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quinta-feira, 30 de julho de 2020

JOGO DO PODER E DA NARRATIVA...

★★★★★★★☆☆☆
Título:
 The Morning Show
Ano: 2019
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Vários
Elenco: Reese Witherspoon, Jennifer Aniston, Steve Carell, Mark Duplass
País: Estados Unidos
Duração: 60 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Os bastidores de um programa de notícias matinal, após escândalos envolvendo um de seus apresentadores, transforma o ambiente em um campo de guerra pelo poder e da narrativa.

O QUE TENHO A DIZER...
É inegável que The Morning Show é bem produzido, com uma história que não é nova, porém interessante da maneira como é conduzida.

Não é uma comédia, embora seu elenco seja predominantemente de atores que vieram do gênero; não é um drama denso porque ele não é melodramático, mesmo havendo momentos para tal; não é um suspense, embora haja situações bem tensas. Também não é uma série biográfica, mesmo tendo muitos elementos da realidade por trás da indústria do entretenimento, da manipulação, do sexismo e do patriarcalismo.

Contando a história fictícia dos bastidores de um dos programas mais assistidos da televisão, tudo parece virar uma maré de azar quando Mitch (Steve Carrell) é denunciado anonimamente sobre sua conduta sexual inadequada há anos dentro do ambiente de trabalho, sendo demitido apenas algumas horas antes do programa ir ao ar e da notícia ser publicada, deixando sua parceira, Alex (Jennifer Aniston), com quem dividia a bancada há 15 anos, sozinha como alvo de choque para toda a polêmica.

O peso da responsabilidade de ter de salvar a audiência do programa, de sua imagem e reconquistar a confiança do público cativo junto à falta de apoio de sua equipe de produção, que escondeu o fato até o último instante, a leva a um colapso nervoso. O dono da emissora UBA, junto a Cory (Billy Crudup), chefe de programação, se aproveitando da situação vulnerável em que ela se encontra, começam a traçar planos para manipular a narrativa e desviar as atenções para amenizar os danos causados pela inesperada bomba que desestabilizou os bastidores de um programa que sempre se pautou conservador.

No meio de tudo isso há Bradley (Reese Witherspoon), uma jornalista de um pequeno canal que viraliza nas redes sociais após ser gravada aos berros contra um homem que agrediu o seu câmera durante a cobertura de uma manifestação. Taxada como difícil e instável, ela se demite após ter sua conduta reprimida pelo seu chefe.

A situação se mostra favorável para Cory transforá-la num bode expiatório perfeito para sensacionalizar mais ainda toda a questão envolvendo as polêmicas do The Morning Show ao tentar engatilhar uma inimizade e uma dissimulada competitividade entre ela e Alex. Mas aquilo que parecia um excelente plano ousado de contingência para garantir a audiência e os patrocinadores, vira um arriscado jogo de poder e narrativa onde a conduta questionável de todos é posta a prova e uma guerra moral emerge.

Esse resumo é apenas a ponta de todo iceberg da mirabolante trama apresentada. Há muito mais que acontece em apenas os três primeiros episódios do que se pode imaginar, e é dessa forma bem rechonchuda que toda a série se desenvolve por seus 10 episódios.

Vale fazer um parênteses aqui de que conduta sexual inadequada é diferente de assédio ou violência sexual, e essa confusão é bastante comum. No caso abordado na série, seria um indivíduo se relacionar sexualmente com outros colaboradores com consentimento, mas essas relações darem margem a possibilidade de se estabelecerem outras relações de poder, imposição ou de interesse além do estabelecido profissionalmente.

Não é para menos que a série foi um imediato sucesso para uma estréia original da Apple TV, bem como uma das mais comentadas entre 2019/20. Uma das mais caras também logo em sua primeira temporada, onde apenas o salário das duas atrizes principais somam US$4 milhões por episódio. Portanto, é evidente que a Apple iria fazer de tudo para que não houvesse erros no processo. E muito de seu êxito, sem dúvida, é das atrizes, que também são as produtoras executivas. Witherspoon, que já está bastante gabaritada no assunto ao também ter produzido os sucessos Big Little Lies e o igualmente recente Little Fires Everywhere, incrementa com Aniston o discurso da sororidade que tem promovido na indústria nos últimos anos e que está dando muito certo com produções de inegável qualidade e que tem fortalecido o protagonismo feminino que sempre foi ignorado.

É claro que, não por essas razões, o produto final não apresente defeitos, muitos deles vindo do roteiro que, com tantas tramas, subtramas e constantes conflitos e reviravoltas, dá uma derrapada aqui e alí no desenvolvimento dos personagens ou em algumas motivaçôes rasas que poderiam ter ficado de fora para dar mais foco a coisas mais relevantes. Como o personagem de Steve Carell, que no fim das contas é irrelevante e esquecível, embora aparente não ser pelo foco que a produção dá à imagem do ator. Sua trama poderia ter sido embutida em qualquer outro personagem, fazendo dele um excesso desnecessário, que mais desvia a atenção do que agrega. Sua interpretação também é exagerada, apelando no tom dramático em vícios de interpretação característicos, como a forçar a impressão de que ele domine como ninguém a arte do improviso, mesmo que tudo seja roteirizado.

Maneirismos e vícios interpretativos também são o que impedem Aniston de dominar como poderia, desperdiçando a excelente oportunidade de finalmente se desvincular de Rachel Green de uma vez por todas. Igualmente peca no excesso assim como fazia em Friends, não havendo um momento que ela consiga manter a sobriedade de uma cena sem sair do tom com algum exagero caricato e desmedido, inclusive naqueles momentos onde o silêncio diria mais do que qualquer ação. Mas ela não consegue se conter. A desestabilidade emocional e psicológica de sua personagem justificam, mas seus exageros se tornam cansativos porque não são bem dosados ou dirigidos. E tudo sempre acaba com uma bufada ou um suspiro alto, de toda maneira possível e imaginável.

Ou seja, para Aniston e Carell, The Morning Show se torna uma oportunidade para ambos desenvolverem mais uma vez os mesmos personagens histriônicos e egocêntricos do passado assim como fizeram em Friends e The Office respectivamente, mas agora com um leve viés dramático, ao invés de inovarem como um todo, assim como ela fez em Cake (2014) ou ele em A Grande Aposta (2015), trabalhos excepcionais, diga-se de passagem. Sim, há momentos em que ambos conseguem desenvolver cenas dramáticas intensas, mas na maioria das vezes aquela sensação de tudo ser uma mera piada fica no ar, como no momento em que Alex tem uma crise emocional ao entrevistar um homem que salvou 50 cachorros de um incêndio na Califórnia, a interpretação de Aniston a princípio parece uma chacota, não sendo coerente com a instabilidade da personagem que a cena tinha a intenção de passar.

Witherspoon também não escapa com sua personagem, mas aqui o erro vem do próprio roteiro, que a todo momento a coloca em situações contraditórias, como defender um jornalismo verossímil, mas acabar parando na bancada do programa que ela mais criticava. Ou se tornar vítima de si mesma a todo tempo, jogando-se em situações constrangedoras quando podia ter evitado, e depois se vitimizando por isso. A sensação de que Bradley é utilizada apenas como um objeto de interesses não convence como deveria porque essa imagem de pessoa ingênua e altruísta que às vezes tentam desenvolver para justificar suas decisões impulsivas não encaixam com toda a sagacidade que sua personagem tem.

As idas e vindas de situações, clássico e cliche elemento dispersivo, muito utilizado em séries para dar a falsa expectativa ao espectador de que a trama seguirá outro caminho apenas para estender a narrativa, voltando para o ponto de partida logo depois, é incansavelmente usada aqui. É um show de personagens que pretendem fazer algo, mas desistem, para depois voltarem atrás e darem continuidade àquilo outra vez, apenas para o roteiro comer minutos desnecessários do tempo e da paciência de quem assiste

Exageros criados para intensificar a dramaticidade, e que surpreendentemente funciona mesmo assim. Ao mesmo tempo que personagens e roteiro muitas vezes se chocam sem sentido, a construção da idéia e o desenvolvimento das situações encobrem esses deslizes e faz do seriado um atraente produto para entreter e inevitavelmente nos questionar a todo instante quem é que está certo e quem está errado, e de repente toda suposição que criarmos se inverter até mesmos em situações bastante óbvias. De forma impressionante é que os coadjuvantes tem seus espaços bem definidos e nenhum deles é esquecido, havendo oportunidade para todos crescerem e se desenvolverem bem nas tramas.

Como um todo, é um Game Of Thrones dos dias atuais, onde o império da indústria midiática é pautada como um grande símbolo consumista, imoral e parcialista como de fato é, sempre foi e será.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

KYLIE E DISCO MUSIC, INSEPARÁVEIS POR NATUREZA...

Título: Say Something
Ano: 2020
Gênero: Pop, Dance, Electronic

SOBRE O QUE É A MÚSICA?
É o primeiro single do álbum Disco, a ser lançado em novembro, em que Kylie irá voltar às suas características Dance novamente com fortes influencias da Disco Music.

O QUE TENHO A DIZER...
Embora este seja um blog sobre cinema, onde comento sobre filmes que assisto, resolvi hoje fazer algo de diferente: comentar sobre o novo single de Kylie Minogue.

A primeira razão é porque sou fã, tanto da cantora quanto da pessoa, uma figura bem única e cativante para quem segue sua carreira há tanto ou mais tempo do que eu. A segunda razão porque eu não tinha outro espaço para fazer isso. A terceira porque fui pego de surpresa logo às 7h com a música sendo lançada mundialmente nos principais serviços de streaming. E a quarta e principal razão é que, desde quando ela anunciou o novo álbum, entitulado Disco, a expectativa tem sido grande por todos os lados, seja depois da boa receptividade que seu último álbum teve, da sua participação no Festival de Glastonbury no ano passado (que levou a ser a edição mais vista na história do Festival por conta de sua participação), seja pelo seu oficial retorno a um estilo que a colocou como referência no cenário.

Então vamo lá porque o papo vai ser longo...

Desde quando Kylie se reinventou com Impossible Princess (1997), naquela época ela havia sido motivada pelo seu namorado a não ter medo de ousar. E assim o fez. Falamos aqui do vocalista do INXS, Michael Hutchence. Kylie sofreu não apenas com o fracasso comercial do álbum naquele ano, mas também com o falecimento do cantor um mês depois de seu lançamento. Embora tenha recebido críticas positivas e hoje em dia seja considerado uma jóia única e quase sagrada pelos fãs mais antigos, ele não sobreviveu comercialmente naquela época. Esse revés colocou a cantora de frente a um abismo. E embora tenha sido um quase-suicídio na carreira, em 2000 ela voltou mais forte do que nunca com o álbum Light Years.

Impulsionada pelo primeiro grande revival da Disco Music no sucesso de Cher com o álbum Believe (1998), e da modernização da Euro Dance nos anos que se seguiram, Light Years não é apenas uma parte boa dessa entressafra duvidosa que sempre acomete a indústria musical entre uma década e outra, mas acima de qualquer coisa, é um resgate sólido e emocionante da Disco Music no seu mais perfeito exemplo em faixas como Spinning Around, Disco Down, Butterfly, Your Disco Needs You, So Now Goodbye, e uma pérola da perfeição que é sua faixa título, releitura à sua própria forma do clássico I Feel Love, de Donna Summer, a mesma que Madonna também viria a utilizar como referência fundamental seis anos mais tarde em Future Lovers, do álbum Confessions On A Dance Floor.

Desde então Disco Music e Kylie Minogue falam a mesma língua. O Dance, o Pop, o eletrônico e suas demais vertentes, revitalizações, experimentações e tendências são sempre a base de tudo que ela faz porque ela se movimenta junto com esse nicho do mercado, mas a sonoridade da glamurosa era dos dos anos 70 não apenas é uma inspiração forte em qualquer trabalho pós-Impossible Princess, como também se firmou como uma identidade natural e indivisível de sua personalidade musical.

O álbum Fever, lançado apenas nove meses depois de Light Years, é como uma continuação do anterior, mas ao invés de ser "mais do mesmo", como se imaginaria, traz o senso de continuidade como um conceito evolutivo, que se embasa na Dance Music européia moderna sem deixar de flertar constantemente com a Disco em suas melodias cadenciadas e refrões simples, embalados como hinos em vocais soprosos e sussurantes, como em Can't Get You Out Of My Head ou Come Into My World.

Mudam-se os estilos e as referências, porém, álbum após álbum, Kylie sempre nos presenteia com alguma nostalgia referente à era de ouro das discotecas. A última e mais memórável, na sua parceria com Giorgio Moroder em Right Here, Right Now, de 2015, lançada em uma excelente época para quebrar um pouco do distanciamento comercial que ela se propôs com o álbum Kiss Me Once (2014), que simbolicamente marca uma nova e terceira era na sua carreira. Claro que podemos também citar sua rendição a regravação de Night Fever em 2016, clássico dos Bee Gees que, na sua versão particular, consegue o inacreditável feito de ser tão boa ou melhor que a original. Há também a releitura Disco para a Golden Tour do seu primeiro sucesso, o clássico The Locomotion, um dos melhores momentos da sua última turnê e que até pode ser uma prévia inspiradora desse seu novo álbum.

A cantora tem se aventurado em terrenos mais pessoais desde então, aflorando suas experiências com letras que, mesmo dentro de uma construção tipicamente pop, tenham significados mais relevantes para ela como pessoa e artista. É ela tendo agora o privilégio de ousar sem medo de errar, uma certa independência conquistada por anos na indústria e pela sólida base de fãs.

O álbum Golden (2018), lançado no mesmo ano em que ela completou meio século de vida, seguiu quase que a mesma tendência de Fever, no sentido de ser uma continuidade de algo para uma evolução. Mas aqui, a evolução não é musical, mas no sentido existencialista de uma pessoa que atingiu seus 50 anos. Influenciada pelo cenário artístico de Nashville e da música Country, Kylie pode não ter abandonado o eletrônico, mas essas influencias são nitidamente sentidas em suas letras e na maneira que ela as compõe, traços já visíveis de mudança desde seu trabalho de 2014.

E depois de narrar toda essa jornada é que o novo single entra no assunto, porque ele é um resultado de todos esses mais de 30 anos de carreira.

Lançar um novo álbum entitulado Disco, principalmente depois de Light Years e Fever, parece um tanto pretensioso ou uma repetição do mesmo tema para uma cantora que já explorou esse estilo das mais variadas formas. Afinal, o que mais de novo ela propõe com ele? Segundo ela: "músicas Disco maduras, para pessoas maduras". E "maduro" aqui não é uma questão de idade, mas de músicas que não soem fúteis ou esquecíveis, e que extraiam das pessoas emoções simples e honestas, que as façam ter sentido de existir e agregar ao mesmo tempo que se divertem e interagem com elas num momento onde isso tem sido perdido gradativamente nos últimos anos.

E é por essa razão que Say Something é tão acessível, como se tivesse sido feito especialmente para a pessoa que a ouve porque toda essa proposta está embutida nela. E como o primeiro single dessa nova safra, para aqueles que esperavam algo destruidor ou retumbante, com uma vibe tipicamente Moroder, ou algo aos moldes do que Madonna fez com seu Confessions, ou uma mera reprise da já reprise Say So de Doja Cat, irá se enganar e se frustrar profundamente. Kylie igualmente não faria uma mera reciclagem de suas eras de 2000 e 2001, portanto esta não é uma faixa Disco em sua excelência. Na verdade, é um misto de vários sentimentos e estilos numa música que irá estranhar alguns por ser, dentro das proporções, um tanto imprevisível.

A imprevisibilidade começa na introdução, quando em meio às batidas sintetizadas, ao invés de um solo de baixo, como se esperaria de uma carro-chefe de um álbum que tem a tendência de ser fundamentalmente Disco, entra o de uma guitarra, remetendo a uma era entre a pós-Disco, o New Wave e o Synth Pop, muito mais do que a Disco de fato. Talvez uma referência ao próprio Hutchence e sua música Need You Tonight, já que o solo de guitarra dessa música se adequou com perfeição aos vocais de Kylie quando ela regravou a mesma para a turnê de Kiss Me Once, ou também uma suave lembrança à característica guitarra de U2 em um outro solo que se estende discretamente por toda a segunda metade da música, compondo todo um outro charme e certa organicidade no ápice da canção.

A produção de Richard Stannard, o mesmo que produziu Kylie em Light Years e Fever, já conquista nos primeiros 30 segundos, pois se tem algo que ele sabe fazer muito bem são batidas e ganchos sonoros. E é dessa forma que ele segura essa atenção até o refrão entrar pela primeira vez.

O refrão é aquele momento crucial de uma música que já começa da sua melhor forma, que é sentido que irá evoluir para o hino que aparenta vir a ser. Mas repentinamente se quebra, deixando todo mundo que já se preparava pra se jogar de dançar paralisado no mais puro vácuo. É algo que não se espera em absoluto, principalmente vindo de Kylie, que sempre prezou por refrões melodiosos e grudentos, às vezes repetidos infinitamente ao longo de toda uma música. Acreditei que fosse parte da construção, aquela quebra proposital para a música dar apenas uma amostra do que estar por vir, e a partir dalí voltar a embalar seu ouvinte para finalmente se estruturar num crescente completo até estourar de fato, como acontece depois que o refrão entra pela terceira vez na música Light Years, um orgasmo sonoro por definitivo.

Ao contrário disso, quando o refrão entra pela segunda vez... ele não decola de novo. É como se algo estivesse errado. Why don't you say something? É a pergunta que ela faz. Sem nos dar resposta, é como se ela quisesse que nós mesmos fizessemos essa pergunta de volta para a ela. E depois de um milésimo de segundo de vácuo, que chega a parecer uma eternidade, seus vocais voltam numa bridge lenta e quase etéria para ligar a primeira parte da música com a segunda, as quais isoladas soariam distintas.

É num verso repetitivo, numa melodia que remete bastante às bridges de Into de Blue e Dance, que Stannard finalmente faz uma mágica, e Kylie, na sua versatilidade, transforma esse verso em um novo refrão, sendo com ele que ela irá até a música acabar. É sua resposta ao silêncio que caiu como um peso morto antes, imprimindo nisso a marca registrada de seu estilo, aquilo que podemos considerar "uma faixa Kylie".

Aí, sim, a música evolui e decola numa referência Disco de fato, tanto em estrutura quanto na sinestesia melódica, quase como Donna Summer e suas diversas variações vocais que faz com a frase "I Feel Love". É como se ela nos levasse para o passado, pegando essa fase da pós-Disco e nos levando a uma viagem retroativa ao tempo em apenas alguns minutos, como a querer dizer que a jornada vai partir daqui, dos anos 80, e num Step Back In Time, estaremos onde ela exatamente quer que estejamos.

Também é bastante nítido como Kylie entrou em um outro padrão nos últimos anos. Quando ela canta os primeiros versos é um tanto impossível não se lembrar de Feels So Good, uma das mais memoráveis de Kiss Me Once, ou inclusive da própria faixa título desse álbum e a pessoalidade com que as interpreta. As melodias são próximas. A estrutura lírica também se aproxima muito daquilo que ela fez em Golden, e de como essas influências do Country aperfeiçoaram essa sua nova tendência de transformar emoções e sentimentos cotidianos em versos e metáforas de linguagem universal, com questionamentos simples e importantes sobre a vida com delicadeza e sem qualquer pieguice (alguém diria que Dance é uma metáfora sobre a morte se ninguém falasse?).

Kylie e Stannard fogem à convencionalidade da música pop nesse trabalho, e da fórmula clássica à qual ambos sempre fizeram parte. Ao longo de seus mais de 3 minutos, pode parecer um tanto desconexo e confuso, e que só não é melhor porque todos os excelentes elementos que ela contém causam essa impressão de estarem um tanto fora de ordem. Mas há uma contextualidade essencial nisso, mesmo que não aparente ter sido o mais inteligente ao apelo comercial e popular, o é dentro de suas intenções. E frente a tantos resgates oitentistas e noventistas bastante previsíveis, como os recentemente lançados por Lady Gaga e a Dua Lipa, Kylie se destaca aqui mais pela articulação do que pelo apelo radiofônico, alcançando algo próximo do que conseguiu com Can't Get You Out Of My Head, que na época que foi lançado realmente parecia o som de um novo futuro porque tinha uma abordagem bastante diferente do que se fazia na época.

Say Something pode não ser aquela faixa explosiva e imediata que se esperava, mas sem dúvida nos apreende para o bom ou para o frustrante, ao mesmo tempo que, surpreendentemente, há uma magia nela que cativa, conquista e emociona genuinamente, além de um excelente abre-alas para o que está por vir. Um resumo essencial de toda sua carreira, a caracterização em letras e melodias dessa maturidade que ela quer incrementar no estilo.

domingo, 12 de julho de 2020

QUANDO SER IMORTAL CANSA...

★★★★★★★★☆☆
Título: The Old Guard
Ano: 2020
Gênero: Ação
Classificação: 16 anos
Direção: Gina Prince-Bythewood
Elenco: Charlize Theron, Kiki Layne, Matthias Schoennaerts, Marwan Kenzari, Luca Marinelli, Chiwetel Ejiofor, Harry Melling
País: Estados Unidos
Duração: 121 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um grupo de mercenários imortais tem suas identidades descobertas e agora lutam para não serem capturados e explorados por uma corporação.

O QUE TENHO A DIZER...
Enquanto Charlize Theron filmava a adaptação da novela gráfica Atômica (2017), ela recebeu em mãos uma cópia de outra história. Era The Old Guard.

Após ler as primeiras páginas, achou suficientemente interessante para transformá-la em filme. Sem perder tempo, foi o que aconteceu em 2019.

A atriz vem afirmando há anos que é fã de filmes de ação, e agora se engajou a produzí-los para compensar a injustiça existente num estilo apropriado por homens desde quando o cinema era mudo. Com a intenção de fazê-lo com representatividade, suas investidas tem dado certo e são muito bem vindas.

É também com bom humor que ela, em uma entrevista recente, contrariando o que muita gente esperava, jurou que nunca foi convidada para participar de qualquer produção da Marvel, mas que ao mesmo tempo não se importa porque está tendo oportunidade de pavimentar seu próprio caminho no gênero como produtora e atriz, e isso tem sido divertido. Essa afirmação é importantíssima para mostrar que a liderança feminina na indústria, no sentido de mulheres terem a oportunidade de traçarem seus próprios objetivos e projetos, não é uma opção, mas uma conquista cheia de obstáculos. A opção ainda é privilégio dos homens, pois o predominio masculino na indústria é real.

São os bônus da atriz sul africana ter se tornado uma estrela de primeira grandeza em Hollywood, a liberdade de agora poder decidir fazer o que quiser. Bonus que um ator teria com muito mais facilidade se, da noite para o dia, apresentasse um projeto de dirigir ou produzir um filme de grande orçamento a um estúdio, sem a necessidade de esperar se tornar um grande astro para tal. E sempre foram esses os ônus das mulheres na indústria.

Vencedora de um Oscar e indicada outras duas vezes, Charlize não é brincadeira. De Uma Saída de Mestre (The Italian Job, 2003) a Aeon Flux (2005), de Atômica (Atomic Blonde, 2017) a Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2018), entre dramas e comédias de sucesso, ela provou que, independente de altos e baixos, pode oferecer tudo aquilo do que o gênero se alimenta de igual forma, e que as mulheres também precisam de oportunidades mesmo depois de fracassos, porque é assim que a indústria faz com homens que fracassam, sem questionar.

É depois de assistir esse seu novo filme de ação que observamos que ela está certa. Mesmo tendo defeitos, como algumas sequências parecerem arrastadas demais e uma trilha sonora que infelizmente empobrece toda a qualidade visual, dando uma sensação de ser um filme barato que na verdade não é, devemos dar a ele créditos mesmo assim, e perceber que muitas das críticas negativas que tem recebido são muito mais por preconceitos latentes do que pelos próprios defeitos que estas dizem existir.

Para aqueles que sentem saudades de guerreiros imortais no cinema e que fuja das obviedades de histórias vampirescas para justificar essa condição, The Old Guard tenta se colocar como o Highlander do século XXI, sendo um filme de heróis diferente, que vai contar não a origem, mas o ponto de partida, o momento crucial em que finalmente decidem aceitar o propósito de suas existências ao invés de lutarem contra ele, e que esse poder de sobreviver ao tempo pode ser usado para um bem comum além do que eles acreditavam. Afinal, toda a história tem que começar de algum lugar, e não necessariamente há quatro mil anos antes de Cristo, que é a suposta idade da protagonista.

Claro que há espaço para se desenvolver diálogos que contam brevemente outros fatos e aventuras para aqueles que, ao longo do filme, começam a alimentar a curiosidade em torno do passado desses personagens cativantes, como um deles dizer que lutou ao lado de Napoleão, ou que dois deles se conheceram durante as cruzadas e se matavam constantemente por estarem em grupos que se opunham. Mas talvez a história mais trágica e assustadora relembrada por eles seja da própria Andy, numa consequência tão aterrorizante quanto ser condenado por Sandman ao pesadelo perpétuo, na clássica história de Neil Gaiman. É este o episódio motivador para que a heroína se coloque sempre à frente para defender seus companheiros, pelo medo secular que a assombra de que a história possa se repetir outra vez tanto como muitas outras que presenciou.

Mesmo que o maniqueísmo seja bem óbvio, intensificados por um vilão bastante caricato e estereotipado como os encontrados em qualquer filme do gênero, os conflitos que o roteiro traça na linha narrativa também conseguem ir além disso.

Greg Rucka, roteirista e escritor da obra homônima, aborda reflexões mais pessoais, em como finalmente deixar para trás lembranças de tudo do bom e do ruim que os heróis já viram da humanidade. Rucka também desenvolve a idéia de que o resultado dessas experiências amargas é o que os deixaram resilientes e introspectivos, ao mesmo tempo que por dentro sofrem com a repetitividade da lembrança de perdas e questionamentos sobre uma sociedade que, com pesar, observam não evoluir. Também sabem que essa mesma sociedade não os compreenderiam se descobrissem que pessoas como eles existem porque um dos grandes méritos da história é nos fazer imaginar a bagagem que se carrega em ser imortal. Ou seja, é inimaginável.

Essa sensação é nítida em momentos bastante intimistas, como o prazer de Andy ao comer um doce originário do império otomano e a apreensão de seus colegas de ela ser ou não capaz de identificar todos os diferentes sabores e ingredientes nele. Ela não só faz isso como também o reconhece como uma sobremesa legítima, feita tal qual a memória que ela tem sobre ele, talvez, da primeira vez que comeu, sabe-se lá quantos milhares de anos atrás. Uma vida com um plano de fundo simples, onde pequenos prazeres como esse são cultivados em meio ao silêncio respeitoso que eventualmente cai sobre o ambiente e fala mais alto do que qualquer diálogo. Ou o olhar perdido ao passado, nas memórias trágicas ou nostálgicas que a lente das câmeras captam com bastante delicadeza em momentos muito específicos de cada um deles, evitanto a melodramaticidade exagerada, soando até poéticos. Uma sinergia entre todos eles tal qual como a de um casal que se senta mudo a uma mesa, não porque não tenham o que dizer, mas porque já tem intimidade o bastante para respeitarem o silêncio de cada um e apreciar aquele momento e abraça-lo como um presente valioso.

São pontos de vista humanos e agregados à história de maneira bastante natural e comovente que raramente vemos no gênero, tudo isso graças à habilidade da diretora Gina Prince-Bythewood em saber dosar e equilibrar o drama com a inevitável ação numa construção emotiva eficiente. O roteiro conseque a proeza de, inclusive, justificar não de forma muito clara, mas presente, que as decisões violentas do grupo vem de toda essa consciência consequencialista construída a partir de experiências que viveram em outros conflitos ao longo da História. A diretora conseque desenvolver essa sensibilidade dos personagens com êxito nesses momentos, de que cada vida que tiram, mais se distanciam dessa humanidade que emanam, resultando em personagens que já não acreditam mais no futuro, foscos e opacos como lâmpadas cansadas, visível nos semblantes de Andy (Charlize Theron) e Booker (Matthias Schoernaerts).

A diversidade de gêneros, raças, culturas e orientações é ponto importante aqui e reflete, inclusive, dentro do próprio elenco. Nos dá essa sensação natural de que nada disso importa para eles como pessoas. Em nenhum momento o roteiro coloca os personagens a questionarem qualquer coisa relacionada a isso. Ninguém se coloca melhor que alguém por acreditar que tem ou não algum mérito ou um privilégio. Andy é respeitada e naturalmente uma líder porque é a mais experiente de todos, mas é compreendido que as decisões são sempre conjuntas, há independência e respeito por todos os lados, e que o senso de irmandade se sobrepõe a qualquer construção social. Com excessão de um momento muito específico, em que Joe (Marwan Kenzari) e Nicky (Luca Marineli) são capturados por um grupo de soldados e moralmente assediados, fazendo Joe declarar um monólogo que ultrapassa a superficialidade preconceituosa exposta, o filme se mantem o tempo todo forte nessa proposta diversa, porém unitária, numa prática óbvia e não planfetária.

É claro que estamos falando de um filme de ação, e é o que não vai faltar. Muito tiro, porrada e bomba, muita briga belamente coreografada e sequências para agradar até amantes de Rambo. A crítica especializada tem sido bem receptiva pois compreende a técnica, já a resposta da crítica leiga tem sido bastante mista porque o filme realmente tenta quebrar determinados padrões enquanto mantém clichés óbvios para garantir o desenvolvimento que se espera de um longa como esse e lembrar o espectador a todo momento que aquilo é um entretenimento. Então, qualquer elemento que seja um diferencial parecerá defeito para quem está acostumado apenas com o óbvio, ou que só agora resolveu aumentar o nível de exigência apenas pelo prazer de contrariar.

Mas ao mesmo tempo que essa parte do público tem criticado negativamente os clichés pontuais e do vilão caricato presentes, é esse mesmo público que enche as salas de cinema para, há 24 anos, assistir Tom Cruise usando máscara de todo mundo pra se disfarçar e cometendo os mesmos absurdos em Missão Impossível;  dar bilheteria para o 10º filme da franquia Velozes e Furiosos fazer o mesmo que sempre faz com suas piadinhas sem graças para qualquer motivo virar motivo para porrada e explosão de carro caro; ou achar engraçado os robôs de Transformers fazerem rap ou "xixi" na rua. Ou seja, pessoas que tem se incomodado com elementos de ação nesse filme de ação evidentemente o fazem apenas porque falamos de um filme dirigido e protagonizado por mulheres em total pé de igualdade sem ser estereotipado como esperam.

Percebe-se um movimento de ódio e uma antipolitização gigantesca nas redes contra filmes que tentam trazer a diversidade como protagonista de uma história. Ler as resenhas amadoras na página do IMDb chega a ser revoltante em quão infundadas e superficiais são, apenas pela sordidez de menosprezar e rebaixar a pontuação. As críticas que a diretora tem recebido nem mesmo Michael Bay, considerado um dos piores diretores vivos de filmes de ação, já recebeu. É quando uma crítica aponta o corte de cabelo masculinizado de Charlize Theron que, sim, percebemos que a base desse movimento é sexista e atado nos recalques do preconceito. Não que IMDb seja um bom parâmetro para se considerar a opinião pública hoje em dia, mas se tornou um parâmetro para, assim como nas demais redes sociais, observar-se como a cultura do ódio tem se manifestado.

Pois é, não é à toa que a humanidade desmotiva nossos heróis imortais a continuarem vivendo, e nessas horas que ser imortal deve cansar.
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