Translate

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

MIL E UMA PERSONAGENS...

★★★★★★★★☆
Título: Orphan Black
Ano: 2013
Gênero: Drama, Ação, Ficção Científica, Policial, Suspense
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Tatyana Maslany, Jordan Gavaris, Maria Doyle Kennedy, Kristian Bruun, Kevin Hanchard, Dylan Bruce, Evelyne Brochu
País: Canadá
Duração: 44 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Ao ver uma sósia idêntica se suicidar em sua frente, uma mulher rouba sua identidade para fugir da polícia e dar a ela e sua filha uma nova vida, mas isso foi apenas o gatilho de uma grande conspiração no qual será o grande pivô.

O QUE TENHO A DIZER...
Quando Orphan Black estreou em 2013, ninguém imaginava que o seriado teria a repercurssão que teve. Obviamente que o que mais chamou a atenção foi o fato da atriz principal ser responsável por representar um número respeitável de protagonistas, o que fez a audiência aumentar em mais de 90% em seu segundo ano, dando sustentação para que a história agora caminhe para sua quinta e última temporada, a estrear no primeiro semestre de 2017.

A história, que tem como enredo principal a clonagem humana, não é uma grande novidade. A novidade é como ela é desenvolvida, além do intenso trabalho técnico por parte da produção, quanto por parte das diferentes caracterizações de Tatiana Maslany, uma atriz que, apesar de um longo currículo, era pouco conhecida até conseguir o papel da heroína Sarah Manning e suas demais irmãs-clone.

Muito parecido com o que J.J. Abrams fez em Alias (2001-2005), talvez este tenha sido o grande "precursor" de Orphan Black, já que Jennifer Garner também interpretou diversos personagens distintos nos mais de cem disfarces e caracterizações que fez parte do cotidiano de Sidney Bristow, uma agente da CIA, sua personagem. Por isso que, por muitas vezes, seja pelo próprio desenvolvimento do enredo e o excesso de relação parental que a história de Orphan Black constrói ao longo dos episódios, chega a ser um tanto impossível não fazer associações saudáveis, conseguindo ser um tanto nostálgico e até matando um pouco a saudade da fórmula que Abrams recriou com sucesso para a televisão em 2001 ao mesclar diversos estilos sem sair do contexto, e que os criadores Graeme Manson e John Fawcett repetem aqui. A grande diferença é que Alias foi muito interessante em suas primeiras temporadas, perdendo o gás e o interesse da audiência conforme se aproximou ao fim, o que não acontece em Orphan, já que os criadores afirmam que, desde o princípio, a série foi desenvolvida para ter um começo, meio e fim, o que sabemos que pode ser apenas uma desculpa para justificar o fim, já que a primeira temporada é muito forte e consistente em comparação com as demais. Seguindo essa lógica, já foi anunciado que a quinta temporada será a última, justamente para impedir que a produção corra o risco de ter seu fim adiado para dar lugar a temporadas sem sentido e que possam enfraquecer o que foi construído até então.

Assim como qualquer seriado que sobrevive além de três temporadas, tem muita linguiça no meio para preencher episódios, que apesar de serem poucos (10 por temporada), por vezes parecem arrastados, o que fez com que subtramas fossem abandonadas de última hora ou enfraquecidas até o total desaparecimento, deixando evidente que não tinham forças para serem sustentadas, como acontece quando introduzem o clone transgênero Tony Sawicki, que sai da história tão rápido como entra, ou das idas e vindas da relação entre Cosima (Tatyana Maslany) e Delphine (Evelyne Brochu), esta última que acabou se transformando em uma personagem-muleta para reviravoltas nas tramas. O mesmo ocorreu com o grupo religioso extremista de Proletheans, que surge como uma grandiosa ameaça, mas tem um desenvolvimento bastante insatisfatório, fazendo da segunda temporada a mais fraca delas e um tanto sem sentido.

Personagens também não escapam de alguns desastres criativos, como acontece com Paul (Dylan Bruce), que nunca teve uma identidade definida, sempre empurrado pra lá e pra cá, sem um objetivo aparente, embora sua conclusão na terceira temporada seja extremamente satisfatória e emocionante. O mesmo com Helena (Tatyana Maslany), a grande vilã da primeira temporada e que acaba passando pela velha "gourmetização" de personalidade, ou seja, tendo momentos de redenção na história para conquistar a empatia da audiência, deixando de ser dramática e densa para ter um apelo mais leve e cômico. Realmente, o que fizeram com Helena foi eficaz e funcinou muito no contexto ao transformá-la em uma anti-heroína, mas a personagem em si, uma das mais complexas e impactantes dentre as "sestras" (como ela chama suas irmãs-clone), acabou sofrendo com isso, aparecendo e desaparecendo na terceira e quarta temporadas apenas para amarrar pontas soltas e concluir situações abruptamente. Há também problemas com o Detetive Art (Kevin Hanchard), o parceiro de Beth, e que vem a se tornar o melhor amigo de Sarah, que poderia ter sido muito mais funcional do que foi, ainda mais com tanto poder da lei nas mãos, havendo momentos que sua existência é simplesmente esquecida.

Absurdos também acontecem para dar aquela falsa impressão de que o roteiro é bem amarrado, como no já citado excesso de relação parental. Essa sensação de que "tudo acontece na família" é um artifício cliché da televisão e só é eficaz para quem faz vista grossa, como aconteceram com excesso em Alias, Heroes, True Blood... apenas para citar alguns que me lembro.

Mas ao mesmo tempo muita coisa funciona, como o núcleo cômico de Alison (Tatyana Maslany) e Donnie (Kristian Bruun), o típico casal suburbano que vive de aparências, mas no fundo guardam segredos sórdidos, como se tivessem saído de Wisteria Lane, do falecido Desperate Housewives. Aliás, Alison consegue ser uma excelente referência a Bree Van de Kamp (Marcia Cross) com suas manias perfecionistas e seus transtornos psicóticos. O mesmo a ser dito sobre Krystal (Tatyana Maslany), uma personagem que entrou um pouco tarde e poderia ter sido melhor aproveitada quando apareceu, pois rende hilários momentos tal qual a breve participação de Adele (Lauren Hammersley), a meia-irmã biológica de Felix (Jordan Gavaris), este o qual acaba se tornando um tanto cansativo pelo excesso de estereótipo e exagerado comportamento gay. Mas para esses detalhes de caracterização há motivos, já que, segundo os próprios criadores, todos os personagens são propositalmente estereotipados para serem facilmente identificáveis.

Apesar de tudo, a grande qualidade da série, como um todo, é não demorar para concluir subtramas. Na primeira temporada tudo parece muito complexo, mas como o roteiro não enrola, nada é confuso, sem dúvida ainda é a melhor temporada até então. Eventos e conclusões que poderiam se estender por temporadas são resolvidos em poucos episódios, dando dinamismo sem cansar. Nas demais a mesma estética é seguida, e mesmo perdendo o fôlego em alguns momentos, são pontuais episódios dramáticos e bastante emotivos os responsáveis por atrair novamente o interesse pela história que é contada, momentos que, para as mais derretidas das manteigas, chorar será inevitável.

Mas nada se compara ao desenvolvimento da personagem principal, a engrenagem-mãe de tudo. É bastante interessante o processo de amadurecimento e transformação de Sarah Manning durante as temporadas que seguem, e como de uma mulher comum e inconsequente, ela se torna uma mãe dedicada, uma investigadora sagaz, uma idealista auspiciosa, uma estrategista de guerra, uma chefe de família responsável, para - enfim - se concluir como uma grandiosa heroína propriamente dita, mesmo que cometendo algumas decisões erradas aqui e ali, o que lhe traz uma dose maior de humanidade. A história faz ela ter esse processo de forma bastante natural e sem forçar a barra, e da primeira temporada, que a vemos como alguém sem qualquer perspectiva e que mal consegue segurar uma arma, chegamos à quarta vendo Sarah como uma mulher madura, determinada e corajosa, de um intenso objetivo altruísta.

Sarah não eh uma personagem perfeita como Alison, tão inteligente quanto Cosima, tão perturbada como Helena, fria e calculista como Rachel, ou superficial como Krystal, mas tem a mesma determinação de Beth, uma de suas irmãs-clone, com quem teve um primeiro e desastroso contato quando esta comete suicídio em sua frente, logo no primeiro episódio.

O egoísmo ambicioso de Sarah, bem como suas decisões impensadas - como roubar a identidade de Beth - tem propósitos, e são justificadas pela infância problemática de 'orfã sem origem' (daí o título da série), de sua relação conturbada com sua mãe adotiva, Siobhan (Maria Doyle Kennedy), além de sua insegurança em oferecer à sua única filha um futuro sem os mesmo traumas psicológicos e as mesmas dificuldades de autoaceitação.

O que parecia algo simples, de repente se transforma em um perigoso jogo conspiratório no qual ela se encontra no meio, e os mistérios que passam a atormentá-la a transformam no pivô das intrigas corporativas e uma ameaça a elas, que tentam há décadas dominar a indústria biogenética ao forçar e controlar uma evolução humana sem precedentes.

Quando Sarah descobre ser parte de um experimento, um dos poucos bem sucedidos por conta de uma evolução natural (mutação genética) que ocorreu no processo, é então que toda a trama toma forma, e a jornada da personagem pela busca de seu passado e a preservação do seu futuro - e de toda uma família que, ironicamente, ela adota - dão início em uma trama científica que, como é de se esperar de qualquer tema complexo, como clonagem, DNA e genomas, tende a se perder com o tempo, mas isso, bem como demais defeitos do seriado, pouco importam perto do interessantíssimo trabalho de Tatyana.

Se Mulheres de Areia (1993) já parecia uma grande coisa no Brasil ao ver Gloria Pires interpretar Ruth e Raquel de maneira tão técnica ao ponto de sabermos identificar quem é quem até mesmo quando vestidas iguais, Tatyana excede qualquer limite, conseguindo o mesmo feito (ou até mais) com a mesma categoria. Testada ao limite pelos próprios criadores que se recusavam a retirar alguma personagem quando uma nova entrava na história, ela já afirmou que o processo era cansativo e desafiador, mas sem dúvida o melhor presente que qualquer ator poderia ganhar.

O maior feito dos roteiristas é que todas as personagens que ela interpreta são muito bem escritas, carismáticas e cativantes, e mesmo havendo um processo de caracterização simples, como cabelo e figurino (que são importantes, mas não essencial), é a interpretação técnica da atriz que se destaca e traz identidade única a cada uma delas, merecendo devido respeito. Cada uma tem sua própria maneira de se expressar, de se comportar e gesticular. Todos os clones que ela interpreta não apenas impressionam pela sua diversidade como também são convincentes ao ponto de simplesmente esquecermos que todas são, de fato, a mesma atriz. Há diversos momentos que realmente acreditamos que essas personagens existem e nos sensibilizamos com seus particulares dramas e conquistas, e vê-las interagir umas com as outras é um espetáculo à parte, tanto pela parte visual, quanto pela mera apreciação de ver Maslany interpretar (ou confrontar) com ela mesma. Sua dedicação a cada uma é tão grande que ela consegue um raro feito de ser amada e adoravelmente odiada ao mesmo tempo até em uma única cena, como quando sentimos o extremo otimismo de Cosima ao mesmo tempo que Rachel envenena o ambiente com sua contida crueldade. Sem falar dos momentos em que uma personagem finge ser outra, e mesmo sem sabermos disso, conseguimos perceber qual delas está sob o disfarce. É uma loucura, e não há limites para a ousadia nesse seriado e para a interpretação da atriz, e é isso que a catapultou a um patamar respeitável.

Não é à toa que a Academia de Televisão foi duramente criticada pelos fãs por não terem indicado a atriz ao Emmy em 2013, causando um verdadeiro quiprocó no Twitter que, segundo a própria atriz, sempre brinca dizendo que foi a maior publicidade que o seriado teve até então, garantindo seu emprego.

Para Tatyana, o primeiro ano de filmagem foi realmente enlouquecedor porque ela se cobrava demais, chegando ao ponto de confundir as personagens durante as filmagens, o que levou a equipe a contratar uma pessoa específica para fazer anotações e observações sobre cada uma das caracterizações, evitando assim que, se por exemplo, uma personagem tivesse uma maneira de apoiar seu braço na cintura, ela não corresse o risco de repetir o mesmo trejeito com as outras. Ela também tem um orientador vocal, que a assessora nos diferentes sotaques que usa e na identidade vocal de cada personagem, já que cada uma tem entonação, pausa e variações de fala distintas. Enfim, o processo de criação individual das personagens é tecnicamente impecável, e impressiona pela veracidade como ela transmite isso. Por essas e outras que ela ter recebido o Emmy de melhor atriz neste ano foi tão comemorado. Na verdade, como brincou o apresentador Jimmy Fallon no ano passado, Maslany deveria ter uma categoria apenas para ela.

Uma grande pena é não termos a oportunidade de saber mais sobre o passado de cada uma das personagens além do superficial, mas talvez seja melhor assim, ou talvez isso venha a acontecer na última temporada, ou talvez isso nunca aconteça. De qualquer forma, Orphan Black é um seriado diferenciado pela sua ousadia e qualquer excesso de elogio a Maslany realmente é pouco.

CONCLUSÃO...
Obviamente que Orphan Black não foge de defeitos e tem belas escorregadas ao longo dessas quatro temporadas, mas a história pouco importa perto do trabalho desempenhado pela atriz e pelas personagens que, sem excessão, são muito bem desenvolvidas e carismáticas, como se cada uma delas fosse interpretada por alguém diferente. A trama está em sua reta final, e 2017 terá sua última temporada. Aguardaremos para saber se o fim será satisfatório.
Add to Flipboard Magazine.