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quarta-feira, 24 de maio de 2017

HUMOR DE TRÁGICAS METÁFORAS...

★★★★★★★☆
Título: Catfight
Ano: 2017
Gênero: Comédia, Drama, Humor Negro
Classificação: 14 anos
Direção: Onur Tukel
Elenco: Sandra Oh, Anne Heche, Alicia Silverstone
País: Estados Unidos
Duração: 95 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
O reencontro de duas ex-amigas desencadeia uma guerra de egos, vinganças, importâncias, interesses e poder.

O QUE TENHO A DIZER...
Para Veronica (Sandra Oh), nada podia estar mais perfeito. Rica e influente, mora em um bairro nobre de Nova York com seu filho e seu marido, Stanley (Damian Young), o qual comemora com seus sócios um contrato milhonário de prestação de serviço ao Governo durante a guerra com o Oriente Médio.

Enquanto isso, Ashley (Anne Heche) está em crise conjugal com sua mulher, Lisa (Alicia Silverstone). O motivo: dificuldades financeiras. Ashley é uma artista plástica que há muito tempo não consegue vender um trabalho porque expressam sua visão caótica do mundo, "sangrentos" e explícitos demais para atrair a atenção de galerias, e Lisa não está conseguindo mais arcar sozinha com as despesas pois a crise econômica no país só tem oferecido subempregos.

Trabalhando na festa de comemoração de Stanley, Ashley só vai descobrir que o grande empresário é o marido de sua ex-amiga quando esta aparece na cozinha e deseja ser servida com mais bebida, vomitando impropérios sobre a vida afortunada que tem.

Ashley e Veronica pararam de se falar ainda na faculdade. Ashley alega que revelar sua homossexualidade foi o motivo de Veronica se distanciar, enquanto Veronica alega que Ashley se distanciou depois que conheceu Lisa. E em uma conversa nada amigável, ambas trocam farpas sobre suas vidas pessoais, sendo assim que o filme dirigido e escrito pelo turco-americano Onur Tukel começa, sem qualquer rodeio ou cerimônia para colocar as duas em uma briga desencadeada por motivos que pouco sabemos, mas na verdade pouco importam nesta comédia de humor negro que seria um drama trágico por excelência caso não usasse a ironia como um fator que nos dificulta entender o que é realmente engraçado do que não é. 

Tudo pareceria um filme comum sobre a rivalidade entre duas mulheres e as trivialidades que justificariam trocas de tapas caso o roteiro de Tukel não transformasse a conturbada relação de Ashley e Veronica em uma interessante metáfora das tragédias sociopolíticas que refletem o cenário norteamericano e mundial e da perversidade humana a favor de suas ambições. E não é à toa que, por isso, troca-se tapas por brigas dignas de ringues de luta livre.

O feudo basicamente representa o lado conservadorista da elite e o lado liberalista oprimido da classe média, assim como a secular rivalidade entre Democratas e Republicanos. Enquanto uma sofre com a crise econômica, a falta de oportunidades e a desigualdade, a outra se enriquece junto a um Governo manipulador que declara uma Guerra infundada apenas para movimentar sua economia exploratória. Mas as analogias não param por aí, e o roteiro também cria arquétipos para aqueles que vivem às bordas, como os ambientalistas, oportunistas e extremistas. Não chega nem a faltar um deboche direto a Hilary Clinton e Donald Trump.

Há um momento no filme em que Veronica diz a seu filho que se alguém maior e melhor mandá-lo fazer algo, ele deve fazê-lo. É em cima dessa frase que toda a moral do filme é construída, uma referência direta ao imperialismo norteamericano e sua inequívoca intenção de controlar eventos em todo o mundo, favorecendo seus próprios interesses econômicos, políticos e estratégicos, sujeitando outros países à subserviência para manter o status superioris.

Quando o roteiro imputa em cada personagem uma função conflituosa como em um campo de batalha, o caos se forma, e o ambiente se torna instrumento decisivo de influência em cada um deles. Tukel não poupa nem a sociedade e sua perniciosa ignorância, ao ponto de uma "Máquina Flatulenta" ser a principal atração engraçada na TV porque a alienação impede a compreensão de piadas críticas e políticas.

Pouquíssimas pessoas conseguiram compreender essa essência crítica e satírica do filme porque ele consegue ser discreto, e só se torna perceptível quando opiniões políticas são lançadas em momentos oportunos pelo roteiro caprichoso, que em um determinado ponto inverte os papéis das personagens e seus respectivos níveis de percepção quando Veronica entra em coma e acorda dois anos depois, pobre e sem teto por conta das mudanças econômicas e demais tragédias resultantes da guerra, e Ashley fica rica e influente porque a violência agora é um tema popular, tema o qual ela sempre explorou em seus trabalhos, mas só agora ganhou proeminência. E frente a essas diferentes situações, uma passa a ver o mundo sobre os olhos da outra sem sequer perceber, e cada uma em um comportamento relativo às suas novas realidades e interesses,

É quando os papéis se invertem novamente - e exatamente da mesma forma - que o filme parece abusar da paciência do espectador ao passar uma proposital sensação de deja vu. Embora aparente um exagero, é apenas uma continuidade dessa metáfora trágica e suas não-razões para esta repetição cíclica da violência, da retaliação e de suas consequências catastróficas. Uma busca sem fim de algo que não se sabe o que é, só mudando os interesses e tendências, onde tudo se destrói e não se reconstrói. E no fim (como no fim do filme) todos perdem, independente de quem seja a culpa, enquanto assistimos a tudo sem nada fazer.

terça-feira, 23 de maio de 2017

PODERIA SER... MAS NÃO É...

★★★★★☆
Título: Mesa 19 (Table 19)
Ano: 2017
Gênero: Comédia, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Jeffrey Blitz
Elenco: Anna Kendrick, Lisa Kudrow, Craig Robinson, Tony Revolori, June Squibb, Setephen Merchant
País: Finlândia, Estados Unidos
Duração: 87 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Após recusar o convite de Dama de Honra do casamento de sua velha amiga, uma garota resolve aparecer na festa mesmo assim e completar uma mesa formada por pessoas que não se conhecem.

O QUE TENHO A DIZER...
Casamentos e situações inusitadas sempre foram temas para comédias ou dramas, como bem acontece em O Casamento de Muriel (1994) ou O Casamento do Meu Melhor Amigo (1997), coincidentemente, ambos do diretor P.J. Hogan. Claro que existem outros, mas foi esses que me lembrei de imediato quando comecei a assití-lo.

Neste filme o roteiro é assinado pelos irmãos Duplass (Jay e Mark), e tudo começa em uma confusão interessante a partir do momento que a protagonista, Eloise (Anna Kendrick), decide se aceita ou não um convite de Dama de Honra. Rapidamente os demais cinco personagens são apresentados de maneira breve e em situações cômicas, até o filme ser introduzido de fato mostrando um esquema de salão de festas, a disposição das mesas e a maneira como elas estão organizadas para receber os diferentes convidados, agrupando-os de acordo com afinidades bastante intencionais. Finalmente chega-se à mesa 19, a última do salão, aquela onde dá para sentir o cheiro do banheiro, como diz Jerry (Craig Robinson) à sua mulher, Bina (Lisa Kudrow).

Formada por pessoas sem qualquer afinidade com nenhum outro convidado, além de conhecerem de alguma forma a família dos noivos, a mesa 19 é aquela para cobrir o buraco do salão. Com excessão de Vovó Jo (June Squibb), todos os demais sabem que estão lá para isso, mas cada um presente por um motivo pessoal próprio.

Esses motivos aos poucos se revelam, e nenhum deles é muito surpreendente ou extremamente cômico. São motivos comuns, mas levados a sério por cada um deles. O problema é que essa seriedade não ultrapassa a tela, e tudo deixa uma sensação muito vaga e pouco explorada, como acontece com o personagem Walter (Stephen Merchant), que faz uma revelação um tanto chocante, que poderia ter rendido maiores interações e conflitos entre ele e outros personagens que aparecem apenas por aparecer, acrescentando nada à narrativa.

Tudo se desenvolve bem até o roteiro dar apenas atenção ao drama da protagonista, e os demais se tornarem tão coadjuvantes ao ponto do esquecimento. A festa e seus demais convidados, que poderiam ser grandes objetos para excelentes situações, até chegam a demonstrar alguma coisa, como no caso da personagem Freda (Margot Martindale, excelente e irreconhecível), e quando a gente finalmente acha que algo acontecerá para dar uma movimentada na história e tirar aquela sensação tediosa de festa movida a status e aparências, como o filme constrói, nada acontece além de um corre corre pra lá e pra cá, um entra e sai do salão, recheadas de lições de moral de uma vovó moderna com a única finalidade de dar um final feliz à mocinha da história numa confusão típica de Sessão da Tarde.

Anna Kendrick sempre à vontade em personagens desajustadas por uma razão óbvia, seus personagens são sempre assim. Já se tornou sua marca registrada, o que é um tanto ruim pelo estigma que acaba se sobrepondo a seu talento. E chega a ser incômodo ver Lisa Kudrow muitas vezes presente apenas para compor cenas de situação e nada mais, porque, como em todos os poucos filmes que fez até hoje, ela sempre consegue fazer da personagem mais coadjuvante a mais interessante, e aqui não é diferente.

Se os Duplass tivessem se importado em desenvolver melhor os personagens mais do que suas histórias um tanto vagas, interagido melhor todos dentro da situação e criado ocasiões mais convincentes entre eles próprios, talvez o filme tivesse sido mais feliz em sua intenção. Havia toda uma atmosfera propícia para ter como referência principal O Clube dos Cinco (1985), mas desperdiçou todo seu potencial para, no fim, entregar nada além de uma comédia romântica água com açúcar que até rende algumas risadas e olhos marejados, mais pela simplicidade cliché do que pelo conteúdo.

terça-feira, 9 de maio de 2017

MUITO MAIS ALÉM DA COR...

★★★★★★★★☆
Título: Cara Gente Branca (Dear White People)
Ano: 2017
Gênero: Comédia, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Logan Browning, Brandon Bell, DeRon Horton, Marque Richardson, Antoinette Robertson, John Patrick Amedori
País: Estados Unidos
Duração: 31 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Em uma Universidade da Ivy League predominantemente branca, um grupo diverso de estudantes questionam e tentam reverter através da conscientização diversas formas de discriminação e preconceito.

O QUE TENHO A DIZER...
Três anos depois do lançamento do filme homônimo, a Netflix, junto com a Lionsgate, resolveram transformar em série aquele que foi um dos filmes com temas raciais mais injustiçados dos últimos tempos. Injustiçado no sentido de pouca gente o conhecer e de nenhum grande e popular festival ou premiação, como Globo de Ouro ou Oscar, lembrar de sua existência, mesmo quando havia qualidades de sobra nele para isso, como a excelente recepção que teve pela crítica.

Das pessoas que o assistiram, muitos não conseguiram entender do que o filme se tratava de fato, se era sobre política escolar ou sobre racismo. Oras, era dos dois! Um está atrelado ao outro, pois o racismo está diretamente relacionado à sociedade e à sua política. Não tem como separar uma coisa da outra. O que o diretor, roteirista e produtor Justin Simien fez foi simplesmente reduzir, comprimir, condensar as situações em um ambiente menor e mais controlado, como uma amostra populacional, e baseado nas suas próprias experiências enquanto estava na Universidade, discutir de maneira bastante contemporânea como a sociedade se comporta a esse tema nos dias atuais.

Definitivamente a má compreensão do filme e de seu teor crítico vem de pessoas que pouca atenção dão a esse problema, ou que persistem em seguir o senso comum de que discutir o racismo no século XXI seja desnecessário, ou sempre resgatarem a escravidão como argumento seja vitimismo, ou taxarem produtos como esse de "racismo reverso", como aconteceu quando o trailer da série foi lançado no YouTube.

Me lembro de uma frase chave do filme, quando a protagonista é questionada sobre o que ela acharia de um programa chamado "Cara Gente Negra". Sem titubear, ela responde: "Os meios de comunicação, de Fox News até os reality shows do VH1, deixam claro o que os brancos pensam de nós". E, assim como no filme, essa resposta também define toda a série e responde todas as pessoas que seguem o pensamento comum, mesmo que a série tenha diversas outras frases que a definem ao longo dos episódios.

Cara Gente Branca (o filme) consegue ser um pouco confuso pela quantidade de temas abordados e discussões a serem relevadas, mas há uma linearidade de pensamento que é coerente se bem acompanhada. Portanto, além de um belo exercício de argumentação, também é uma comédia séria (sim), com doses dramáticas honestas, excelentes interpretações e personagens estereotipados para expandir o contexto, além de um design de produção belíssimo que valoriza a diversidade de maneira igualitária raramente vista.

Seguindo a mesma premissa de que o título seja em referência ao nome do programa de rádio universitário comandado pela militante social e estudante de cinema, Sam White (no filme, interpretado por Tessa Thompson), a série terá o mesmo ponto de partida do filme: a polêmica festa a fantasia cujos convidados deveriam ir fantasiados de negros. E aquilo que a princípio parecia uma "festa inofensiva", resultou em um ato de rebeldia e violência daqueles que, por razões óbvias, se sentiram ofendidos.

Foi uma excelente escolha começar a série novamente por aí, pois justifica logo de cara sua própria existência e maximiza o tal conceito do que é racismo hoje em dia para as caras pessoas que ainda não conseguem enxergar isso. Além disso, Justin Simien, que se mantém como roteirista e diretor de alguns episódios, também se aprofunda em discussões interraciais quando descobrem que a protagonista (agora interpretada por Logan Browning) tem um relacionamento escondido com um branco, algo que no filme também acontece, mas não tinha espaço para um desenvolvimento tão amplo como agora tem.

Uma das coisas que mais fez o filme funcionar (além da consistência do próprio roteiro), eram os atores. Na série da Netflix, do elenco original, apenas Brandon Bell e Marque Richardson foram mantidos no papeis de Troy Fairbanks e Reggie Green, respectivamente. Não que essa troca tenha impactado no resultado, mas alguns personagens acabaram perdendo um pouco do brilho que o filme apresentou, como também alguns deles sofreram drásticas mudanças, como é o caso de Coco Conners (Antoinette Robertson) e do próprio Troy.

No filme, a personagem de Coco (interpretada por Teyonah Parris), talvez fosse a que mais pudesse deixar o espectador confuso, já que ela é uma negra que finge ser branca, negando qualquer ato ou comportamento que caracterize sua raça, incluindo envolvimento com pessoas da mesma cor. Sua alienação e futilidade pareciam descabidas, mas sua construção é tão bem feita que a justificativa de seu comportamento não apenas é entristecedora e desmoralizante, como compreensível. Da mesma forma Troy, que no filme era um personagem condicionado pelo seu pai a agir favoravelmente aos brancos para, assim, garantir um brilhante futuro.

Na série essa complexidade toda foi amenizada. Coco se tornou uma garota ambiciosa que apenas diverge de algumas opiniões e comportamentos, sempre pendendo para aqueles que sejam menos conflituosos e que lhe traga maiores benefícios pessoais. O mesmo acontece com Troy, mas esse, sempre em conflito com as pressões sociais, familiares e políticas vindas de todos os lados ao ponto de igualmente perder sua identidade.

Uma pena Simien ter dado essa guinada de 180 graus na personalidade de ambos, que se no filme foram extremamente bem desenvolvidos, na série poderiam ter sido muito mais. O nível de complexidade dos diálogos, das referências, analogias e metáforas também foi bastante amenizado, e até os discursos de Sam White também perderam alguns pontos daquele humor ácido e perspicaz que fazem do filme um produto não apenas consistente nos seus temas, mas solidamente embasado em suas justificativas. Tudo isso a favorecer uma linguagem mais acessível ao público comum, o que é compreensível, mas não muito necessário.

De qualquer maneira, nada disso altera consideravelmente o resultado final, e novamente o roteiro sai vitorioso ao dar voz aos diferentes pontos de vista, e todos eles sempre convergendo a uma questão comum. Como acontece no quinto episódio, quando Reggie reprime um amigo branco por cantar junto com uma música um termo socialmente impróprio, e então a opinião se divide, tanto para os personagens, como também irá se dividir para o espectador. A conclusão disso é que, independente de quem tenha a razão, nada justifica a abordagem policial que o personagem recebe, numa cena bastante chocante, com referências sociais óbvias e muito mais comuns do que se pode imaginar, colocando todos em um mesmo lado e em um mesmo questionamento, inclusive o próprio espectador.

E ao contrário do que pode parecer, assim como o filme, Cara Gente Branca não é uma série militante ou que tenha intenções de ser polêmica, mas essencialmente questionadora, tanto para o segregado, quanto para o agente segregador, nos fazendo compreender como é ser um negro dentro de uma sociedade branca, e como é ser um branco em uma sociedade racialmente intolerante, e a partir daí encontrar nossa própria essência e identidade como seres humanos.

sábado, 6 de maio de 2017

NENHUM ELOGIO É BOM O BASTANTE...

★★★★★★★★★☆
Título: Feudo: Bette e Joan (Feud: Bette And Joan)
Ano: 2017
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Susan Sarandon, Jessica Lange, Alfred Molina, Judy Davis, Stanley Tucci, Catherine Zeta-Jones, Kathy Bates
País: Estados Unidos
Duração: 45 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
A histórica rivalidade entre Bette Davis e Joan Crawford revelam mais do que simplesmente uma disputa de egos.

O QUE TENHO A DIZER...
Rivalidade existe em todo lugar, mas nunca foi tão saborosa quanto entre Bette Davis e Joan Crawford. Saborosa para quem tinha partido nesse embate (ou pra quem agora tem, assistindo a série). Mas não se pode negar a tristeza bastante desmoralizante pela forma como a mídia inflamou essa fogueira, e como a situação foi explorada.

E com uma abertura bastante similar à animação vetorial de A Favorita, já fica bem evidente que o sucesso, fama, títulos, prêmios e inveja serão os grandes motivadores de uma problemática relação que influenciou toda uma indústria e seus fins trágicos por consequência.

Mas para entender melhor o que a série pretende mostrar, nada melhor do que conhecer um pouco mais da realidade em que ela é baseada.

Então senta, que lá vem história...


Não se sabe ao certo o início de tudo. Acredita-se que a situação tenha começado na década de 30, quando Joan Crawford se casou com Franchot Tone em 1935, ator com quem Bette Davis trabalhou no mesmo ano no filme Perigosa (Dangerous), por quem ficou apaixonada, sofrendo uma terrível derrota amorosa com o casamento.

Joan Crawford já tinha seu lugar profissional estabelecido e respeitado, já que vinha do cinema mudo, principalmente porque, ao contrário de muitas outras atrizes que vieram da mesma época, ela tinha talento e voz (sim, muitas atrizes perderam o emprego pois a voz era terrível). Enquanto isso, Bette Davis concorria ao seu primeiro Oscar por Servidão Humana/Escravos do Desejo (Of Human Bondage, 1934), de uma maneira muito peculiar. A princípio ela não estava entre as três finalistas, mas como sua interpretação foi elogiada pela crítica e pelo público de maneira quase unânime, aconteceu uma forte campanha para a Academia incluí-la, e assim foi feito, sendo esse filme considerado sua grande estréia em Hollywood.

Nos anos seguintes, a situação ficou um pouco mais séria quando os papéis começaram a se inverter: enquanto Davis estava em ascenção constante na carreira, Crawford foi posta de lado, sendo dispensada pela MGM em 1943, enquanto Bette se tornou um dos nomes mais importantes de Hollywood e a principal estrela da Warner. Aceitando um salário reduzido, Crawford foi contratada pela Warner. Davis, incomodada, não gostou da contratação, encarando como uma provocação do estúdio, e a presença da rival na mesma casa como uma ameaça, o que acabou exaltando o humor de todos.

Dentro da Warner, Crawford também demonstrou seu incômodo ao se esforçar de todas as maneiras para tentar conseguir papéis importantes antes deles pararem nas mãos de Davis, mas foi em vão. E ao contrário do que esperava, os papéis que chegavam eram exatamente aqueles que Davis recusava.

Essa situação de "atriz substituta" não foi de todo ruim. De três indicações ao Oscar que Crawford recebeu nos anos de 46, 48 e 53, as duas primeiras foram de papéis recusados por Davis, vencendo apenas em 46 pelo seu papel em Mildred Pierce. Como curiosidade, ela não compareceu à premiação alegando problemas de saúde. Na verdade ela fingiu estar com pneumonia para criar um espetáculo dramático e conquistar a atenção da mídia. Essa curiosidade é importante porque, além de ser um fato presente na cinebiografia Mamãezinha Querida (Mommie Dearest, 1981) e também citado em alguns episódios de Feud, é uma encenação que ela voltou a repetir para prejudicar as filmagens de Com A Maldade Na Alma (Hush, Hust, Sweet Charlotte, 1964), fato que o seriado desenvolve com profundidade lá pelo sexto espisódio.

A intenção de reunir as duas atrizes surgiu primeiramente em 1950 para o filme À Margem da Vida (Caged), mas a recusa de Bette Davis pelo papel não apenas impediu isso de acontecer como também interferiu na contratação de Crawford, que também não foi escalada para ele.

O que se imagina é que, o fato de Davis não gostar de Crawford se tornar algo público, acabou despertando em Crawford uma necessidade de resposta, e a rivalidade entre elas foi plantada. Mais do que isso, esse embate público também criou discussões comparativas dentro da indústria sobre quem era mais talentosa, quem era mais bonita, quem era mais interessante ou inteligente. Isso influenciou negativamente no comportamento de ambas, preparando o terreno para uma guerra criada e alimentada mais pelos outros do que por elas mesmas.

Em seu silêncio, Crawford aparentava sustentar uma grande admiração por Davis, mesmo sendo constantemnte minada pelas pelos comentários ácidos da colega. Ao mesmo tempo invejava seu sucesso e popularidade, e para driblar as comparações inferiores que recebia - inclusive dos próprios chefes da Warner - se esforçava herculeamente para provar ser tão (ou mais) capaz e competente. Por outro lado, quanto mais Davis percebia os esforços de Crawford, mais ela a esnobava, atacando sua moral e inferiorizando suas qualidades como atriz para desestruturá-la psicologicamente, pois Davis sabia que falar do talento de Crawford era atingir seu tendão de Aquiles, e assim continuaria por cima.

Sabe-se que reuní-las para o filme O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (What Ever Happened To Baby Jane?, 1962) acabou se tornando uma guerra de egos e interesses que quase enlouqueceu o diretor Albert Aldrich, e o estopim da situação foi durante a promoção do filme. Davis viajou por todo o país promovendo o filme praticamente sozinha enquanto Crawford se escondeu em sua mansão em Los Angeles. Durante a promoção, em momento algum Davis elogiou a performance de sua colega de elenco. Este é tido como, talvez, o maior rancor de Crawford depois de ter sido ignorada pelo Oscar em 1964, situações também presentes no seriado.

Crawford chegou a afirmar que teria sido louvável e profissional se Davis tivesse lhe dado um pequeno crédito nas coletivas que precederam o lançamento ao invés de agir como se o filme fosse apenas dela. Um ressentimento compreensível até, independente do difícil convívio nos bastidores.

Bette Davis sempre levou muito a sério a bagagem profissional de atores com quem trabalhou, sendo até um tanto preconceituosa a respeito disso. Ela, que começou sua carreira na Broadway, desdenhava o background profissional de Crawford, que começou a carreira como dançarina de boates antes de estrear no cinema mudo. Em contraponto, Crawford admirava a bagagem teatral de Davis, mas acreditava que essa experiência não era útil no cinema, já que as câmeras demandavam outro tipo de técnica, afirmando que Bette sabia interpretar, mas não sabia entregar personagens (fala também presente na série).

Na tentativa de construir uma imagem popular mais diplomática, Crawford nunca respondia diretamente os ataques recebidos por Davis, ou pela imprensa de fofocas. Ao invés disso, preferia agir de maneira mais indireta e ardilosa pelos bastidores, o que sempre demonstrou uma certa fraqueza emocional e covardia, coisas que Davis repudiava, pois era conhecida por ser bastante direta e desbocada. Daí o fatídico episódios do Oscar em 1963, pelo qual Davis nunca a perdoou, culminando na insustentável situação no início da produção de Com A Maldade na Alma.

Por essas e outras que, enquanto Crawford era conhecida como "a rainha do drama", Davis era conhecida como a "grande megera" de Hollywood. Davis chegou a afirmar que o maior talento de Crawford era chorar demais, como se urinasse pelos olhos, além de dormir com todos os homens de Hollywood, só faltando o cachorro Lassie. Crawford, por sua vez, vestia o papel da dama indiferente e fingia não se incomodar, respondendo que se tirassem os olhos saltados, o cigarro e os maneirismos de Davis, não sobraria talento algum. Farpas públicas recorrentes, e que para a imprensa de fofoca era sempre bastante lucrativo.

Naquela época, a opressão e o abuso da imagem feminina eram grandes. Mulheres eram poderosas nas telas, mas nos bastidores a situação era inversa. Se hoje a discussão de assédio nos bastidores é algo recorrente, na época ninguém tocava no assunto, pois era corriqueiro e dominante entre os homens e os negócios. As atrizes eram assediadas moral e sexualmente, usadas como objetos e mercadorias. Sabe-se, por exemplo, que os grandes chefes de estúdios como MGM, Warner e Fox, trocavam farpas durante o dia, mas a noite se reuniam para carteados e apostas, sendo Bette Davis uma dessas apostas quando Jack Warner aceitou empresta-la à RKO para o filme Pérfida (The Little Foxes, 1941), e assim quitar uma dívida de US$300 mil.

A rivalidade entre as duas era uma coisa natural até um certo ponto, mas a partir do momento que isso se tornou algo vendável, o oportunismo em cima disso forjou situações para piorar a inimizade e gerar essa atmosfera de constantes ataques e aprovações.

É óbvio que grande parte disso tudo era catalisado pela imprensa sensacionalista, encabeçada pela frustrada atriz e colunista de fofocas, Hedda Hooper. Sua coluna no jornal Los Angeles Times era bastante influente na opinião pública, ao mesmo tempo que Hedda era considerada persona non grata nos grupos mais intelectuais. A título de interesse, Hopper foi uma das responsáveis por denunciar possíveis comunistas ligados à indústria cinematográfica durante a era McCartista, entre as décadas de 40 e 50, prejudicando e desempregando dezenas de diretores, atores, roteiristas e demais ligados à indústria, naquilo que veio a ser chamado de "lista negra" de Hollywood.

Até hoje existe uma grande discussão mundial sobre rivalidades que a mídia cria para diminuir a capacidade das mulheres, como uma maneira de controlá-las e transformá-las em indivíduos manípuláveis, fazendo delas estereótipos e rótulos fúteis, vendendo-as pelas polêmicas, e não pelo talento, como bem aconteceu com ambas.

Davis e Crawford podiam ter seus problemas, mas uma coisa elas tinham em comum, o comprometimento com o trabalho. Ambas eram extremamente profissionais e exigiam bons papéis aos donos de Hollywood, além de detestarem serem passadas para trás. Foram, juntamente com poucas outras atrizes, como Katherine Hapburn e Olivia De Haviland, as precursoras de um comportamento femininsta em Hollywood que incomodava os grupos machistas dominantes. Davis chegou a processar a Warner na década de 30 por ter se negado a fazer um filme e estar presa a um contrato que a impedia de escolher seus trabalhos, ou até mesmo trabalhar fora dos EUA por conta própria. A Warner era "dona" dela. Obviamente ela perdeu, sua imagem ficou manchada, mas nunca abaixou a cabeça. De Haviland chegou a mover um processo similar, mas ao contrário de sua amiga, se bem sucedeu, conseguindo uma certa "emancipação" da indústria.

Embora fosse evidente para ambas que a mídia era uma grande responsável por manipular essa rivalidade, Bette nunca escondeu seu desapreço, enquanto Crawford nunca afirmou odiá-la, mas também não deixava barato. Apesar de tudo, Davis nunca negou admirar o profissionalismo e a pontualidade de Crawford, também dizendo que grande parte dos problemas que Crawford teve na indústria foram basicamente os mesmos que também teve, justamente por serem extremamente exigentes e críticas.

Hoje em dia há muitas idéias de que a mídia tenha criado esse campo de batalha para evitar que Davis e Crawford unissem forças para combater o sistema dominante da época. Era certo que, se as duas se tornassem aliadas contra os esquemas que reduziam as mulheres como carnes de açougue, isso pudesse dar margem a um movimento que seria desmoralizante para a indústria e obrigaria Hollywood a grandes mudanças. Mudanças as quais - algumas - aconteceram com o passar dos anos, como os estúdios hoje em dia não serem mais "donos" de artistas ou diretores, e proibidos de exigirem contratos restritos ou que se extendam por mais de 7 anos.

A imprensa da época era movida a "frases de impacto", tal como acontece no primeiro episódio, quando Hedda Hopper (Judy Davis) diz a Crawford (Jessica Lange) que ela só precisa de um "catch phrase" sobre Marilyn Monroe, ou seja, aquela frase de efeito pronta para ser publicada na primeira página, que se propagasse facilmente. Tanto é assim que existem diversas frases memoráveis (e verdadeiras) tanto de Joan quanto de Bette, aproveitadas no seriado em meio aos diálogos, como as mais conhecidas de Davis sobre Crawford: "Não mijaria em Crawford nem se ela estivesse pegando fogo", ou a mais polêmica delas: "Não devemos falar mal dos mortos, apenas coisas boas. Crawford está morta, isso é coisa boa".

Alfinetadas irônicas e perniciosas como Twittes nos dias atuais, nada que ultrapassasse 140 caracteres nas manchetes de fofocas. Enfim, todo o ringue era planejado e montado por aqueles que tinham interesse.

Portanto, é basicamente em cima dessas idéias e acontecimentos que Ryan Murphy irá desenvolver a primeira temporada de sua nova série de antologias, assim como é seu filho pródigo, American Horror History, onde cada temporada tem uma história única.

É por essa razão que a série irá abordar dois momentos importantes: os batidores de Baby Jane, e os bastidores de Com A Maldade Na Alma, pois são capítulos que marcam o início e o fim de uma era de rivalidade.

A idéia de Feud começou há seis anos atrás. Murphy sempre foi um grande fã de Davis, e após ler a biografia de Shaun Considine, narrando o complicado bastidor de O Que Terá Acontecido A Baby Jane?, quis fazer um filme sobre o assunto. Afirmou sempre ter tido em mente Susan Sarandon e Jessica Lange nos papéis, mas as dificuldades de transformar o projeto em filme acabaram levando-o a optar por um projeto para a televisão, algo que Sarandon chegou a afirmar em entrevistas recentes ter sido a opção mais interessante, pois haveria tempo para explorar assuntos em oito episódios que em um longa metragem não seria possível.

A biografia de Considine é um dos materiais principais de todo o roteiro, mas não apenas isso... relatos, boatos, fofocas, informações de bastidores... tudo isso igualmente incrementa e traz à tona uma rivalidade que permeou o imaginário das pessoas, alimentadas por todo o espetáculo midiático que se criou em torno disso. Claro que algumas informações distorcidas aparecem, como a série afirmar no primeiro episódio que Baby Jane teve seu roteiro escrito pelo próprio Albert Aldrich, e não por Lukas Heller (que também foi o responsável pelo roteiro de Com A Maldade Na Alma). Há também algumas controversas, como o polêmico anúncio que Bette Davis publicou em 1963 procurando emprego. A publicação, na realidade, foi uma piada criada por ela mesma para criticar o etarismo da indústria ao ignorar atrizes depois de uma certa idade, e acredita-se que foi depois de vê-lo que o diretor Robert Aldrich contatou a atriz para o papel principal em Baby Jane, e não muito bem da forma como o seriado mostra. 

Independente disso, Murphy faz uma construção muito sólida de tudo. A pesquisa realizada, o material coletado de diversas fontes videográficas (a maioria delas encontradas no próprio YouTube) reproduzem tudo com tanta atenção a detalhes que é surpreendente (há diversos vídeos comparando as reproduções da série com os materiais reais). O mais impressionante é a forma como ele conseguiu encaixar tudo dentro de uma cronologia possível e ainda criar uma história consistente em meio a tantas referências e informações dispersas.

O roteiro se utiliza basicamente de duas narrativas principais: A narrativa mais objetiva, mostrando o cotidiano das atrizes e seus conflitos pessoais, dando justificativas e arco dramático necessários para sustentar a conflituosa relação entre elas e suas respectivas vidas privadas cheias de altos e baixos, bem como a narrativa mais documental, com relatos de Olivia De Haviland (Catherine Zeta-Jones) e Joan Blondell (Kathy Bates), amigas íntimas de Davis, para dar consistência aos fatos por pontos de vistas externos e mais pessoais.

O resultado - e não tem como dizer outra coisa - é brilhante.

De forma alguma seria desmerecer ou diminuir o talento de Jessica Lange, mas o trabalho desenvolvido por Sarandon é arrebatador. Ela consegue incorporar a essência de Davis em todos os aspectos, do modo de falar ao modo de agir. Ao ver sua performance, é como se a víssemos pensando como Davis. Segundo a atriz, sua maior preocupação foi fugir o máximo que pudesse da caricatura, já que a própria Davis era uma pessoa bastante caricata, como no momento em que ela se apresenta como Baby Jane pela primeira vez, conseguindo ser tão engrandecedor e chocante como é relatado ter sido na realidade.

Assim como o primeiro episódio mostra, Davis decidiu fazer sua própria maquiagem, recusando profissionais. A idéia que ela teve para Baby Jane é que ela era uma pessoa que aparentava ser como uma boneca velha, maquiada em cima da maquiagem do dia anterior. Quando ela se apresentou daquela forma a Bob Aldrich, ela não apenas arrancou o choque da equipe, como também de sua própria filha e igualmente de Joan Crawford, ao mesmo tempo que, por outro lado, foi parabenizada pelo próprio autor do livro, que afirmou que ela estava exatamente como ele imaginava Baby Jane enquanto escrevia. Essa relação de Davis com a maquiagem já rendeu outras situações, como no filme Pérfida, quando o diretor William Wyler disse que sua maquiagem parecia de um Kabuki, e que ele não a filmaria daquele jeito. E, no fim, Pérfida é igualmente uma de suas maiores performances de sua carreira.

Embora a performance de Sarandon tenha grandes virtudes, principalmente porque seus diálogos sarcásticos e de objetividade cirúrgica reproduzem com assustadora fidedignidade a irônica rispidez, o humor sarcástico e a afiada eloquência de Davis, Lange não é ofuscada, mas também não se destaca como se espera, ficando a todo momento sob as sombras.

Mas isso não é demérito do roteiro e muito menos um erro, mas algo que se mostra proposital pela própria personalidade da atriz referenciada. Crawford, assim como publicamente taxada, era sempre dramática demais. Uma mulher que tinha diversos problemas pessoais e psicológicos, como inferioridade, baixa auto-estima, depressão, mania e alcoolismo. Não é à toa que seus móveis encapados era uma das coisas mais bizarras de sua persona, já que tinha obsessão por limpeza. Dita como uma pessoa difícil de se conviver, era inteligente e determinada, mas não tinha a mesma sagacidade de Davis. Por ter dado tanta atenção a comentários e comparações de terceiros, seu único objetivo, por muito tempo, foi se sobrepor à sua rival, e a consequência disso foi ter se tornado uma coadjuvante de sua própria história. Isso é o que é realmente entristecedor de toda essa rincha, e esse lado dramático pode até ter o melodrama sempre característico de Crawford empersonado por Lange, mas não deixa de ser verdadeiro e sofrido. A forma como Crawford absorveu a situação e transformou tudo isso em um objetivo vazio, é uma batalha que ela trava com ela mesma sem qualquer trégua, resultando em uma vida solitária, um final de carreira decadente e uma morte anunciada. 

A manipulação existente em volta das duas atrizes, até mesmo na de Aldrich sobre elas, alguém que se mostrou presente e amigo, considerado por elas como alguém de confiança e um mediador necessário, é desmoralizante. Mas assim como a série constrói, Aldrich também foi uma vítima dessa manipulação, sendo igualmente inferiorizado e um objeto/ferramenta de concretização dessa novela, tamanha a gigante proporção do domínio da indústria sobre eles, já que os estúdios passaram a depender de toda essa má publicidade para garantir o sucesso de bilheteria dos filmes numa fase que lançou o estilo "hag movies" (ou hagsploitation), ou seja, filmes que exploravam a imagem de "bruxas velhas", em referência ao gênero de suspense/horror com atrizes acima dos 50 anos interpretando vilãs caricatas.

Numa época em que fala-se muito da igualdade das mulheres e de seu empoderamento, a série ergue discussões fundamentais sobre isso sem soar doutrinadora ou didática, como no momento em que Pauline Jameson (Alison Wright) expressa suas intenções em dirigir um filme que ela mesma escreveu pensando em Crawford no papel principal, mas é desmotivada pela forte presença masculina em um período em que não havia mulheres diretoras em Hollywood. Claro que o cenário hoje é um pouco diferente, mas ainda existe um grande desfalque feminino nesta categoria, e uma das grandes razões da maioria dos episódios terem sido dirigido por mulheres.

Embora superficialmente a série aparente sustentar a rivalidade apenas em cima da inveja sobre a beleza de uma e o talento de outra, é possível perceber que havia muito mais por trás de tudo. Murphy conseguiu criar um material respeitoso, além de uma grandiosa homenagem às duas atrizes, entregando ao público um final esperado, mesmo que diferente da realidade, mas desenvolvido de maneira tão delicada, expressiva, e justificada de forma tão simples e honesta que encerrou satisfatoriamente a temporada, servindo como um possível pedido de desculpas póstumas uma à outra. Um final emotivo e nostálgico, uma fantasia poética possível caso tudo tivesse sido diferente, além de mostrar que ambas tinham muito mais em comum do que elas próprias imaginavam.

Como um todo, Feud se mostrou mais que uma série, mas um resumo histórico de uma fatia da História do Cinema e de Hollywood, além de ser, até o momento, a melhor temporada de séries de 2017. Curta, expressiva, relevante e emotiva.

Nenhum elogio é bom o bastante.

terça-feira, 2 de maio de 2017

SER HUMANO É...

★★★★★★★★★☆
Título: Human
Ano: 2015
Gênero: Documentário
Classificação: Livre
Direção: Yann Arthus-Bertrand
Elenco: -
País: França
Duração: 190 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma coletânea de histórias e imagens sobre nosso mundo, oferencendo uma imersão à essência do que é ser humano.

O QUE TENHO A DIZER...
Yann Arthus-Bertran é um fotógrafo, jornalista, repórter, cineasta e ambientalista. Nascido na França, o diretor de 70 anos ficou famoso quando lançou o livro Earth From Above (1999), resultado de seus estudos sobre o comportamento da Terra, patrocinado pela UNESCO. O livro é uma coletânea de fotos aéreas tiradas das mais impressionantes e belas paisagens que ele registrou do mundo, e vendeu mais de 3 milhões de cópias, se tornando também uma série documental de 16 episódios.

Em 2009, ele lançou Home, seu primeiro documentário em longa metragem, abordando a relação do homem com a natureza através de imagens deslumbrantes e uma narrativa bastante objetiva que questionava o equilíbrio ecológico do planeta atualmente.

Anos se passaram, e o meio ambiente sempre foi o principal assunto de discussão de seus trabalhos posteriores. Mas, em 2012, Yann resolveu dar início a outro trabalho e focar a natureza através de outro ponto de vista, o ponto de vista humano.

Com uma equipe de 20 pessoas, o diretor entrevistou mais de 2000 mil pessoas em 60 países. Uma proporção jamais feita antes. As entrevistas seguiam um questionário padrão de aproximadamente 40 perguntas relacionadas a diversos temas, desde os mais pessoais, até os mais abrangentes.

Desde o princípio, Yann tinha a audaciosa intenção de lançar o longa nas condições mais livres para o maior número de pessoas possível, e, obviamente, não conseguiu encontrar nenhum outro veículo que melhor pudesse lhe oferecer isso da maneira mais democrática do que a internet.

O documentário foi lançado em 2015 na Bienal de Cinema de Veneza, simultaneamente em 400 salas de cinema na França, e no YouTube, já que a Google foi sua parceira exclusiva, disponibilizando o material na versão extendida em seis línguas: Inglês, Russo, Espanhol, Português, Árabe e Francês, se tornando o primeiro documentário a ter o maior lançamento mundial não comercial e gratuito da história. E não por menos, pois o trabalho, mesmo que tenha seu teor crítico e diversas camadas de interpretação, seja, em sua grande essência, a maior homenagem ao ser humano que alguém já ousou fazer.

Belo e impressionante, é um documentário de formato simples e intimista. Nada além de histórias sob diferentes aspectos de vida contadas por pessoas frente a câmera, em um plano escuro, intercalando os diferentes temas abordados com maravilhosas imagens aéreas de paisagens que sempre mostram grupos de pessoas realizando atividades que, para elas, podem parecer grandiosas e extenuantes, mas na realidade mostram como somos tão pequenos e frágeis. Acima de tudo, mostra nossa característica mais marcante, a de que, apesar de toda nossa individualidade, somos seres grupistas, que necessitamos uns dos outros para realizar ou dar continuidade a qualquer coisa que seja. 

O capricho da produção, de sua fotografia, da qualidade do som e da imagem, são tão deslumbrantes que o que se destaca são os próprios indivíduos. E cada olhar, cada assimetria, cada marca de expressão, cada cicatriz, cor, defeito ou detalhe único de cada um, se transformam em belezas raras, contando muito de suas próprias histórias de vida mais do que elas mesmas precisariam contar. Pessoas que não tem nome, pois não é isso que interessa. Yann não dá uma identidade ao entrevistados porque quer deixar evidente que, além do que se acredita, isso não impede as pessoas de terem voz, e que são as experiências únicas que as definem como indíviduos e como um coletivo.

Amor é o tema inicial de abertura do filme. Os olhos dos entrevistados brilham, e suas diferentes opiniões sobre aquele que é o maior sentimento humano apenas comprovam que, mesmo havendo infinitas formas de definí-lo, ele é um só.

Essa introdução nos prepara para assuntos mais complexos. Aos poucos, o diretor nos carrega por outros temas como o machismo, família, homossexualidade, religião, pobreza, guerra, dentre outros. Diferentes experiências e sensações que vêm em ondas, já que, da mesma forma como curtos relatos conseguem tirar de nós os mais sinceros sorrisos, outros também conseguirão tirar de nós as mais sinceras lágrimas. A intensidade emocional é grande, mas não há sensacionalismo. Yann consegue mesclar essas diferentes intensidades de maneira tão hábil que nos incentiva a querer conhecer muito mais de cada um.

A brutal honestidade dos diferentes relatos apenas expõe feridas que ignoramos, ou pouco conseguimos compreender por não fazerem parte do nosso cotidiano. Em um mundo atualmente tão individualista, marcado cada vez mais por sistemas cruéis que sugam das pessoas a capacidade de compreensão do próximo, Human consegue ser um excelente exercício de descobertas, tolerância e respeito, uma expansão de consciência daquilo que somos e deveríamos ser.

É fácil julgarmos as pessoas e definir sentimentos de maneira simples, conforme nossas experiências pessoais, mas é difícil nos despir do pré-conceito. É fácil julgarmos alguém pela sua aparência, mas é difícil querermos conhecer sua história. Human consegue fazer isso, de nos mostrar que sentimentos são muito mais do que apenas aquilo que sentimos, e que por trás das aparências há experiências que talvez nunca teremos, mas devem ser respeitadas, para através delas quebrarmos paradigmas e sairmos de um status quo alimentado por uma sociedade comumente superficial e movida a impressões.

Yann desmembra a complexidade e a beleza em ser humano, do nosso instinto de sobrevivência, da nossa força tirada sabe-se lá de onde para nos mantermos em um objetivo, e da esperança existir até mesmo onde ela parecia abandonada. Também nos mostra como as experiências são modificadoras, e como não podemos deixar que certas heranças culturais se sobreponham a noções básicas do convívio e do respeito.

Um documentário transformador, que consegue nos dar diferentes impressões do que somos antes e do que pretendemos ser depois de assistí-lo. Como li em um comentário, um antídoto a tudo aquilo que nos divide, que enfraquece a dicotomia do "EU VERSUS ELES", que resume os erros que nos fazem sempre querer nos sobrepor aos outros, e resumir tudo às diferentes violências de maneira tão fácil.
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