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terça-feira, 30 de junho de 2020

O CINEMA NACIONAL NO SEU PAPEL...

★★★★★★★★★☆
Título: A Vida Invisível (de Eurídice Gusmão)
Ano: 2019
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Karim Ainouz
Elenco: Julia Stockler, Carol Duarte, Gregório Duvivier, Barbara Santos,
País: Brasil, Alemanha
Duração: 139 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
A história de duas irmãs inseparáveis, porém separadas pela vida e pela vontade dos homens.

O QUE TENHO A DIZER...
A Vida Invisível (de Eurídice Gusmão) é uma filme de mulheres, para as mulheres, e para ser assistido por todos os homens ao lado de mulheres.

É o cinema nacional exercendo o seu papel conscientizador que tão bem consegue fazer, escancarando os defeitos de sua sociedade através de metáforas que não tem medo de mostrar as engrenagens tortas, desdentadas e enferrujadas da hipocrisia que a movimenta e da violência perturbadora que a amordaça. No caso dessa obra, especificamente sobre a relação dessa sociedade que está sempre com/contra as mulheres, estas constantemente diminuídas, reduzidas às necessidades patriarcais e manipuladas a exercerem os sonhos e as vontades de todos, menos os próprios.

O filme do diretor Karim Ainouz, baseado no livro da pernambucana Martha Batalha, é de um niilismo sufocante sobre o destino de duas irmãs muito unidas que se separam ainda jovens. Enquanto Guida foge para a Grécia com um marinheiro por quem se apaixona, Eurídice permanece no Rio de Janeiro com seus pais e um casamento marcado. Eurídice sonha em entrar para o famoso Conservatório de Viena, mesmo que a contragosto de sua família. Mas o maior medo dela é uma gravidez precoce, e o impecilho que isso seria para seus objetivos, tomando o máximo de cuidado possível. Mesmo assim não adiantou por conta das constantes investidas sexuais de seu marido em intercursos muito mais violentos do que românticos e naturais, como se seu objetivo fosse engravidá-la a qualquer custo para provar à sociedade seus valores machistas e igualmente boicotar os sonhos de sua mulher.

E é nesse meio tempo, entre a ida de Guida para a Grécia e seu retorno inesperado, que a vida começa a mostrar para essas duas mulheres que a sociedade não permite que no mundo haja lugar para construirem as coisas às suas vontades. E que tudo não passa de uma farsa construída pelo poder dos homens que as oprimem, as culpam, as responsabilizam, as fazem voltarem-se umas contras as outras, as separam e as isolam, como propriedade. Objetos de servidão cercados, terrenos férteis dos senhores possessivos e privadores.

A história não nos poupa dos constantes apedreijamentos que as irmãs levam do meio que vivem e da violência constante da sociedade masculinizada. Da violação física à psicológica, vemos de tudo um pouco em doses constantes e intensas o bastante para não termos oportunidade de vislumbrar qualquer esperança de que a vida das protagonistas possa ser diferente ou recompensadora.

É um filme que deixa um gosto amargo, e termina com um buraco no peito. Melodramático, mas necessário, e nem por isso deixa de ter sua sutileza, mesmo que violenta e sufocante.

domingo, 28 de junho de 2020

CATIVANTE E HONESTO...

★★★★★★★☆
Título: Eurovision: A Saga de Sigrit e Lars (Eurovision: The Story Of Fire Saga)
Ano: 2020
Gênero: Comédia
Classificação: 10 anos
Direção: David Dobkin
Elenco: Will Farrel, Rachel McAdams, Dan Stevens, Pierce Brosnan
País: Estados Unidos
Duração: 123 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
A saga de Sigrit e Lars para chegarem ao maior festival de música da Europa, o famoso e excêntrico Eurovision.

O QUE TENHO A DIZER...
Eurovision é o maior e mais famoso festival de música europeu que existe. É uma competição musical que anualmente reúne todas as nações européias para os países participantes escolherem uma nacionalidade para representar o continente.

É um evento popular que obviamente mescla talento com exageros performáticos que agregam culturas e caracteristicas nacionalistas que já revelaram inúmeros artistas talentosos e bastante excêntricos quando comparados com os padrões da indústria pop do extremo ocidental. É um evento ultrapop por excelência que, aos olhos estrangeiros, pode parecer antiquado e cômico, porém levado a sério por lá ao trazer consigo a importância de pequenas nações terem seu momento de reconhecimento e destaque por meios que tradicionalmente não teriam com facilidade.

A Eurovision é um evento agregador que promove culturas nacionais, incentiva reconhecimento de nações, promove o turismo, a irmandade, a paz, e festeja a cultura de maneira democrática e emocionante.

E é válido dizer que esse é um projeto pessoal de Will Farrel. O ator e comediante foi apresentado a este festival de música em 2009 pela sua mulher, que é finlandesa, por isso a história parte daquele país. Desde então é apaixonado pelo evento, não perdendo uma edição.

O roteiro, escrito por ele e Andrew Steele, começou a ser desenvolvido em 2017. Foi nesse ano que Farrel conseguiu ter acesso irrestrito aos bastidores para o laboratório que o levaria a colocar no filme, de maneira satírica, muito das experiências que absorveu.

O interessante é que Farrel conseguiu criar uma biografia fictícia que, a princípio, até parece não ser, tamanha a autenticidade com que ele, bem como Rachel McAdams, interpretam o casal de heróis da história. Uma autenticidade que carrega todos os elementos necessários para serem verdadeiros concorrentes do concurso musical.

Essa dúvida cai por terra exatamente pelos exageros das situações, anacronismos e confusões temporais, mas que passam batidos frente a todo o espetáculo constrangedor que Lars faz questão de colocar a dupla a todo momento.

Farrel é um ator, roteirista e produtor que adora lidar com a comédia de absurdos, e aqui ele se sente bastante confortável numa química até surpreendente com a versatilidade de McAdams, que constrói a personagem Sigrit de maneira tão convincente quanto ele.

É uma sátira, com pitadas de paródia, mas respeitosa o suficiente para ser considerada uma homenagem tal qual o ator e roteirista assim desejou. Um musical que tem uma essência interessante, que inclusive até quebra determinados padrões do gênero ao fazer essa jornada da dupla Fire Saga, em buscar um sonho e nada mais, usar esquetes musicais como elementos empolgantes mais do que dispersivos ou entediantes, agradando até mesmo aqueles que não gostam do estilo.

Uma pena que as piadas ou situações cômicas sejam frequentemente esticadas além do necessário fazendo do filme algo mais longo do que poderia, e o egocentrismo megalomaníaco de Lars acaba testando também a paciência do espectador, fazendo o personagem cair no perigo maior da comédia constrangedora, a de a todo momento se tornar vítima de suas próprias ações sem muita necessidade, se desconectando fácil e constantemente da empatia que ora consegue desenvolver, num puxa-e-empurra exaustivo.

E são nesses momentos que o roteiro tropeça, e quanto mais o personagem se esforça para querer provar seu mérito, mais ele sai ofuscado, e no fim é McAdams e sua personagem quem roubam as cenas, a empatia, e a torcida pelo sucesso, e o filme como um todo. Talvez tenha sido uma construção proposital, e a hilária - e ao mesmo tempo assustadora - cena do echarpe ser a metáfora resumida disso tudo, de Sigrit ser constantemente arremessada para trás toda vez que tenta se distanciar da obsessão inconsequente de seu parceiro. É uma pitada dramática que poderia ter sido bem explorada, mas que só vai ficar clara perto do fim, dando a sensação de uma reviravolta repentina pela mera obrigação de se ter o conflito dramático que se oponha à comédia.

Apesar dos tropeços dessa imprecisão de momentos que se opõem, a Saga de Sigrit e Lars é bastante familiar, leve e até comovente pela humanidade que ambos conseguem dar aos seus respectivos papéis, e que funciona na sua despretenção. Um filme estranho, com personagens esquisitos e cativantes, que no fundo traz uma mensagem que até pareça cafona e clichê, mas honesta e reconfortante.

E assim deve ser assistido, sem muitas expectativas, e sem muita exigência. E dessa forma a dupla conquista.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

JÁ ESTÁ CONSTRANGEDOR...

★★★★
Título: O Exterminador do Futuro: Destino Sombrio (Terminator: Dark Fate)
Ano: 2019
Gênero: Ação
Classificação: 14 anos
Direção: Tim Miller
Elenco: Arnold Schwarzenegger, Mackenzie Davis, Linda Hamilton
País: China, Espanha, Hungria, Estados Unidos
Duração: 128 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Após os eventos do segundo filme, mais de 20 anos se passaram e a história volta a se repetir para Sarah Connor.

O QUE TENHO A DIZER...
O sexto filme da franquia, mas o terceiro na ordem cronológica de sua história, como o diretor James Cameron o categoriza, é sem dúvida uma piada suja e sem graça.

Em primeiro lugar porque, embora Cameron tenha apoiado os demais filmes que ele não dirigiu, ele nunca participou deles de outra forma, e sempre esteve insatisfeito com todos. Ao mesmo tempo, relutante em dirigir um terceiro filme, alegando que poderia cair na sua própria repetitividade por falta de idéias melhores (e vejam só o que deu a franquia, ou no que dará Avatar e suas infinitas continuações já agendadas até 2027).

De fato, era difícil existir alguma história que superasse Julgamento Final (1991), uma sequência que conseguiu ofuscar até mesmo seu antecessor de tal forma que hoje é considerado um clássico dos clássicos do cinema de ação. Ao mesmo tempo, era difícil também superar o plot twist que conseguiu transformar T-800 de um implacável ciborgue caçador de humanos para um defensor deles, tirando a consagrada imagem de vilão que Schwarzenegger conquistou no primeiro filme e recolocando-o na imagem de herói por excelência que construiu ao longo de toda a carreira sem cair em bobagens narrativas que fizessem isso gratuitamente para manter a imagem positiva de um astro. Um marketing muito bem jogado ao ponto de fazer tanto o ator, como o icônico personagem, catapultarem extratosfericamente na lista dos mais idolatrados e carismáticos da história do cinema com bordões inesquecíveis para qual seja a geração.

A Revolução das Máquinas (2003) não chega a ser um filme ruim, mas foi naturalmente inferior desde sua concepção por terem riscado Sarah Connor da história e de qualquer possibilidade de retorno, personagem que foi a verdadeira manivela e o epicentro de existência de toda a série. Foi imperdoável. Mas perto de Destino Sombrio (2019), o terceiro filme, o de 2003, chega a parecer até uma obra prima.

Mesmo se, de fato, ignorássemos a existência das sequências anteriores, como assim James Cameron quer (ou praticamente obriga), o atual filme não traz nenhum elemento que possa ser considerado de grande importância para a história, muito menos para sua existência.

A sequência inicial consegue até enganar ao reutilizar cenas do segundo filme, de uma Sarah Connor aparentemente fora de si, no ápice de uma suposta esquizofrenia durante um interrogatório no manicômio em que estava internada. Sua narrativa então leva a outro espaço temporal, naquele em que um flashback mostra o que realmente aconteceu após o segundo filme: John Connor finalmente é executado por um exterminador (e isso não é um spoiller). O efeito "deaging" que usaram tanto em Linda Hamilton quanto em Schwarzenegger para rejuvenecê-los são de cair o queixo, e mais realistas que qualquer outro filme que já tenha utilizado essa tecnologia. Nem O Irlandês (2019), de Scorcese, conseguiu isso. E essa cena talvez seja a única a ser levada com seriedade.

É nesse momento que bate aquela nostalgia do perene conflito entre Sarah e T-800 no primeiro filme, ou o reencontro assustador que ambos tiveram nos corredores do manicômio, no auge do trauma de Sarah sobre os eventos do primeiro filme. Paralelamente bate também um sentimento entristecedor de como o tempo é injusto com nossos corpos, de como nossas referências no cinema também envelhecem. Essa tristeza aumenta com o decorrer do filme, quando percebemos quantas boas idéias foram tão desperdiçadas aqui, desrespeitando aqueles que assistem, e também a carreira e o tempo dos atores que contribuíram para essa mágica do cinema de criar universos e personagens que marcaram nossas lembranças e experiências.

O roteiro tenta fazer uma releitura da história do primeiro filme sem trazer nada novo ou agregador, transformando-se num cliche de si mesmo o tempo todo. Há um excesso de coisas que não se conversam entre si. Muita gente do futuro agregada, muita gente aparecendo em cena sem propósito, muitos personagens querendo ser heróis de algo ou alguma coisa ao mesmo tempo, e muitas, mas muitas cenas de ação que extrapolam os absurdos além de qualquer Indiana Jones sobrevivendo a uma explosão nuclear dentro de uma geladeira. A sequência do avião, que supostamente deveria ser o ápice do filme, é um tédio sem fim, e nem no filme de ação mais absurdo um cargueiro daquele demoraria tanto para cair como demora esse, para citar o mais básico dos absurdos que nem o cinema do absurdo suportaria.

Não há química entre os personagens, e Linda Hamilton assustadoramente parece mais robótica que Schwarzie no primeiro filme, e Schwarzie nesse filme aparenta mais humano e expressivo que ela. Poderia ser um contraste metafórico interessante se tudo em volta não fosse tão reciclado e feito sem qualquer coesão pois, pior do que esses defeitos, é o roteiro não ter uma história descente, já que é apenas a tecla de preservar o presente para não se alterar o futuro sendo batida incessantemente. Um enredo outrora explorado das mais diversas formas em todas as sequências que James Cameron hoje considera "não oficiais", ou de uma "realidade paralela".

Poderíamos facilmente culpar o diretor Tim Miller se ele não tivesse exposto os conflitos que surgiram entre ele e James Cameron durante a produção. Miller assim bem fez para preservar-se do desastre anunciado que Destino Sombrio estava fadado, ao ponto de afirmar que nunca voltaria a trabalhar com Cameron novamente. Segundo ele, Cameron tolhou qualquer liberdade ou exploração criativa que tentasse atualizar a história, ou dar a ela elementos que a diferenciasse sem descaracterizá-la do universo que faz parte.

A intenção do diretor era desenvolver a idéia de que os esforços foram em vão, e a humanidade realmente havia perdido a guerra para as máquinas, sendo a solução enviar humanos ao passado para tentarem descobrir o que é que deu errado no caminho e construir-se a ação a partir disso. Cameron rejeitou por completo um enredo que rinha tudo para funcionar até mesmo para filmes posteriores, embora tenha gostado da idéia de uma personagem humana, mas aprimorada tecnologicamente, de ser incluída, resultando na inclusão de Grace (Mackenzie Davis), talvez a única que leve tudo a sério do começo ao fim. As constantes interferências de Cameron foram tantas que ele mesmo chegou a pessoalmente editar boa parte do filme, razão que intensificou a animozidade de ambos porque ele estava indiretamente interferindo no roteiro ao excluir ou alterar a ordem de cenas que, para Miller, eram de grande importância narrativa.

O resultado dessa discordância entre direção e produção é evidente, num filme vazio que tenta compensar sua falta de identidade apelando nos absurdos óbvios, de elementos já usados em todos os filmes anteriores, da ação por obrigação e na força de personagens que perderam suas relevâncias pelo mal uso, sendo agora nada além do que figuras inexpressivas.

Eu mesmo já ouvi a teoria de que John Connor nunca foi o revolucionário do futuro, mas um grande laranja na história, manipulado para não apenas enganar os exterminadores como também motivar Sarah Connor a permanecer viva através de seus instintos maternais, já que ela mesma seria a grande responsável por toda a transformação do futuro sem saber disso, e por isso a humanidade conseguiu ser salva. E seu filho, apenas um reles mortal que herdou seus feitos.

Enfim, qualquer enredo poderia ter sido melhor do que fusquinhas que tem que empurrar sendo perseguidos por caminhões conduzidos por um exterminador invencível. Quem já não está cansado de ver e rever essas cenas na franquia? E James Cameron, que nunca pisou no set de filmagem, dando pitacos e interferindo de maneira inapropriada para manter a história no mesmo platô que todas as sequências se mantiveram.

Melhor teria sido se ele nunca tivesse se dado a esse trabalho. Um diretor que coleciona sucessos, mas nem por isso deveria ser superestimado como é.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

INTERESSANTE, MAS ESQUECÍVEL...

★★★★★
Título: Hebe: A Estrela do Brasil
Ano: 2019
Gênero: Drama, Biografia
Classificação: 14 anos
Direção: Maurício Farias
Elenco: Andrea Beltrão, Marco Ricca, Danton Mello, Caio Horowicz
País: Brasil,
Duração: 112

SOBRE O QUE É O FILME?
As dificuldades pessoais e profissionais de Hebe no período de transição da ditatura militar para a democracia no Brasil, ao mesmo tempo em que deixa uma emissora para ser contratada por outra.

O QUE TENHO A DIZER...
Começando pelo título, o filme deveria levar apenas o nome dela. Hebe era uma figura tão única que não precisava de alcunhas. Embora tivesse várias, usadas apenas para reforçar sua importância no entretenimento como a primeira comunicadora a alcançar o status que conquistou em um cenário comandado por homens e seu machismo, a verdade é que sempre foram desnecessários. O subtítulo remete a idéia da nossa curta memória cultural, de que não sabemos quem ela foi, ou de que tenhamos esquecido quem ela possa ter sido. Junto a isso, também reduz a qualidade do projeto como um todo nesse apelo popular do uso de referentes, algo costumeiro na TV, mas inadequado no cinema porque habitualmente predispõe a noção de que a qualidade do filme, por si só, não sustenta ou garante seu sucesso.

A história se desenvolve no fim dos anos 80 e começo dos anos 90, episódio importante tanto para a apresentadora, de sua transição da Rede Bandeirantes para a Rede TVS/SBT, quanto para o país, pegando o fim da Ditadura e o começo da redemocratização, a reminiscência da censura e a guerra que Hebe travou publicamente com ela. Junto a isso as subtramas da relação abusiva que sofreu por anos com Lelio Ravagnani (Marco Ricca), sua relação com a diversidade sexual e de gênero, além da abordagem superficial de sua proximidade amorosa e liberal com seu filho e sobrinho, complementam os arcos dramáticos.

O problema é que o diretor, Maurício Farias, muitas vezes parece esquecer da personagem, tentando forjar mais o espetáculo em volta dela do que nos pormenores, dando uma sensação fria e distante, um tanto artificial, quando deveria ser o contrário. Isso é, talvez, o velho problema recorrente da produtora Globo Filmes, que insiste em manter padrões televisivos no cinema, com design artístico e a já cansada fórmula tradicional de decupagem feitas mais para criar cenários de situações do que fazer deles extensões ou complementos dos personagens e das narrativas que os guiam.

Casado com a atriz na vida real, os dois já trabalharam juntos anteriormente em diversos projetos para a TV, como também no filme Verônica (2008), bastante elogiado na época. Essa relação pessoal e profissional de longa data com a atriz evidentemente atrapalha todo o resultado que se espera, principalmente na construção de uma personagem tão singular, porque atinge aquela zona de conforto complicada que, de tão familiar, deixa de ter trocas, apenas somatórias do mesmo modus operandi de sempre. É como se Farias já estivesse bastante habituado com o processo da atriz e vice-versa, num excesso de confiança que agora interfere na sua capacidade crítica do que deveriam aceitar de fato, ou não. E essas rédeas frouxas do diretor também são sentidas na maioria das cenas, principalmente quando envolvem coadjuvantes menores ou menos experientes, como no caso de Caio Horowicz, que interpreta Marcelo, o filho de Hebe. A interpretação do ator é sofrível, e sua presença em cena é tão apagada que até em momentos onde deveriam ser mais necessárias e impactantes, como em dois momentos dramáticos cruciais entre Beltrão e Marco Ricca, acabam perdendo toda a força que é construída, ao ponto de que tê-lo ou não tê-lo nessas cenas não faz a menor diferença. Mais que o próprio personagem, é como se o ator lá estivesse apenas como um bibelô.

O filme é incômodo porque é mau executado em diversos aspectos. Sua premissa é interessante, sua história e construção não são ruins, mas o roteiro escorrega em fatos que deixam de ser liberdade narrativa para se tornarem falta de atenção e pesquisa. Roberto Carlos e Chacrinha, por exemplo, nunca participaram de qualquer programa que ela teve porque ambos eram exclusividade da Globo. Roberto já apareceu em seu programa, mas numa entrevista externa, cuja gravação foi negociada por meses. Outra situação, bastante controversa por sinal, é em um breve diálogo que nos dá a entender que ela nunca foi para a emissora concorrente porque nunca quis, quando, na verdade, esse sempre foi seu maior sonho profissional e uma expectativa que nutriu calada até antes de sua morte, em 2012. Segundo as entrevistas que a apresentadora já concedeu, ela nunca foi convidada pela Globo, talvez porque achavam-na inadequada. Dizia isso com certo pesar, seguido da característica gargalhada para desviar a atenção de uma frustração quiçá superada ao longo de tantos anos. Foi um diálogo conveniente para a empresa que contraditoriamente assina a produção, criando essa deliberada distância desnecessária entre a ficção e realidade para não expor sua histórica indiferença sobre o assunto.

Essas tais liberdades narrativas poderiam ter ocorrido de outras formas no roteiro, como um sonho. Teria sido mais delicado e respeitoso. Mais condizente com a realidade que sempre expôs, mesmo que de maneira bastante subjetiva e contida ao longo de sua carreira pela postura ética e profissional que prezava frente as câmeras.

Por outro lado, há acertos, como no breve momento em que separa com cuidado os presentes de natal a Paulo Maluf e sua mulher. Uma cena bem simples, mas que clareia essa controvérsia que existia entre a Hebe política, indignada com a corrupção, o desprezo às diferenças e desigualdades sociais do país, e a Hebe pessoa, que ostentava os frutos de seus méritos e defendia com unhas e dentes aqueles que considerava amigos pessoais, independente de suas condutas.

Por fim, chegamos a interpretação de Andréia Beltrão, que em entrevistas promocionais do filme disse nunca ter tido a pretensão de imitar a figura de Hebe para não parecer caricata, já que a Hebe real era exagerada por natureza. Compreensível, ao considerar que a maioria dos papéis de Beltrão sempre foram mais cômicos que dramáticos, e cair na caricatura era um risco possível. A insegurança que Beltrão também afirmava ter quando foi convidada para o papel é maquiada pelo excesso de iluminação e do abuso do figurino extravagante do próprio acervo pessoal da apresentadora que, mais do que tentar ser fidedigno, é usado aqui como elemento de dispersão porque muitas vezes não tem uma composição coerente com toda a mise-en-cene.

Ao mesmo tempo que a atriz tenta manter certas essências da personalidade de Hebe, ela derrapa em detalhes importantes no comportamento físico e nos maneirismos que ora ou outra são usados quando lembra, mas esquecidos quando mais deveriam ser explorados. É a interpretação sendo constantemente limitada pela consciência, criando uma desconexão no processo imersivo. A inconstância de Beltrão no sotaque paulistano, dos floreios fonéticos 40tistas herdados por Hebe da cultura radialista da qual fez parte, é um exemplo. Nos raríssimos momentos que Hebe escorregava, era pra cair no sotaque interiorano de Taubaté, onde nasceu, e não para o carioca, como acontece com a atriz. A fala serrada é outro elemento esquecido, lembrado às vezes, e que, aí sim, nesses momentos, cai na caricatura tão evitada exatamente pela sensação artificial que propaga. Se Beltrão tivesse se preparado um pouco mais, indo além de sua visão pessoal da construção, teria sido incrível porque seu esforço é perceptível, e sua competência também, mas falta aquela mesma alma da qual sofre a direção, aquele laboratório mais intenso, compreensivo, de nuances bem estudadas e elaboradas ao ponto de se tornarem naturais.

Os defeitos não evitam, entretanto, de ser um longa interessante, mas quando visto como tal, e não expressamente como uma cinebiografia. Funcionaria na TV, como poderá funcionar na minissérie a estrear na Globoplay em breve. Mas como um produto para o cinema, ele falha nas intenções.
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