tia Lúcia, que completa 70 anos, a qual ganhará um discurso emocionante, onde é citado brevemente suas conquistas profissionais, de como sua participação familiar é importante, e de ter sido perseguida na ditadura por conta de suas inclinações políticas. Tia Lúcia divaga entre memórias, agradece com emoção e brinca dizendo que falaram de tudo, só pularam a época da Revolução Sexual, provavelmente quando conheceu seu falecido amante, quem realmente amou.

Aproveitando o discurso, o marido de Clara fala como os últimos meses foram difíceis, principalmente até ela superar sua doença, o que a deixou "com o cabelinho de Elis Regina", como ele diz. Isso deixa óbvio que a protagonista sobreviveu um câncer, e também que o cabelo que usa não é porque ela segue uma moda, uma tendência, mas por resultado do tratamento.

A importância dessa primeira parte é mostrar ao espectador toda a sólida base familiar que construiu a personalidade igualmente calorosa e liberal de Clara. Tia Lúcia ter citado abertamente a Revolução Sexual, sem haver constrangimento de nenhuma parte, apenas reforça isso. É algo que não mudará com o tempo, embora o ambiente à volta da protagonista se modifique: seu cabelo volte a ser comprido (como devia ser antes da doença); a planta de seu apartamento seja modernizada; os filhos que cresceram, casaram e pouco a visitam; e da vida um tanto solitária que tem, mas que ao invés de lhe trazer incômodo, traz autoconfiança e sossego.

A independência, o vanguardismo, o senso de moral e justiça de Clara são resultados de sua educação, da sua percepção da vida. É na segunda parte que experimentaremos um pouco de seu agradável e muito bem conquistado cotidiano, até que a Bonfim Empreendimentos surja para tentar atrapalhar (ou modificar) tudo isso, trazendo com ela a desconfiança, a apreensão, o conflito, a quebra da pacata e cômoda vida que Clara conquistou com muito custo. E então o medo surge. De que tudo aquilo construído por toda a sua vida seja, literalmente, desmoronado e que nada sobre daquilo além da poeira, tal como também quer dizer aquele sucesso do Queen que ouviu em 1980.

Como Marcelo Hessel escreveu em sua crítica para O Omelete, o horror toma forma do arranha-céu ao lado, o qual a personagem chega a olhar com espanto da rua, e que depois assombra com a branca rede de segurança que despenca pela janela de Clara no meio da noite como um fantasma. A ameaça da mudança forçada trazida pela especulação imobiliária, da ganância empresarial que se funde com a ambição política, a tentativa de interrupção e intromissão da vida alheia, o enraizamento de uma cultura religiosa intrusiva e invasiva. O início do assédio moral, social e psíquico. Tudo isso são os vilões sociais que Kleber constrói e difunde, elementos que a todo momento tentam moldar o indivíduo e transformá-lo parte de uma massa uniforme.

Primeiramente há um cuidado estético fenomenal, a começar pela fotografia e o desenho de produção impecáveis. Quando o filme começa, a impressão que se tem é de realmente assistir uma película dos anos 80. O figurino, a maquiagem, os cabelos, até mesmo a imagem propositalmente saturada e envelhecida nos dão a nítida impressão de, talvez, estar assistindo um filme errado. E então, esteticamente tudo muda, e depois de uns vinte minutos de introdução da história Sonia Braga surge na janela de seu apartamento, radiante depois de 20 anos sem ser protagonista de um filme nacional. Perfeitamente enquadrada, dominante nos longos cabelos pretos, sua marca registrada de décadas e a marca registrada da cultura cinematográfica brasileira.

É emocionante vê-la. Essa exposição proposital no momento em que entra no filme tem absolutamente tudo a ver com a proposta de Kleber Mendonça sobre as diferenças entre a memória, o saudosismo e a nostalgia. Para o espectador, ver Sonia pode soar nostálgico, mas para Kleber, colocá-la em cena é atualizar uma memória, é ser saudosista com com seus trabalhos anteriores para valorizá-la neste presente. A construção e, ao mesmo tempo, o resultado que Aquarius é de tudo isso. E é dessa forma como Clara vive sua vida. Há o saudosismo, mas sem vazão à nostalgia. A construção dia após dia de algo que possa ser preservado no futuro. Não é ser a favor ou não da tecnologia, ou do MP3, mas é ter a garantia de que aquilo tenha uma história, uma razão para existir e acontecer, como o LP de John Lennon que ela mostra. Qual o legado a ser deixado por tudo isso?

Mas ainda sim a nostalgia é sentida, mesmo que perdida em algum espaço, encoberta em algum momento. É a função da música na vida de Clara. A nostalgia é seu momento íntimo, o link da sua relação com o passado, aquilo que a faz reviver as sensações. A história que aquela lembrança fonográfica lhe trás, assim como a história que acompanha a cômoda de Tia Lúcia, mas que apenas e somente Tia Lúcia conhecia. É o olhar de Clara à namorada de seu sobrinho, o (talvez) vislumbre da adolescência que um dia teve.

Não há imediatismo na história. Kleber não tem pressa em construí-la e nos imergir. Ele quer que tenhamos conhecimento de quem são as pessoas daquele filme, quer que conheçamos suas histórias, nem que seja a mais coadjuvante delas, como a advogada de Clara, que é apresentada como "advogada e amiga". O ênfase dado em "amiga" poderia ter ficado de fora, não faria diferença numa observação superficial. Mas dentro do contexto do filme, existe uma importância para Clara fazer isso, pois sua amiga faz parte da sua vida. Os vínculos possuem histórias, e isso tudo é explorado desde o mais simples objeto até o protagonismo da personagem. Não existe ponto sem nó, tudo é milimetricamente construído para um propósito específico. Linear e simples, mas que demonstra a devoção da protagonista pelo tempo e por tudo aquilo que ele oferece.

É quando já estamos bastante íntimos da personagem e de seu cotidiano que aquele pedaço de vida tem uma reviravolta. A ambientação leve dá lugar a uma tensão no ar, e o suspense passa a tomar conta na dúvida do que é que vai acontecer, qual é a próxima ameaça social na qual Clara estará sujeita por simplesmente querer ser respeitada e ter sua vontade preservada, como seria de seu direito.

Sim, há uma crítica social e política no contexto. Só enxerga quem quiser ver. Para aqueles que não se importarem com isso, de qualquer forma perceberão como o roteiro reproduz mesmo assim o cotidiano e seus problemas. Podem não acontecer diretamente, mas nos afetam de alguma forma porque permeam nosso redor: da vizinhança que se altera, das casas que se modificam, de terrenos que se multiplicam, edifícios que substituem a memória do que tínhamos; pessoas que crescem e não mais reconhecemos; atitudes que se empobrecem; o sentimento de incompetência, impotência e vulnerabilidade vinda do abuso do poder.

A polêmica na qual o filme se envolveu parte de um grande equívoco que ironicamente e sem querer acabou tendo total contexto com o filme, já que ele também nos questiona até onde vai a subordinação das pessoas pelo poder. A situação polêmica do filme reproduz exatamente a desinformação, a desvirtuação e a transferência de culpas que atualmente a sociedade brasileira tem vivido, consequência da polarização de idéias.

Pode até haver uma metáfora em resultado de uma mera coincidência. Mera coincidência porque sua produção foi iniciada antes da forte crise política de 2015/16. A mais importante associação que possa ser feita entre o filme com o cenário político vivido é o incessante assédio sofrido pela protagonista por todos os lados, desde a pressão do engenheiro até a escada social toda defecada. Por ser uma mulher sexagenária, taxada como louca, pressionada pela empreiteira e pelos ex-vizinhos que reinvidicam suas porcentagens do imóvel que não pode ser recebido enquanto ela não desocupar o apartamento. Não que tudo isso seja uma coincidência específica com o momento político, mas é uma recorrência do que é visto acontecer com as mulheres independentes e sociopoliticamente ativas na sociedade machista. São pressionadas, minimizadas e ridicularizadas até sua total desmoralização.

É o que acontece com Clara quando pergunta a seus filhos se eles já sentiram as pessoas considerá-los loucos mesmo sabendo que não estão loucos, mas acabando se sentindo loucos de tanto que os outros os taxam de loucos. Parece redundante, mas é o sentimento desmoralizante, o pânico crescente resultante da desumanização que estamos sujeitos a sofrer. É o que acontece no cenário social e político brasileiro, é o que está acontecendo no cenário social e político norteamericano, é o que acontece na sociedade e na política, no passado ou no presente. Além de podermos associar a substituição do condomínio de Clara por outro presumidamente mais "seguro" e "confiável", corporativista, agregador do poder. É a venda de que o novo é sempre melhor, a coisificação do objeto, a agregação do valor a algo banal apenas para preservar um status, uma qualidade de vida ilusória. É o que acontece na sua cidade, no seu bairro, no condomínio vizinho. É o que está acontecendo no país, seja o nosso, seja o dos outros.

Mais do que uma coincidência com fatos políticos, é uma coincidência social que se repete aqui e em qualquer lugar do mundo. Kleber Mendonça pode nem ter escrito o roteiro pensando propositalmente nesses detalhes, mas por conta desses padrões repetitivos. Um visionarismo condicionado neles, inconsciente.

O fato da direita conservadora brasileira ter criticado negativamente o filme por conta do ativismo político do diretor e do elenco em Cannes, inventando associações esquerdistas ao filme, é de um despropósito inquestionável. As ofensas dirigidas gratuitamente a Sonia Braga é uma ofensa direta a um patrimônio da cultura nacional, ao que ela representa como pessoa, como profissional e figura pública. Como dito, é o irônico equívoco consequente da desinformação, da opinião deturpada de pessoas que sequer o assistiram e mesmo assim o taxaram de diversas coisas, como "filme comunista" ou "filme socialista", sendo que, em absoluto, é nada disso. É até vergonhoso ler comentários que se prestam a dizer qualquer coisa sobre ele, menos do que ele realmente seja.

E sem dúvida houve uma perseguição política ao filme, não pelo que ele explora, mas para retaliar as pessoas envolvidas nele que se manifestaram contra o governo substituto: O Ministro da Cultura se pronunciou contra o diretor; a classificação etária de 18 anos foi dada para fortalecer o boicote (posteriormente reduzida para 16 anos); mesmo com a excelente receptividade da crítica estrangeira, ele não foi selecionado para representar o Brasil no Oscar e, em consequência de tudo isso, sumiu tão rápido como se destacou. Emudeceram um dos filmes mais originais e relevante que surgiram nos últimos anos, sem qualquer razão. Um filme que se coloca no mesmo patamar de qualidade e multi-interpretação de Que Horas Ela Volta? (2015).

A sorte que temos é que nada no cinema morre, só tende a ser fortificado com o tempo. E repetindo o que li recentemente sobre ele, ignorando qualquer controvérsia política envolvendo o filme, o que sobra é uma história fantástica, com um intenso final libertador a Clara, que pode não resolver seu problema, mas como ela mesma afirma, só de dar um mínimo de dor de cabeça já satisfaz.

Mesmo sendo uma co-produção da Globo Filmes, é em produção como essa que notamos a presença, importância e empenho do diretor, é algo que podemos assistir e afirmar com categoria o que é um cinema de classe, com relevância e qualidade, mais espontâneo e natural. É o "estilo Sonia Braga" que se destaca e deveria ser referência a qualquer um. Sônia mesmo já afirmou humildemente que não é uma atriz, mas uma ferramenta do diretor, pois não consegue interpretar roteiros, mas faz o que ele manda. Ela compreende o contexto e improvisa em cima daquilo na medida do possível. É daí que vem sua espontaneidade e ver em Clara uma pessoa comum de verdade, defendida com honestidade e caráter, o exemplo daquele brasileiro antes de se esquecer quem realmente é.

CONCLUSÃO...
A discussão social do filme e da posição que os indivíduos se colocam em uma sociedade é forte. A discussão política é implícita, discreta. Exerga quem quer, e é metafórica para quem quiser que seja, sendo assim um filme bastante subjetivo, podendo ser visto da forma que lhe melhor agradar. Um filme que, acima de tudo, nos mostra que moral, ética e educação vem de bases familiares, e através delas que deixamos nosso legado, valores acima de qualquer cifrão ou de qualquer universidade estrangeira. É ser Clara.

TENHA MEDO DA ÁGUA...

★★★★★★★☆
Título: Águas Rasas (The Shallows)
Ano: 2016
Gênero: Suspense, Ação, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Jaume Collet-Serra
Elenco: Blake Lively, Óscar Jaenada
País: Estados Unidos
Duração: 86 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Após a perda da mãe, Nancy (Blake Lively) resolve viajar para uma praia isolada e desconhecida no México, na qual sua mãe costumava frequentar enquanto estava grávida dela. Tentando aproveitar o momento para surfar e superar as dores recentes, é atacada por um tubarão. Ilhada em um recife, agora tem de descobrir uma forma de sobreviver.

O QUE TENHO A DIZER...
Blake Lively, a protagonista, afirmou que queria muito fazer este filme porque se sentiu inspirada pelo seu marido, Ryan Reynolds, em Enterrado Vivo (Buried, 2010), pois as filmagens se passaram inteiramente com ele dentro de uma caixa. Reynolds sofre de claustrofobia, e mesmo assim aceitou o papel por conta do desafio que seria. Blake quis o papel pelo mesmo motivo, pois passar todo o tempo de filmagem dentro da água seria igualmente desafiador e transformador tanto quanto foi para ele.

E realmente, se analisarmos a situação como um todo, existem grandes similaridades entre o filme de Reynolds com este, já que é basicamente uma história de sobrevivência, ou tentativa dela. Por isso o enredo não é nada demais além de uma surfista que fica ilhada no mar depois de ser atacada por um tubarão branco fêmea.

Ok, para aqueles que afirmarem que este é mais um filme de tubarões e que novamente usa referências do clássico de Steven Spielberg, estará redondamente certo. A diferença aqui é que, mesmo sendo uma ficção exagerada tanto quanto o filme de Spielberg e sabermos cientificamente que na vida real a situação seria bastante diferente, o legado é honrado e talvez consiga ser o segundo melhor filme sobre o tema depois de Tubarão (Jaws, 1975). Claro que houveram outros, como Do Fundo do Mar (Deep Blue Sea, 1999), que na época também foi elogiado por referenciar Tubarão, mas que não conseguiu sobreviver ao tempo e hoje é visto como um filme trash, datado e cliché, com péssimas atuações.

Não adianta, de tempo em tempo alguma produção sobre o frio e calculista animal vai aparecer, e sempre algum será surpreendente de alguma forma. Mas o que faz esse aqui um tanto diferente e especial é que, em primeiro lugar, não tem pretensão de ser algo chamativo e impactante, a começar pelo seu orçamento relativamente baixo que impede isso (US$17 milhões). Ele também não trata a situação como um filme de horror, a transformar o animal em um assassino em série, ou colocar o elenco em uma sopa de sangue e vísceras.

De maneira irônica, existe um drama à deriva que nos afeta. O isolamento da personagem, a tragédia familiar que lhe perturba, a tentativa de revisitar suas origens, a redescoberta pessoal e outros detalhes sutis que dão um arco dramático na história bastante convincente, que nos faz torcer pela sobrevivência da personagem e ao mesmo tempo nos angustia porque não conseguimos ver saídas óbvias para ela. Sim, torcer pela sobrevivência mesmo. Enquanto nos outros filmes a gente torce para os personagens escaparem do perigo, aqui torcemos para ela sobreviver, para conseguir superar seus conflitos e seguir com sua vida. Por isso, também é um interessante filme sobre superações. Nada muito profundo, mas como dito, são coisas que ficam na superfície o tempo todo e que acaba nos atingindo emocionalmente.

É um filme que funciona desde o princípio, quando a câmera faz a clássica filmagem submarina de Spielberg como se fosse os olhos do animal focando sua presa. O bom aqui é que o diretor italiano, Jaume Collet-Serra, não faz disso algo cliché, como ocorre frequentemente. Pelo contrário, o sentimento perturbador e de medo são menores do que o sentimento de solidão e fragilidade, mas nem por isso deixamos de enrigecer os ossos em vários momentos.

A locação escolhida para filmagens definitivamente é um deslumbre à parte, mesmo que o diretor tenha afirmado que, a cada cena feita, 10% era real, enquanto 90% era digitalizado, mas é os 10% que engana o espectador devido à ênfase dada na imagem, e não nos efeitos. As cenas esportivas ou submarinas também são muito bem feitas, sejam reais ou digitais, como no momento em que a protagonista é atacada pela primeira vez, arrastada para o fundo por conta da turbulência e o empuxo da onda. É uma daquelas situações que voltamos a cena várias vezes para ver detalhes.

Tudo é muito objetivo e claro. Tudo é muito simples e bem feito, e é por isso que funciona e impressiona.

CONCLUSÃO...
As referências a Tubarão (1975) podem parecer muitas, mas ao contrário do clássico de Spielberg, aqui o diretor opta por transformar o animal não em um monstro, mas em uma ameaça natural, além de deixar muito mais exposto o lado dramático e elementos que nos conectem com a personagem, evitando elementos clichés do gênero, sustos baratos e banhos de sangue. Além de tudo, tem Blake Lively, que além de bonita também tem talento.

sábado, 5 de novembro de 2016

AQUELE NOVELÃO DA GLOBO...

★★★★☆☆☆☆☆☆

Título: Amor Em Sampa
Ano: 2016
Gênero: Comédia, Romance, Musical
Classificação: 12 anos
Direção: Carlos Alberto Riccelli e Kim Riccelli
Elenco: Bruna Lombardi, Du Moscovis, Rodrigo Lombardi, Mariana Lima, Carlos Alberto Riccelli, Tiago Abravanel, Kim Riccelli
País: Brasil
Duração: 110 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
O amor a São Paulo e as possibilidades de se encontrar o amor no meio ao caos da metrópole.

O QUE TENHO A DIZER...
Amor em Sampa é o quarto filme produzido pelo casal Bruna Lombardi e Carlos Alberto Riccelli. Mais uma vez com o roteiro original de Bruna e direção de Riccelli, que agora divide a cadeira com seu filho, Kim. E todos eles também atuam. É um trabalho em família, e tanta função mostra a versatilidade de ambos nos diferentes trabalhos que exercem, assim como aconteceu nos filmes anteriores.

Para quem já assistiu os filmes anteriores do casal, a expectativa nesse novo longa foi grande, e não seria errado assisti-lo como uma versão mais leve e bem humorada de O Signo da Cidade (2007), já que a história parte basicamente do mesmo princípio de ser uma junção de várias pequenas histórias que se fundem no amor pela metrópole e os amores que surgem nela. Enquanto em O Signo os personagens se chocavam de forma até drástica e a cidade era mostrada de forma mais fria e distante, aqui eles se encontram, se cruzam e se conhecem, às vezes, sem qualquer afinidade, mostrando o lado mais caloroso e possível, difícil de alcançar no outro filme.

Misturando diferentes narrativas com sequências musicais, a idéia até parece interessante, mas Bruna se perde no trajeto ao tentar tanta abrangência, não conseguindo ser efetiva seja quando a narrativa está em primeira pessoa (com algumas quebras da quarta barreira), seja quando é objetiva. O roteiro tenta dar aquela espontaneidade inspirada de musicais como os de Fred Astaire, quando de repente alguém começa a cantar e desenvolver a história dentro da música, algo que Woody Allen tentou resgatar nos anos 90 com Todos Dizem Eu Te Amo (Everyone Says I Love You, 1996), usando atores que nem tinham talento vocal, mas funcionava na proposta romântica.

Neste filme as sequências musicais mais atrapalham do que ajudam. Pode ser, ora ou outra, um pouquinho atraente, diferente, como é na apresentação do longa, mas no geral atrasam o desenvolvimento das histórias e não conseguem evitar aquela sensação um tanto cafona, constrangedora, como na sequência de Rodrigo Lombardi cantarolando em um jardim por estar com o coração partido. As demais tramas amorosas, cheias de encontros, desencontros, e muita argumentação banal, também são bem fracas. Nada que realmente lhe dê um grande motivo para continuar assistindo com prazer, como foi em Onde Está A Felicidade? (2011), ou com grandes expectativas de algo realmente bom e impressionante acontecer.

Bruna também tenta engatar seu ativismo com sua preocupação real sobre o aquecimento global, é seu momento de exercer um serviço social de conscientização dentro do seu trabalho como roteirista e atriz, mas soa forçado e enfiado na história, virando algo esquecível frente a tantos personagens e tramas paralelas pouco consistentes.

O que mais me incomoda profundamente no cinema nacional é a falta de naturalidade dos diálogos, das interpretações e interação. É exatamente isso que estraga esse filme em sua totalidade, que faz desandar a maioria das sequências que poderiam ter algo interessante, seja nos momentos cômicos ou nos poucos conflitos dramáticos que surgem. A falta de um roteiro mais expressivo na linguagem coloquial ajuda nesse excesso de floreio e formalidade na atuação, e quando o texto pede do ator o uso de uma gíria ou um palavrão, nem existe coerência.

Comparado com os filmes anteriores do casal, Amor Em Sampa é como um retrocesso. Não oferece o mesmo nível de qualidade, intensidade ou relevância, seja na direção, seja no roteiro. E olha que Bruna Lombardi sabe escrever um bom roteiro. Já Riccelli continua o mesmo: bom na parte técnica, mas um péssimo diretor de elenco. Elenco "global" que está sempre mal preparado, cheio de participações especiais igualmente sacadas, como a de Tiago Abravanel, um estrupício que de nada acrescenta na história. Os atores, se não aparentam amadores e inexpressivos, como o próprio Riccelli (ou seu filho), são atores experientes que representam no padrão televisivo que estão condicionados, como Rodrigo Lombardi, que sempre mais parece um palestrante do que um ator. Deve-se lembrar que esse é um problema recorrente nos filmes de Bruna e Riccelli (com menor intensidade em Onde Esta A Felicidade?), e isso acontece justamente por ser uma produção da Globo Filmes.

Querendo ou não a produtora nada mais é do que uma extensão do monopólio da Rede Globo, expandindo seu capital e utilizando seus filmes como marketing de seus atores de casa e os produtos populares em que eles estão relacionados. Isso interfere negativamente na qualidade dos filmes porque o formato é mais televisivo que cinematográfico; a linguagem é repetitiva como de um folhetim ou de um seriado cômico de terça-feira; a edição é repicada, nunca fluida; os atores escalados nos papéis secundários parecem estar lá por exigência contratual; até coisas simples, como cenas de transição, diminuem a qualidade narrativa porque é tudo muito didático, fácil, trivial. Toda a cartilha de "como fazer um filme para a Globo" está lá. Elementos que o cinema de classe dispensa.

De tudo, nada é diferente do que é visto diariamente nas telenovelas da emissora, e nada parecido com os filmes nacionais independentes ou produzidos por empresas mais sérias que seguem padrões mais internacionais, no sentido de experiência e qualidade visual/narrativa.

O filme não é uma piada, mas com tantos padrões meramente copiados e colados do formato televisivo, parece. Passou da hora de Bruna e Riccelli buscarem outras parcerias para uma maior liberdade criativa, para ousarem mais com as experiências que adquiriram juntos nessa jornada de quatro longas metragens em um pouco mais de dez anos. Influentes no meio artístico como são, conseguem facilmente alcançar um patamar de qualidade superior ao que estão e ir atrás de um público mais sério, que não quer ir ao cinema para ver mais do mesmo que se vê na televisão.

É possível notar os esforços do casal em fazer o filme funcionar. É evidente a paixão que ambos possuem pelo cinema e pela arte, o que é admirável e o que sempre mais admiro em seus trabalhos, mas definitivamente Amor em Sampa pode ser agradável e bonitinho de se ver como um novelão de 110 minutos, mas nunca se entrega como deveria como um filme, e nunca cumpre a proposta de mostrar o amor pela cidade e como os amores se constroem nela.

CONCLUSÃO...
A impressão que se tem com Amor em Sampa é de assistir um novelão de quase duas horas. Ser uma produção da Globo Filmes impacta diretamente na qualidade e nos padrões, deixando de ter um formato cinematográfico para ser televisivo. É uma pena. Até que ponto há uma interferência da produtora, é difícil saber, mas é muito fácil perceber pelo visual e pela narrativa que está longe de ser um produto para cinema.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

NÃO RESPIRE...

★★★★★★★☆☆☆
Título: O Homem Nas Trevas (Don't Breathe)
Ano: 2016
Gênero: Suspense
Classificação: 14 anos
Direção: Fede Alvarez
Elenco: Jane Levy, Dylan Minnette, Daniel Zovatto, Stephen Lang
País: Estados Unidos
Duração: 88 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Três colegas resolvem assaltar uma casa, mas as coisas não saem realmente como planejavam.

O QUE TENHO A DIZER...
Se tem uma coisa que me irrita muito nos títulos em português é a deturpação do filme e do seu contexto. Isso é muito comum em filmes como esse, que quando chegam no Brasil sem fama alguma, sensacionalizam o título para ter venda fácil. O material promocional também o vende como um produto de terror, algo igualmente comum nas produções da Ghost House, produtora de Sam Raimi, que apenas investe neste gênero, dos quais raramente algum seja realmente bom ou realmente de horror.

Portanto, esqueça, não é um filme de horror, não é um filme gore (sanguinário) e muito menos macabro, como pode parecer. É puramente um suspense, no seu sentido mais cru, porque não há monstros, não há sobrenatural, não há um assassino em série ou qualquer outro elemento que pudesse caracteriza-lo como tal. E falar somente sobre isso já é o suficiente para não estragar algumas surpresas que ele segura.

Então, basicamente a história é de três conhecidos que ganham a vida assaltando casas facilmente porque o pai de um deles é dono de uma empresa de segurança, tendo informação e acesso fácil às casas asseguradas. Mas aquilo que roubam não lhe dão o retorno financeiro que esperam. É quando descobrem que, em uma casa isolada, onde mora um senhor cego, há uma grande quantidade de dinheiro suficiente para abandonarem essa vida delinquente. Resolvem fazer desse assalto o último golpe, mas como todo filme do gênero, as coisas não saem muito certas.

Por incrível que pareça, esse filme um tanto desconhecido pelos lados de cá foi um dos mais inesperados sucessos do primeiro semestre nos lados de lá. Seu orçamento foi de US$9 milhões, enquanto arrecadou mais de US$140 milhões no mundo.

De fato, é uma surpresa, porque o título original (que significa "não respire") é basicamente o que o espectador fará do começo ao fim devido a tensão que a história cria. Sendo mais interessante o fato de não demorar para essa atmosfera surgir, a qual é mantida até o final de maneira bem satisfatória. Os atores não fazem feio, e a idéia um pouco ousada do diretor uruguaio, Fede Alvarez, pode lhe render um ótimo futuro se ele souber cultivá-lo como fez com essa produção.

Alvarez, é o mesmo do remake de Uma Noite Alucinante (Evil Dead, 2013), que foi bastante criticada porque mexia com o clássico imexível do próprio Raimi. Por conta das negativas críticas recebidas pelo longa anterior, este atual filme é basicamente uma resposta a isso. Ele optou por um material original (o roteiro foi escrito por ele), sem grandes derramamentos de sangue ou que tivesse elementos sobrenaturais. Daí a razão do uso de elementos que, pelo senso comum, seriam inofensivos, pois seu exercício durante o desenvolvimento do roteiro foi criar uma história partindo totalmente do inverso daquilo que seria um filme de horror com elementos óbvios, onde tudo fosse explícito ou evidentemente ameaçador, além de desgastado como o gênero está.

A concepção é muito interessante e fazia tempo que eu não assistia um thriller como esse, que me deixasse naturalmente tenso com suas sequências e algumas boas sacadas que enganam o espectador com omissões sem subestimar sua inteligência, algo que é difícil se fazer. Mas assim como Hitchock afirmava, filmes de suspense dependem apenas da técnica. Alvarez definitivamente mostra ter habilidade com ela, e não é à toa que a história tem lá seus buracos, incoerências e absurdos, com um desenvolvimento muito pobre dos personagens e razões muito rasas para serem criminosos. Mas a tal efetividade da técnica consegue ser mais presente, deixando esses defeitos apenas como pano de fundo para a construção da atmosfera apreensiva.

De certo modo há até referências a clássicos como o próprio Uma Noite Alucinante (Evil Dead, 1981), Cujo (1983) e Silêncio dos Inocentes (Silence Of The Lambs, 1991), os dois últimos, muito bem referenciados, por sinal.

CONCLUSÃO...
Não é um daqueles filmes brilhantes, mas cumpre aquilo que promete, desde que não seja assistido como um filme de horror. Mesmo no visível baixo orçamento, ele se destaca de muito outros mais caros e muito mais comerciais do mesmo gênero, além de igualmente também oferecer muito mais.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

PASSE LONGE. IGNORE...

★★☆
Título: Nina
Ano: 2016
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Cynthia Mort
Elenco: Zoe Saldana, David Oyelowo
País: Reino Unido
Duração: 90 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma visão superficial e um tanto romântica de alguns anos da vida da cantora, compositora, musicista e militante, Nina Simone.

O QUE TENHO A DIZER...
É difícil falar de Nina depois de What Happened, Miss Simone? (2015), porque por um lado temos um grande documentário produzido pela Netflix, que concorreu ao Oscar (e venceu o Emmy), enquanto do outro temos um filme banal que apenas mostra a cantora como uma mulher instável e alcólatra durante todo o tempo e nada mais. Há apenas um esboço aqui e alí do seu ativismo social, ou de uma ou outra inspiração para suas composições, mas só. O resto é irrelevante e desnecessário.

Há tantos erros, equívocos e livre interpretação neste filme que a situação chega a ser bastante ultrajante. Boa parte de tudo ocorre pela idéia ser extremamente ousada para uma estreante na direção, Cynthia Mort, que também escreveu o roteiro sem ponto de partida ou chegada, sem eira ou beira. A outra catástrofe foi o fato da família de Nina não ter sido consultada em nenhum momento, principalmente sua filha, a cantora Lisa Simone Kelly, que não aprova a produção e muito menos seu conteúdo, embora tenha deixado claro que nenhuma responsabilidade do filme deve ser atribuída à atriz, Zoe Saldana, como a crítica e o público acabou fazendo.

A pesquisa da diretora/roteirista, parece bastante rasa, de fontes duvidosas, como se tivesse juntado um punhado de boatos de trablóide e feito um filme com isso. Ela até tenta dar uma cronologia, mostrando ora ou outra o ano em que certa cena se passa, mas Nina (a personagem), nunca envelhece, nem quando está nos seus mais de 60 anos.

O filme basicamente começa em 1995 com Nina sendo internada em um hospital psiquiátrico após ameaçar um advogado com uma arma. Nessa época Nina tinha 62 anos e morava na França, e já tratava sua bipolaridade, que foi descoberta apenas no final dos anos 80. Muito provável que também já tratava seu câncer de mama, lembrando (por pura curiosidade) que em 1997 ela se apresentou no Brasil, no Bourbon Street, em São Paulo.

Por conta de falhas cronológicas e de informações como essas, nunca temos certeza em qual época boa parte da história se passa. Cynhtia se manteve numa zona segura, negligenciando períodos muito mais interessantes, importantes ou complexos da vida da cantora, como sua militância aos Direitos Civis ou até mesmo a fase mais pessoal e turbulenta ao deixar os Estados Unidos nos anos 70 e se radicar em Barbados. Se ela tivesse pego o início de sua carreira, quando adotou o nome artístico para esconder de seus pais que ganhava dinheiro tocando em bares noturnos de Nova York, época que foi obrigada a usar sua voz e descobrir que também era uma cantora, o que abruptamente ascendeu sua carreira, teria sido muito melhor do que um filme que tenta ser qualquer coisa, menos uma biografia.

A diretora/roteirista evidentemente opta por buracos negros da biografia para ter liberdade de interpretação e criar tudo a seu modo, como no período em que Nina se isolou na França apenas em companhia de seu assistente, Clifton Henderson, chegando a ficar seis meses sem contato com qualquer outra pessoa. Pouca gente sabe o que aconteceu durante esse tempo, então qual o motivo em explorá-lo se não existem fontes seguras para descrevê-lo? É então que Mort erra pesado outra vez, pois é nesta fase que o filme mais se foca, criando uma necessidade em deixar implícito uma relação mais íntima e romântica entre Nina e Clifton, fato que a própria filha da cantora nega que possa ter acontecido por Clifton ter sido abertamente gay.

Não houve cuidado estético, não houve planejamento adequado. Toda a produção é definitivamente um dos maiores erros do cinema em seu propósito de ser um material biográfico de uma das figuras mais controversas da música e da cultura negra norteamericana, uma tentativa desrespeitosa em trivializar, marginalizar e explorar sua imagem como um commodity hollywoodiano.

Mas nada foi tão controverso quanto a escolha da portoriquenha Zoe Saldana, gerando diferentes reações negativas principalmente após o lançamento do trailer, sendo alguns até engraçados, como ESTE AQUI (em inglês, sem legendas).

A grande polêmica foi de Zoe ser latina e ter uma pele muito mais clara do que a da cantora, precisando ser caracterizada sob forte maquiagem e próteses no nariz, dentes e lábios para se distanciar do biotipo latino e se aproximar do afroamericano. Se o filme tivesse levado a história de Nina a sério desde o princípio, a atriz nunca teria sido escolhida. A reprovação pela escolha vem justificada pelas raízes da cantora e seus princípios sociais, étnicos e de gênero. Seu feminismo e sua militância pela liberdade e expressividade da cultura negra sempre foram as engrenagens de seu trabalho. Sim, ser ator é não ter cor, mas existem casos em que as caracterizações devem ser respeitadas, e a de Nina deveria ser uma delas. Esse desrespeito mostrou a hipocrisia no cinema, e o racismo latente, principalmente numa época em que os afroamericanos tem liderado a militância por maiores participações no cenário artístico. O equívoco na escolha definitivamente é, como dito por Aaron Overfield, gerente de conteúdo do ninasimone.com, "uma cuspida no legado de Nina".

De qualquer forma, apesar de toda a crítica negativa envolta, a atriz não deve ser culpada. É compreensível os motivos dela ter aceito o papel (mesmo que não seja compreensível o motivo de não ter recusado, já que tudo indicava que ela não deveria fazê-lo). Zoe disse que sua intenção em representá-la foi a honra de poder transferir as mensagens e o idealismo de uma figura respeitável, se doando de corpo e alma para isso. É notável os esforços em sua caracterização física, algo que ela faz até bem, reproduzindo comportamentos, maneirismos, o modo de andar, dançar e falar que muito se assemelham. Zoe é expressiva, ela tem uma dramaticidade convincente, mas ironicamente, quando lembramos que sua personagem é Nina Simone, fica bastante difícil aceitá-la, principalmente quando a pesada maquiagem mostra-se como algo mal feito, de próteses evidentes e mal encobertas. Um grande erro também foi terem substituído todas as imagens da cantora pelas da atriz. Só há um momento, que eu me lembre, da capa original de um LP aparecer, todas as demais imagens foram substituídas, tanto quanto as músicas, cantadas pela atriz, e não dubladas, como deveria ter sido, já que o timbre e o alcance vocal de Nina são únicos.

É óbvio que terem optado por essas substituições mostra o baixo orçamento do filme, ao ponto da produção não ter tido condições de pagar pelos direitos do uso da imagem e das canções originais (que realmente encarecem muito). Zoe Saldana canta muito bem dentro de seus limites como atriz, mas tentar reproduzir o contralto de Nina, ou imitar suas transições e emoções nas performances chega a ser ridículo, incômodo, constrangedor. Sim, as versões de Saldana para o filme conseguem ser interessantes e apreciadas, como é a de Sinnerman, faixa utilizada nos créditos finais, onde Zoe canta como Zoe, mas todas essas músicas só funcionariam se fosse um tributo à parte, e não para um filme.

O mesmo a ser dito sobre o filme, que se for assistido como um drama qualquer, se for possível ignorar sua tentativa biográfica, o seu drama comum e melado podem até levar a algumas rasas emoções. Mas para isso só terá êxito aqueles que desconhecerem por completo quem foi o furação Nina Simone, caso contrário, passe longe da prateleira, ou ignore se um dia ele aparecer em algum serviço por demanda.

CONCLUSÃO...
Um filme que tenta ser qualquer coisa com o nome e Nina Simone, menos uma biografia.
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