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terça-feira, 30 de junho de 2015

AGORA SÃO ELAS...

★★★★★★★★
Título: Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road)
Ano: 2015
Gênero: Ação, Ficção
Classificação: 16 anos
Direção: George Miller
Elenco: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Hugh Keays-Byrne
País: Austrália, Estados Unidos
Duração: 120 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Max está de volta, e tão enraivecido como antes, mas agora para ajudar um grupo de mulheres que de frágil elas tem nada.

O QUE TENHO A DIZER...
Antes de existir Velozes e Furiosos, Jogos Vorazes, Divergente, Maze Runner e qualquer outra história que envolva vinganças ou um mundo distópico, consumidos como água nos cinemas pelos adolescentes, existiu Mad Max, que era consumido por adolescentes e adultos em uma época que o cinema de ação sujo e pesado não tinha medo de ousar e ir sempre um pouco mais além dos limites.

Tanto que 1979 o cinema comercial australiano se destacou no mundo com o primeiro filme da série contando a história de Max Rockatansky, um oficial que trabalhava pela paz e justiça, mas de repente se vê tomado pelo ódio e vingança após sua família ser assassinada pelas gangues que ele perseguia. Max se transformou no símbolo da frieza, da fúria e do sangue que escorria dos olhos, um errante solitário que, com nada a perder, jogou sua vida na roleta da sorte enquanto se embrama em situações suicidas na busca de sua paz interior e humanidade de volta.

É... até parece um monte de baboseira, mas o que realmente chamou a atenção foi como George Miller, autor e diretor de toda a série, construiu o universo baseado na força motriz da violência, que é o poder acima de qualquer coisa, e fazê-lo de maneira supreendente através de simbologias e linguagem própria. Mad Max é em plena Terra o que Guerra nas Estrelas é no espaço, ou seja, um épico de ficção que construiu um universo de vida própria.

O herói é um daqueles icônicos personagens que tem uma personalidade tão marcante que é como se ele realmente existisse. O fato de ter um passado traumático que o fez se jogar no mundo, sem rumo e sem destino, ajudando pessoas que acabam cruzando seu caminho, dá liberdade para que ele seja inserido em qualquer situação. Seja cinco anos depois da história original para ajudar os habitantes que sofrem com as guerras em meio à crise energética do segundo filme, ou quinze anos depois para ajudar a comunidade jovem do terceiro filme enquanto tenta, em meio a tudo, o respeito de Bartertown. Ou seja, Max é o Chuck Norris de Miller, e ele se dará bem seja fazendo uma torta, seja em uma briga de foice no escuro.

A quarta continuação da série esteve em um inferno de decisões por anos. Sinal verde era dado, projeto era engavetado. O projeto voltava em pauta, engavetavam de novo. E isso desde 1998. O atentado de 11 de Setembro, problemas com o orçamento, as polêmicas envolvendo Mel Gibson, a Guerra do Iraque, tudo isso foi razão para esse vai e vem da produção que, por fim, foi abandonada.

Em 2010 as coisas finalmente engatilharam, e a produção teve início em 2011. Mel Gibson foi trocado por Tom Hardy e Charlize Theron foi incluída no elenco para trazer força e renovar o interesse, mas tudo sempre mantido em segredo. As filmagens terminaram em 2012, mas algumas cenas precisaram ser refeitas em 2013, e só agora o filme foi lançado.

Embarcando na atual onda das franquias que pararam no tempo, esse novo filme é um reboot ao mesmo tempo que também é uma continuação direta ao primeiro filme, logo após Max perder sua família. Mas não é especificado a ordem cronológica dos fatos além disso justamente para dar liberdade para que esse universo pudesse ser ampliado sem limitações para futuras continuações, o que já foi confirmado pelo próprio Miller que afirmou ter outras duas histórias prontas e que manterão Hardy como protagonista.

Não é necessário ter assistido nenhum dos filmes anteriores para compreender ou se interessar por esse, muito embora (re)assistir o primeiro é interessante para compreender melhor de onde vem a personalidade bruta e solitária do protagonista, além das referências visuais pós apocalipticas que são bastante utilizadas aqui. Mas é sempre bom e interessante saber e ver de onde tudo veio, principalmente aqueles que acharem que é simplesmente mais um filme de ação violento qualquer.

O filme já começa de forma um tanto nostálgica nos créditos iniciais com as fontes em vermelho que destacam os nomes dos protagonistas, parecido como era antigamente. Logo em seguida notamos a reestilização da série com a fotografia saturada para detalhar a beleza das paisagens inóspitas e os contrastes entre tons mais frios e quentes, aumentando bastante a sensação quente, seca e desértica, ao ponto de dar muita sede em quem assiste. Se trata de um filme atual, com linguagem visual moderna, dinâmica e expressiva, mas a intenção de ser quase um "western sobre rodas", como o próprio Miller descreve, é bastante óbvia por conta da rustidez dos personagens, da poeira que chega a fazer o olhos lacremejarem, da hostilidade do ambiente que Max está, e da luta pela sobrevivência ser uma filosofia de vida.

O ambiente árido de sempre, de um futuro esgotado de água e reservas energéticas, a clássica jaqueta, o Pursuit Special (seu carro original), os vilões mascarados, armaduras e equipamentos biomecânicos que se misturam entre tecnologias arcaicas e modernas, veículos estilizados, com improvisadas adaptações em cima de equipamentos saqueados pelas gangues, explosões, sangue e areia... tudo isso é o Universo visual único de Mad Max que funciona e impressiona do começo ao fim. É incômodo, e foi feito para ser, tal qual os anteriores. É um tipo de ação hiper realista que o cinema esqueceu como se faz, e da mesma forma esqueceram as pessoas de como ele é.

Tudo já começa tão intenso que 60 minutos se passam e a impressão que se tem é que o filme ainda está em sua sequência inicial. Boa parte dela quem comanda é Furiosa, enquanto Max está acorrentado em um carro como um parachoque humano.

Mas vale dizer que, embora o título leve seu nome, Max na verdade é um coadjuvante, e a personagem de Charlize é tanto quem participa mais ativamente na história como também quem rouba as cenas, funcionando como mais uma inclusão feminina importante na série tanto quanto Tina Turner foi no terceiro episódio. Furiosa se engrandece tanto no filme que só sabemos que Max existe porque o título do filme tem seu nome, e isso não é ruim porque faz parte da expansão desse mundo pós apocaliptico, além de incluir no cinema mais uma heroína no hall das mulheres fodas que qualquer homem pode ter medo, justamente numa época em que elas questionam com muita razão suas participações em filmes de gênero (considerados) "masculinos", como são os de ação violentos como essa série.

Isso não vira mérito apenas de Furiosa, mas das outras personagens também, como o grupo que a protagonista defende, de belas mulheres que parecem tiradas da grécia antiga. Isso pareceria cliché sexista, já que existiriam para agradar o público masculino, mas a situação fica bastante engraçada quando eles (incluindo os espectadores) são facilmente manipulados pela imagem frágil que elas passam. Também é interessante quando aparece uma jovem indefesa gritando por socorro e aparecem seus capangas no momento em Furiosa se aproxima dela, cena memorável.

Esse jogo em cima de clichés sexistas é muito forte, feito de forma sutil e inteligente, que não queima sutiã algum, única e simplesmente mostra que fragilidade não existe quando não se quer ter.

Miller não poupa na violência e nem no "politicamente incorreto" pra deixar o filme mais "leve", pelo contrário... ele mantém forte o renascimento do ozploitation que ocorreu na Austrália nos anos 70, em que filmes sangrentos foram produzidos em massa após a adesão das classificações etárias no país. O diretor coloca grávidas e idosas apanhando em cena e até uma sequência com um feto que vai fazer muita mãe chocada desistir e achar o filme de mau gosto. Pois é... Assim como o universo de Frozen é lindo, fofo e mágico, o de Max é um verdadeiro inferno, e ele fala algo equivalente a isso logo no começo. Por isso sua classificação etária é 16 anos.

As cenas de ação se desenvolvem muito bem. São exageradas, bem feitas, dentro dos níveis aceitáveis do absurdo, só que o desenvolvimento da história deixa a desejar. Por vezes chega a ser superfical demais, e muitas das coisas que não são explicadas se transformam em uma certa "mitologia" dentro do mundo de Max que não dá pra entender bem porque está lá. Isso atrapalha? Não. Até porque se tivessem explicado detalhadamente qualquer pormenor, ele deixaria de ser esse filme de estrada sem estrada que só faz você respirar por um momento. Tempo necessário pra levantar e ir ao banheiro, se você não quiser pausar.

Mais do que um filme de ação, o novo filme da franquia inflama alguns orgulhos machistas masculinos que ironicamente dão aquilo que os americanos chamam de U Turn na situação, e agora o protagonista tem de entregar o rifle para a mulher da história porque, das três balas, conseguiu errar dois tiros.

Muito bem mandado Miller.

CONCLUSÃO...
Para os homems amantes de violenta ação, Max está de volta. Para as mulheres que acompanham os homens amantes de violenta ação, Max está muito bem acompanhado, e ela rouba o filme dele.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

GÊNERO E ORIENTAÇÃO...

★★★★★★
Título: Uma Nova Amiga (Une Nouvelle Amie)
Ano: 2014
Gênero: Comédia, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: François Ozon
Elenco: Romain Duris, Anaïs Demoustier, Raphaël Personnaz, Isild Le Besco
País: França
Duração: 108

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma mulher descobre segredos do marido de sua melhor amiga, a qual faleceu recentemente.

O QUE TENHO A DIZER...
É importante começar dizendo que o filme não é um suspense, como tem sido promovido. O trailer erroneamente chega a informar que há um leve hitchockianismo na história, o que está longe de ser verdade. O trailer constrói essa atmosfera um tanto Brian De Palma em Dublê de Corpo (Body Double, 1984) para vender um assunto delicado e bastante subversivo, o que não aconteceria com facilidade se feito de maneira convencional e dentro do que o filme realmente propõe.

A história é sobre Claire (Anaïs Demoustier) que perde sua grande amiga de infância, Laura (Isild Le Besco), deixando seu marido, David (Romain Duris), e uma criança. É difícil para Claire aceitar a morte de Laura, pois foram inseparáveis durante toda sua vida. Rever David a faz relembrar com nostalgia da perda, o que é sempre doloroso, e por isso se mantém distante. Em um belo dia, para compensar seu relapso, resolve fazer uma visita surpresa a David e sua filha. Mas é ela quem fica supreendida ao vê-lo vestido de mulher.

Então o grande segredo do filme é esse, David é um cross dresser. E isso não é uma revelação que realmente estrague qualquer surpresa, porque esse suspense é algo que apenas o material promocional cria sem fundamento.

Em um tempo em que a mídia tem dado muita atenção a personalidades que tem assumido publicamente suas identidades e seus gêneros (como no Brasil, com o cartunista Laerte, ou nos Estados Unidos, com o ex-atleta Bruce Jenner/Caitlyn Jenner), esse filme consegue abordar o tema de forma bastante correta, e ousado por discutir sobre as diferenças entre fetiche, gênero e orientação sem pieguices.

No momento em que Claire descobre "o grande segredo" de David, o mesmo acredita ter apenas o fetiche em se caracterizar de mulher, o que o definiria unicamente como um cross dresser. Porém o desenvolvimento do personagem mostra sua grande realização quando caracterizado e até sua vontade de mudar de cidade para iniciar uma nova vida como Virginia, seu alter ego batizado pela própria Claire. Isso coloca em dúvida se o que o personagem tem realmente é um fetiche ou um conflito de gênero, que é uma pessoa não se sentir como fisicamente o sexo a define. Isso não afeta a sua heterossexualidade, tanto que o personagem mesmo afirma nunca ter tido relações com nenhum homem pois não sente atração pelo mesmo sexo. É quando a discussão sobre a orientação e o fetiche se foca em Claire, que mostra possuir uma certa bissexualidade com uma tendência bastante forte ao lesbianismo e até um certo prazer sexual no cross dressing em momentos muito importantes do filme, como quando passa o batom em seu marido e diz achar sexy, quando está na boate, ou quando efetivamente há um contato mais sexual entre ela e Virgínia.

Essa miscelânea de diferentes situações, sensações, prazeres, fetiches e identidades pode deixar muita gente confusa e incômoda. Mas mais do que o espectador, são os personagens quem ficam por eles também não saberem lidar com tudo isso dentro do contexto sociocultural que estão inseridos, e as informações vão encontrando seus lugares à medida que eles colocam seus preconceitos de lado e se abrem para conhecerem aquilo que até então desconheciam. Descobrem, então, que nada é diferente além dos sentimentos e da essência de cada um, que tudo era simplesmente um bloqueio definido pela própria cultura social ortodoxa e conservadora que impedem as aceitações e a evolução social.

O filme é baseado no livro The New Girlfriend, da inglesa Ruth Rendell, originalmente publicado em 1985. A adaptação francesa, escrita e dirigida por François Ozon, consegue abordar essas complexidades de maneira bastante discreta, sem apelar nas caricaturas, tanto que os próprios personagens se desenvolvem de forma a evitar isso, como na evolução que Virginia tem no seu estilo e comportamento no decorrer da história. Não chega a ter uma sutileza de Almodóvar, sendo uma dramédia que não pende em demasia para nenhum dos lados, faltando uma essência que realmente nos faça apaixonar pela história. Até a fotografia, que nos primeiros minutos chega a ser deslumbrante em enquadramentos perfeitos, deixa a desejar depois disso. Mas ainda sim é um belo material que aborda temas incomuns com bastante articulação e honestidade, e força o espectador a se livrar de preconceitos para compreender a existência dessas diferenças que devem ser respeitadas da mesma forma que respeitamos aquilo que conhecemos.

CONCLUSÃO...
François Ozon foi corajoso ao abordar tantas complexidades sexuais e de identidade de forma até pragmática, mas ao mesmo tempo sofre ao direcionar o filme entre a comédia e o drama, não oferecendo com efetividade nenhum dos dois. Nem por isso chega a ser um filme superficial, mas falta uma essência evolutiva, um crescente que realmente mantenha desperto o interesse por ele ou pelos personagens. Mas as discussões propostas são relevantes e bastante atuais, propondo pontos de vista diferentes do que aqueles que temos do nosso cotidiano.

domingo, 28 de junho de 2015

O QUE ACONTECEU?

★★★★★★★★
Título: What Happened, Miss Simone?
Ano: 2015
Gênero: Documentário, Biografia
Classificação: 12 anos
Direção: Liz Garbus
País: Estados Unidos
Duração: 101 min.

SOBRE O QUE É O DOCUMENTÁRIO?
Nina Simone sempre teve uma história conturbada de fama, sucesso, polêmicas, ativismo, decadência, retiro e ressurgimento. Foi a voz de um povo, e usou seu sucesso para isso, até que ele se voltou contra ela.

O QUE TENHO A DIZER...
Definitivamente, para compreender a arte de Nina Simone é necessário conhecer sua história. E é isso que este documentário lançado na Netflix no dia 26 de Junho faz com êxito, de forma bastante surpreendente e emocionante.

O arquivo videográfico é vasto, ao ponto de utilizarem Miss Simone como a própria narradora de sua história através de entrevistas antológicas resgatadas, inseridas em imagens que registraram todas suas mais importantes fases, incluindo sua infância. E os depoimentos de sua filha, de seu ex-marido (através de registros, já que faleceu em 2012), bem como de seus amigos ainda vivos, servem para complementar aquilo que apenas especulava-se sobre sua persona. Se Nina não tivesse morrido, era bem possível acreditar que o documentário havia sido produzido com sua consulta, de tão latente que é sua presença. A artista é a grande estrela de todo o documentário, não pelo óbvio motivo de ser um material sobre ela, mas porque sua biografia é montada de maneira intimista, por pontos de vista pessoais que esclarecem uma personalidade complexa e temperamental, mas ainda coerente dentro de suas experiências e percepções, responsáveis por toda sua sólida expressão artística.

"Eu escolhi refletir o tempo e as situações em que me encontro. Para mim, essa é minha obrigação. E nesse momento crucial da nossa vida, quando tudo é tão desesperador, quando todo dia é uma batalha pela sobrevivência, não tem como não se envolver."

Ao contrário de ser um material que questione sua personalidade ou as diferentes condutas contraventoras que teve durante as décadas de 60 e 70, o documentário apenas afirma o posicionamento que ela teve sobre a arte e sua importância na sociedade, e como isso foi importante e ao mesmo tempo autodestrutivo para sua carreira e vida pessoal. O palco para Nina era o lugar onde ela não tinha medo, e para ela, por definição, "não ter medo é se sentir livre". Essa falta de medo, o excesso de liberdade, era sentido nas notas e nos dedos que voavam sobre o piano com precisão clássica, mas sem sê-lo.

Nina foi ter uma percepção muito tardia das diferenças raciais e o abuso sofrido pelos negros por ter crescido em uma comunidade onde não se falava sobre isso. Seu questionamento sobre as diferenças raciais e sociais só foi acontecer depois dos 20 anos de idade, quando foi recusada por um conservatório na Filadélfia sem nenhum motivo óbvio, já que sua audição para uma vaga havia sido elogiada, e isso a fez acreditar que a razão principal era sua cor. Posteriormente a isso ela se mudou para Nova York, onde pagou seus estudos ganhando US$90 por noite em um bar. O dono do estabelecimento obrigou que ela também cantasse caso quisesse manter o emprego, algo que ela também nunca tinha feito até então. Por conta deste trabalho, adotou seu nome artístico, e não demorou para que a voz de contralto, junto com o tom clássico introduzido nas músicas que performava, chamasse a atenção de clientes que se tornaram uma base sólida de fãs.

A partir de então sua carreira teve uma ascenção muito rápida, principalmente depois do casamento com Andrew Straud, que também foi seu empresário. O rápido sucesso a deixou financeiramente estável em um curto espaço de tempo, o que contribuiu para que não sofresse tantas consequências negativas por ser negra e mulher na década de 60.

Mas então, o que aconteceu, Miss Simone?

A constante pressão sofrida por seu marido e empresário começaram a fazer Nina perder as razões e motivos de ser uma artista. Os discos eram gravados em cima de repertórios montados pela própria gravadora, e seu trabalho começou a tomar um rumo comercial demais do que aquilo que ela almejava. A estafa se transformou em depressão, fazendo-a perder o interesse e consequentemente a razão de fazer música. Também sofria violência doméstica, abafada por ela mesma. Sempre acreditava que depois da última surra tudo seria diferente, e pensava assim por amor ao seu marido. Mas nada mudava, ao ponto de ela mesma acreditar que gostava disso.

Foi com o movimento dos direitos civis, de 1964 até 1974, que a grande reviravolta em sua carreira aconteceu. A falta de objetivos a fez encontrar nele não apenas algo que pudesse fazer parte, mas co também abriu seus olhos para o mundo e para o que as pessoas de sua raça passavam. Ela canalizou todos seus esforços nisso, como que para compensar o vazio que a consumiu no passar dos anos.

"Como ser artista e não refletir uma época? Para mim, os negros são as criaturas mais lindas do mundo. Então, minha função é torná-los mais curiosos sobre suas origens, suas identidades e se orgulharem disso. É por isso que tento fazer minhas canções as mais fortes possível, principalmente para fazer os negros terem curiosidade em si mesmos."

Seus repertórios sempre foram cheios de referências ao amor, à cultura afro americana e cantigas espirituais ou folclóricas que ouvia quando criança, herdadas de seus antepassados. No decorrer de sua carreira temas feministas também entraram no repertório, e foi com o engajamento no ativismo social que as raízes africanas se aprofundaram para confrontar aqueles que se opunham aos direitos civis igualitários, e trazer o interesse de seu próprio povo à sua cultura.

"Eu sempre acreditei que abalava as pessoas, mas agora quero investir mais nisso. Quero fazer de modo mais deliberado e frio. Quero abalar tanto as pessoas que quando saírem de onde eu tiver apresentado, eu só quero que elas estejam em pedaços. Quero entrar nesse covil das pessoas elegantes, com suas idéias velhas, presunçosas, e enlouquecê-las."

Após o assassinato do ativista Medgar Wiley Evers e do atentado à bomba em Birmingham, que matou quatro crianças negras, Nina respondeu a isso com a música Mississipi Goddamn, lançada em 1964. A música teve péssima repercussão na mídia, sendo boicotada pelas principais rádios norte-americanas que enviavam os LPs quebrados ao endereço da artista em resposta ao "péssimo gosto", já que a mesma ironizava pesadamente a forma como os negros eram tratados no Mississipi, um dos últimos estados a adotar leis igualitárias no Estados Unidos. A música veio a ser um grito libertário do movimento, bem como To Be Young, Gifted and Black, feita em homenagem a sua amiga e ativista Lorraine Hansberry, se transformou em um hino. E nada a impediu de participar de diversos encontros, incluindo sua participação na marcha de Selma a Montgomery, liderada por Luther King, em 1965.

Miss Simone fez de sua música uma arma, e da sua influência e imagem ferramentas para expressar ideais e reforçar a cultura negra. Do palco ela fez um palanque e descobriu que sua voz podia representar o grito de seu povo. Ao contrário do que o movimento pacífico liderado por Luther King promovia, ela acreditava que atos violentos deveriam ser combatidos da mesma forma, além de ser a favor de um estado separatista. O documentário, bem como os registros, mostram isso muito bem e de forma bastante clara.

"Era arrebatador participar daquele movimento naquela época porque eu era necessária. Eu podia cantar para ajudar meu povo, e esse virou o esteio da minha vida. Nem piano clássico, nem música classica ou mesmo música popular, mas a música dos direitos civis. Pude conhecer Martin Luther King, Malcom X, Andrew Young, e artistas, atores, atrizes, poetas, escritores, pessoas como eu que se sentiam compelidas a tomar uma posição como a minha."

Não demorou muito para que a cantora passasse a ser boicotada. E mesmo vendendo muitos álbuns, ninguém mais queria contratar seus shows no medo deles se tornarem discursos sociopolíticos. O público não queria isso, até mesmo porque Nina possuia muitos fãs brancos. A indústria fonográfica tentou manipular a situação como podia, aliviando o tema nos repertórios, embora em alguns álbuns eles ainda se mantiveram fortes, como em High Priestess Of Soul (1967), Silk & Soul (1967), Nuff Said! (1968) e Black Gold (1970), mas essas informações não estão no filme, o que é uma pena para quem não conhece suas músicas.

Cansada dos maus tratos sofridos pelo marido, da violência que seu povo sofria nas ruas diariamente, do seu constante desgosto frente a política de seu país, e após a morte de diversos líderes ativistas e amigos, incluindo o próprio Luther King, Nina se exilou em Barbados, onde, convencida por Miriam Makeba, se mudou para a Libéria e lá viveu em reclusão por 8 anos.

Uma pena que o documentário tomou uma narrativa que leva a crer que toda sua trajetória tenha sido baseada apenas no ativismo sobre os direitos civis, quando Simone também se tornou uma figura feminista bastante forte. Nina também confrontou o Governo norte americano ao se recusar a pagar os impostos em protesto à guerra do Vietnã, gravando o álbum Emergency Ward! (1972) em resposta a isso. Seu auto exílio em Barbados foi para evitar os processos e a eventual prisão por conta do boicote aos impostos. O período em que viveu nesse país, o caso que teve com o primeiro ministro Errol Barrow e sua amizade com Miriam Makeba também nem foram citados, como se a artista tivesse feito uma ponte direta dos Estados Unidos para a Libéria. Ao contrário do que o filme dá a entender, Nina continuou fazendo pequenos shows pela Europa durante o tempo que morou na Suíça e na França, ao invés de simplesmente desaparecer do cenário. Essa superficialidade nos últimos 15 minutos sobre sua última década de vida infelizmente só faz com que o documentário termine em uma narrativa linear, aliviando e omitindo atitudes da artista como que poupar tempo e a audiência de uma personalidade tão forte como a dela, que chegou a dar um tiro em um empresário da indústria fonográfica pelo roubo de milhões de dólares em royalties de suas músicas. "Tentei matá-lo, mas errei", como ela mesma chegou a afirmar.

Sabe-se que Nina Simone fez diversas e memoráveis apresentações pelo mundo depois que iniciou seu tratamento contra a depressão e bipolaridade, e isso não apenas trouxe consequências positivas no controle dos disturbios como também foi uma das fases mais libertadoras da artista, quando a raiva já estava controlada e a música voltou a ser um prazer. Até mesmo sua receptividade com o público chamou a atenção de diversas pessoas que tinham conhecimento de seus rompantes nervosos e intolerância, e de um humor que aos poucos retornou à sua forma antes de todo o caos ter início. Não teria sido nada mal se o documentário tivesse mostrado um pouco mais disso.

Considerada uma das maiores e mais polêmicas artistas do mundo, Nina é mais do que uma diva do Jazz, ou do Soul, até porque ela nunca se limitou a esses estilos, mas uma mulher que acreditou na sua voz e que seu trabalho tinha relevância social. Para ela, a função do artista é ter uma causa que acredite, e trabalhar por ela. Quando sua filha diz que sua mãe é uma das maiores performers que o mundo já conheceu, ela não mente sobre isso. O dom que Nina tinha em transformar a sua voz em um instrumento de emoções é algo que impacta até mesmo quem não conhece sua história ou suas músicas. A facilidade nata em atingir os sentimentos mais finos ao ponto de imergir o ouvinte em sua música sem ele perceber é o que faz qualquer pessoa parar para ouví-la, onde quer que esteja tocando. 

Desde suas canções românticas, de apelo feminista, até as ativistas que explicitavam as diferenças e dificuldades raciais, como quando canta Mississipi Godamn no Festival de Musica de Westbury três dias depois da morte de Luther King, com a voz desbotada, engasgada pela dor da morte do "Rei do Amor" (como ela o chamava), são todas performances memoráveis e inesquecíveis de uma artista que, mais do que o racismo ou o machismo, ela sofreu por cantar alto demais aquilo que as pessoas evitavam ouvir.

CONCLUSÃO...
Talvez o único material sobre a artista a colocá-la literalmente no centro da história, tendo ela mesma como a própria narradora em uma articulação muito bem feita entre o vasto arquivo de imagem e som. Episódios que ligam melhor as histórias, principalmente no período em que deixou os Estados Unidos para se exilar em Barbados antes de buscar a reclusão na Libéria, também foram fatos importantes na trajetória, mas que não foram sequer citados, o que dá uma impressão bastante superficial de sua vida durante os anos que viveu na África. Isso deixa a narrativa mais linear e fácil, mas ao mesmo tempo poupa o espectador de maiores detalhes. Mesmo assim consegue ser um material consistente e emocionante sobre uma das maiores vozes da história, e uma excelente introdução à sua história para aqueles que pouco (ou nada) sabiam sobre ela.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

RETROSPECTIVA: THE WALKING DEAD

★★★★★★★
Título: The Walking Dead
Ano: 2010
Gênero: Drama, Horror, Suspense, Ação
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Andrew Lincoln, Chandler Riggs, Steven Yeun, Norman Reedus, Melissa McBride, Lauren Cohan, Danai Gurira
País: Estados Unidos
Duração: 47 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Um policial acorda de um coma e vê o mundo em completo caos. Tudo está diferente de como ele lembrava, incluindo sua própria família e ele mesmo. Agora ele terá que sobreviver no meio de uma guerra que não parece ter fim, e quanto mais se buscam soluções, mais difícil e inóspito o mundo se torna.

O QUE TENHO A DIZER...
Há alguns meses antes da estréia da sexta temporada, achei interessante fazer uma retrospectiva.

Lançada em 2010 e criada por Frank Darabont, é baseada em uma série gráfica homônima criada por Robert Kirkman e ilustrada por Tony Moore, publicada originalmente em 2003.

A primeira temporada foi limitada a apenas seis episódios para testar a audiência, discreta e dentro dos 5 milhões de pessoas. Número aceitável para garantir os treze episódios da segunda temporada que superou as expectativas da primeira. E o mesmo aconteceu nas temporadas seguintes, que agora possuem 16 episódios.

Com o espantoso e recorrente aumento da audiência, a quinta temporada chegou ao impressionante número de 17 milhões de pessoas, um recorde absoluto na história dos canais à cabo e que definitivamente posicionou a série no topo das produções mais comentadas no mundo, o que tem garantido sua renovação ano após ano, ao ponto de David Alpert, produtor executivo, afirmar que já sabem que rumos dar às temporadas 11 e 12, caso tenham a sorte de chegar lá.

Que a adaptação desbravou o horror na televisão, isso é verdade. Tanto que, após sua consolidação, diversas outras emissoras investiram no gênero, mas é ingenuidade acreditar que o material seja original, tanto da adaptação, quanto do material gráfico. Ambos bebem de fontes já conhecidas do cinema, como a Hexologia dos Mortos, de George Romero, ou dos filmes Extermínio (28 Days Later, 2002), de Danny Boyle, e sua continuação muito bem sucedida e elogiada, dirigida por Juan Carlos Fresnadillo. Tanto é assim que Danny Boyle ainda cogita na possibilidade de uma terceira continuação, mas evita falar sobre isso pois tem medo do seriado utilizar qualquer idéia que escape, já que fazem isso o tempo todo.

A história de Rick Grimes, que acorda de um coma em meio a uma pandemia, não é nova. Qualquer semelhança com Extermínio, não é mera coincidência. A diferença é que no filme de Boyle não são zumbis, mas pessoas contaminadas com um tipo de raiva humana.

Rick é um policial casado com Lori, com quem tem um filho chamado Carl, uma criança que se espelha totalmente em seu pai ao mesmo tempo que se conflita com ele, numa relação mais freudiana e previsível possível. Há até uma tentativa de Carl em cometer um fatricídio, mas que felizmente não se concretiza, pois é esse o gancho dramático que tem que existir entre eles. Assim como o eixo dramático com Lori será a relação paralela que ela tem com Shane, o melhor amigo de Rick.

Carl vê em seu pai o exemplo de herói invencível e absoluto por conta de símbolos que ele carrega, como o chapéu, a estrela do distintivo e a arma, objetos que representam com bastante força a seriedade, o senso de justiça, a autoridade e o poder não apenas em Rick como um policial, mas também como figura paterna. Rick, por sua vez, se esforça para passar essa imagem segura a sua família. Por conta disso, Carl irá se conflitar constantemente com Rick porque tentará a todo momento prová-lo de que também consegue ser tudo isso, naquele constante esforço infantil de realizar atitudes grandiosas e ser reconhecido por elas. Por serem atitudes prematuras e inexperientes, muitas vezes colocam a vida de sua família, além da sua própria, em risco, gerando mais motivos para repreensões do que orgulho. Junta-se a isso o ambiente hostil e ameaçador, e Carl desenvolve no decorrer das temporadas uma personalidade mais fria e violenta, com leves traços de uma psicopatia que não sabemos se será desenvolvida pelos roteiristas, já que é um tema bastante complexo e que foi abordado com muita rapidez em uma personagem na quarta temporada, durante a fuga de Carol e Tyreese da Prisão.

Em torno disso há os personagens coadjuvantes que servem para dar consistência em uma história que não poderia simplesmente acontecer em torno de uma família. E durante a peregrinação de Atlanta para Georgia, Rick conhecerá dezenas de pessoas, das quais algumas se tornarão aliadas imprescindíveis para derrotar a extensa lista de inimigos que ele colecionará durante sua jornada de sobrevivência.

Muitos personagens entram e saem da história, às vezes, de maneira bastante aleatória. Alguns a morte já estava prevista na série gráfica, mas os roteiristas passaram a utilizar esse elemento com muita frequencia para dar espaço a personagens novos na errônea idéia de que renovar a série é trocar constantemente o elenco, mesmo que os dramas se repitam.

E repetem muito.

Essa recorrente substituição de personagens deixa de ser um fator surpresa para se transformar em algo previsível e por vezes revoltante, porque quando esses personagens passam a ganhar uma maior densidade, eles são retirados da história sem grandes justificativas. Portanto, quando personagens novos são apresentados, pode ter certeza de que alguns que já estavam na história irão desaparecer por algum motivo. Essa previsibilidade é, talvez, um dos pontos mais negativos.

No filme Extermínio 2 (28 Weeks Later, 2007), a história é construída de forma a criar empatias do espectador com personagens que morrem prematuramente na história e efetivamente nos dão a mesma sensação de perda e desespero que os protagonistas sentem, e que não há possibilidades para o fortalecimento de laços frente aos perigos constantes e da imprevisibilidade da perda. Mas em Walking Dead, ao invés das mortes causarem este impacto dramático, elas passam a clara oportunidade da produção em liberar espaço no elenco para que o orçamento não estoure e os roteiristas consigam articular tramas mais facilmente. Essa situação é ainda mais feia com os personagens negros que, até a terceira temporada, sempre foram poucos e mal chegavam aos 10% do elenco. Quando um personagem negro era apresentado, era certo de que algum dos únicos dois que já estavam presentes na trama iria morrer. Foi uma situação tão feia que talvez seja por isso que, a partir da quarta temporada, o número de personagens negros aumentou consideravelmente. Mas ainda sim essas substituições são bem óbvias, como acontece também na quinta temporada, em que personagens morreram de forma até absurda simplesmente porque não tinham mais onde serem encaixados.

Como um todo, os personagens principais (ou que se tornaram principais no decorrer das temporadas) sempre agradam mais alguns do que outros, mas é bastante óbvio que Rick perdeu com o tempo seu senso de justiça e liderança, se tornando um personagem irritante, egocêntrico e paranóico por conta de tantas contradições entre aquilo que diz e aquilo que faz, principalmente sobre decisões extremas. Como é dito na quinta temporada, ele é um personagem que se importa com seus colegas, mas sempre coloca a vida deles em risco. Rick tem surtos e toma decisões erradas. Está tudo bem ele decidir matar alguns prisioneiros que ele desconhece numa atitude preventiva, mas ele friamente condena Carol quando esta tem uma atitude preventiva muito mais importante durante o surto de gripe na quarta temporada. Aliás, uma das reviravoltas dramáticas mais desnecessárias que o seriado teve, que não somente serviu para justificar um sumiço temporário da personagem para focarem em outras subtramas, mas também para desafogar o excesso de elenco, porque se o número de personagens aumenta drasticamente, um massacre na história é bem vindo.

Depois que a morte de mais da metade do elenco (recorrentes ou de apoio) foi justificada pela doença, o surto de gripe saiu da trama da mesma forma como entrou, e nunca mais falaram sobre isso.

Em contraponto, personagens que começaram fracos, como a prória Carol, ou aqueles que causavam desconfiança e desconforto, como Daryl e Michonne, se transformaram nos mais fortes e melhores construídos. Uma pena que Andrea teve um arco dramático muito mal desenvolvido na terceira temporada, e a sua relação com o Governador chegou a ser fraca, beirando o ridículo. Não foi nada convincente vê-la voltar para os braços do vilão mesmo depois de descobrir todo o lado perverso dele, ou simplesmente não encontrar uma forma de fugir de Woodbury e efetivamente ajudar seu grupo na Prisão. A personagem foi completamente destruída por grandes erros do roteiro quando ela era uma das que mais poderiam ter se destacado no futuro tanto quanto se destacou na segunda temporada.

Mas felizmente Daryl e Michonne conseguiram despertar uma empatia tão forte que se algum deles for morto em alguma temporada futura, será o suicídio do seriado. O trabalho desenvolvido pela atriz Danai Gurira é excepcional, e a lenta descoberta de seu passado doloroso causa a mesma sensação de surpresa e compaixão que é tida pelos personagens. O relacionamento que ela desenvolve com Carl e o vínculo de fidelidade que ela cria com Rick são verdadeiros, e não há melhores momentos do que aqueles em que ela dialoga ou está feliz, raras situações que quebram completamente sua imagem pesada, muda e solitária, onde podemos ver que embaixo de várias camadas emocionais fortes que a protegem da dura realidade que enfrenta, há uma pessoa bastante solidária, fiel, delicada e até mesmo engraçada. É sempre emocionante vê-la em situações de impactos mistos, pois a atriz consegue elaborar toda essa complexa construção sem exageros ou apelo cliché. E Daryl, interpretado por Norman Reedus, se sucede da mesma forma, embora o conflito que ele tenha seja maior com ele mesmo do que com qualquer outro.

Também é interessante a mudança de comportamento dos personagens no decorrer dos episódios, como Carol, Maggie ou Sasha, que se embrutecem e encouraçam suas personalidades conforme veem amigos e parentes morrerem um a um, ou quando percebem que os vivos são muito mais perigosos que os mortos. O massacre que ocorre na Igreja, durante a quinta temporada, é a definição mais próxima de como a constante exposição a ambientes hostis podem liberar os lados mais obscuros das pessoas a favor da sobrevivência.

Em hipótese alguma podemos negar qualidade na produção. Desde a primeira temporada, em que o orçamento era muito mais limitado, Frank Darabont conseguiu desenvolver um projeto ousado com um nível de qualidade cinematográfico, e mesmo depois que ele foi demitido por divergências criativas, o mesmo nível foi mantido. Os pontos altos seguem para as equipes visuais e sonoras porque, tanto quanto as histórias ou os personagens em si, o impacto do seriado e o interesse por ele não poderiam ser construídos sem esses quesitos técnicos que criam toda a atmosfera desse universo. A sensação apocalíptica chega a ser brutal e delirante, mas recheado de um certo exagero fictício às vezes difícil de engolir.

Todos os eventos entre a primeira e quinta temporada acontecem em um período de aproximadamente dois anos, o que não é um tempo suficiente para prédios, ruas e cidades inteiras estarem em ruínas. Um tempo muito curto para um cenário apocalíptico tão abrangente. São mortos vivos, não é um cometa que atingiu a Terra. Há falta água, de energia e de comida, mas nunca de munição. Durante a terceira temporada o que mais se ouve é que a munição está escassa, mas ela nunca acaba. Risos, risos.

Há também aqueles momentos em que situações são usadas aleatoriamente para tapar buracos evidentes na narrativa ou elementos usados pelos roteiristas simplesmente quando eles julgam necessários, sem levarem em conta o impacto que isso causa dentro do contexto, como Michonne utilizar os próprios zumbis para se disfarçar entre eles, ou posteriormente, quando descobre por acidente que coberta pelas entranhas dos mortos o resultado é o mesmo. Essa camuflagem simplesmente é esquecida na história, só lembrada novamente quando Carol retorna para atacar o Santuário. Nas outras situações, principalmente quando estão a caminho de Washington, os personagens se tornam burros demais ao preferirem enfrentar hordas de zumbis do que simplesmente usarem a camuflagem. Claro, se esse elemento fosse utilizado o tempo todo na história, o seriado não teria graça. Então melhor se a idéia nunca tivesse sido inserida, certo? Ou fosse aproveitada de alguma forma em situações como essa.

Para quem prestar atenção nesses detalhes e encontrar esses erros clássicos e clichés, irá nitidamente perceber potenciais desperdiçados. Novamente são erros de roteiro e incoerências que extrapolam os exageros aceitáveis, e apesar de tanto cuidado, no fim tudo impressiona, mas sempre naquela sensação de que a inteligência do espectador é subestimada. 

A proposta de Frank Darabont com a série era ser um drama apocaliptico, com elementos de horror e tramas centradas nas relações entre personagens e os esforços para sobreviverem em limites extremos. Com sua saída, tudo tomou um rumo diferente. Claro que alguns dramas pessoais e humanos ainda são importantes, mas hoje em dia, na idéia de que o mais sempre é mais, em que tanto o cinema e a televisão abusam do sensacionalismo para atrair a atenção, é perceptível como o seriado se tornou cada vez mais violento e gore com o passar dos anos, algo de fazer O Albergue (Hostel, 2005), de Eli Roth, parecer filme de comédia perto do suco de sangue da quarta e quinta temporada, as mais vista na história da televisão à cabo e as mais aclamadas. E é por isso que já podemos imaginar que os anos seguintes tentarão sempre superar o nível de violência dos anteriores, não importa se as histórias se repetirão ou se as fórmulas serão recicladas.

Não falo da explícita e brutal violência como se eu acreditasse que ela possa influenciar pessoas. Não acredito nisso. A preocupação é unica e exclusivamente sobre o produto. Quando um filme ou seriado tem suas potenciais qualidades ofuscadas pelo excesso de cenas brutais para atrair facilmente a audiência, há perda até mesmo do entretenimento para dar espaço à banalidade. Preocupante também quando as pessoas dão preferência por esse abuso gratuito do que a um roteiro mais relevante, sólido e melhor construído. Essa troca da qualidade pelo mero impacto visual leva a alienação.

É nítido que Walking Dead agoniza com seu próprio sucesso. A expectativa de fãs levam os produtores a exigirem que o seriado sempre se supere de alguma forma. Ele ainda consegue ser um excelente entretenimento por conta de suas qualidades visuais e quesitos técnicos que, para um programa de televisão, são de cair o queixo. Mas tem que ter paciência. A repetitividade de tramas paralelas, como as constantes crises de Rick sobre a educação de Carl, ou nas decisões conflitantes que colocam à prova sua liderança, chegam a ser cansativas. Muitos personagens se tornam chatos e irritantes por conta desse vai e vem de situações que se concluem, mas voltam a se repetir em algum momento. Às vezes é recorrente desejar que a história mate esses personagens logo, e ao invés de ser empolgante, isso é desanimador porque fica óbvio que eles deixaram de funcionar.

O grupo foge, é atacado. O grupo se abriga, e é ameaçado. Há sempre um grande vilão que quer encarcerá-los ou matá-los de alguma forma. O episódio na Fazenda, o ataque ao Presídio, a invasão a Woodbury, a guerra do Governador, o Santuário... todas são, no fundo, histórias que se repetem e só recebem um diferente acabamento a cada nova temporada, virando uma coisa manjada tanto quanto zumbis aparecerem de repente em uma janela ou atrás de alguém (situações que já até perdi as contas de quantas vezes acontecem).

A quinta temporada tentou retomar um pouco da essência da primeira e segunda, jogando os heróis novamente na estrada até se depararem com uma dúvida chamada Alexandria. Foi bom ver a história desacelerar por alguns episódios, vê-los bem instalados, com roupas limpas e respirando aliviados finalmente. Mas a sensação de que Rick irá sabotar tudo isso em algum momento por alguma decisão impositiva é constante. E sabemos que é assim que será.

Mas até quando isso irá funcionar, não sabemos.

CONCLUSÃO...
Walking Dead surgiu com uma proposta que mudou alguns conceitos na televisão, abrindo espaço para produções do gênero de terror. Há cinco temporadas os espectadores tem feito parte da vida de um grupo de pessoas que lutam para sobreviver em um mundo hostil em meio a mortos e vivos, transformando a vida e a personalidade de cada um deles tão profundamente ao ponto de esquecerem de como eram quando o mundo ainda não havia sido tomado por um vírus que liberou a pior essência de cada um. Personagens morrem conforme novos personagens entram, dramas se repetem e alguns conflitos parecem nunca se resolverem. Quanto mais longeva for a produção, mais do mesmo será feito, apenas com uma diferente roupagem. Há possibilidades para mudanças de rumo que agora se mostram necessárias, e a quinta temporada demonstrou bastante isso, com histórias mais consistentes e erros menos graves do que os que aconteceram na terceira e quarta temporada. Ainda diverte, assusta e causa tensão, grande parte disso por conta da efetividade técnica, do capricho na produção visual e de alguns poucos personagens bastante consistentes que conseguiram ganhar maiores densidades e destaques do que os próprios personagens principais. Até quando os clichés e a repetitividade irá funcionar sem deixar aquele gosto de comida requentada é uma incógnita, mas é possível aproveitar bastante até lá.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

DUAS DÉCADAS DE POUCA EVOLUÇÃO...

★★★★★★★
Título: O Mundo dos Dinossauros (Jurassic World)
Ano: 2015
Gênero: Ação, Comédia, Suspense
Classificação: 12 anos
Direção: Colin Trevorrow
Elenco: Chris Pratt, Bryce Dallas Howard, Vincent D'Onofrio, Ty Simpkins, Nick Robinson, Judy Greer
País: Estados Unidos, China
Duração: 124 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
O sonho de John Hammond se concretizou, e o parque agora está aberto ao público.

O QUE TENHO A DIZER...
Quando Jurassic Park foi lançado em 1993, eu tinha apenas 12 anos. Todo o mundo ficou boquiaberto. Não é à toa que Bryce Dallas, a atriz do novo filme, comparou a importância do primeiro filme com a chegada do homem à Lua, porque foi uma revolução naquilo que se conhecia sobre efeitos especiais. Spielberg, juntamente com a Industrial Light & Magic, fizeram um favor à humanidade em recriar os animais pré históricos de forma tão realista e convincente porque foi o mais próximo daquilo que poderíamos chegar dos extintos animais que, com excessão dos fósseis, o resto era muito mais parte do imaginário humano.

Embora haja muita informação incorreta sobre eles, Jurassic Park virou referência até na ciência. Óbvio que uma moldada aqui e alí foi necessária para ficarem mais bonitos na tela, o que é algo natural dentro do cinema, mas depois disso os paleontólogos parecem ter se empenhado muito mais em provar a imprecisão dos detalhes justamente para evitar aquilo que o personagem Alan Grant propõe logo no começo do filme, de que o trabalho dos paleontólogos estaria em extinção com o avanço da tecnologia.

A primeira verdade é que o público pouco se importa com isso, pois preciso ou não, tudo era coerente com a proposta do livro de Michael Crichton.

Foi um filme revolucionário, bonito, assustador e com aquelas pitadas absurdas típicas de Spielberg. Foi feito com esmero nos detalhes, e por isso é emocionante. Uma ode à fantasia e um épico de ação que firmou o diretor como um mestre do gênero (algo que ele infelizmente se distanciou com o tempo).

Lembro que quando me falaram do filme pela primeira vez, a única coisa que perguntei foi se os dinossauros faziam aqueles movimentos "tremidos", em referência à técnica de stop motion. Essa técnica era a única noção que tínhamos sobre dinossauros e efeitos especiais nessa escala naquela época, ainda a mesma utilizada em O Elo Perdido, clássica série dos anos 70.

Como éramos bobinhos.

O significado que a computação gráfica e a tecnologia visual teve no cinema com o filme de Spielberg foi tão importante quanto foi o stop motion no início do século XX com Viagem à Lua, (Le Voyage Dans La Lune, 1902), do francês George Meliès. E eu chorei de emoção quando vi algo tão fantástico. Era como se eu estivesse lá, dentro do parque. Não havia nada mais realista na época do que o ator deitado sobre a barriga do Tricerátopes em animatronic, ou do Tiranossauro em computação gráfica correndo atrás do jipe no meio da mata, arrebentando árvores caídas e dando cabeçadas em tudo que via pela frente numa fúria instintiva que não dava tempo de piscar os olhos. E eu choro até hoje quando assisto porque, embora mais de 20 anos se passaram, esse clássico da fantasia de ação ainda impressiona mais do que muitos filmes atuais, incluindo os demais da própria franquia.

O segundo filme, também dirigido por Spielberg, utilizou os mesmos elementos do primeiro, mas o diretor fez algo mais, e só a sequência inicial já indicava isso, em que uma garotinha é atacada por uma colônia de Compsognathus. E assim foi. O suspense e o horror na luta pela sobrevivência foram intensificados de tal forma que o corpo doía na poltrona do cinema de tanta tensão, como na sequência de mais de 15 minutos de desastres, um seguido do outro, sem tempo pra respirar. Como não ter suado frio com Juliane Moore estabacada inconsciente na janela do caminhão pendurado em um precipício, em que o vidro trincava aos poucos com seu peso?

E eu chorei de novo, porque era o cinema fazendo comigo aquilo que ele deve fazer por excelência: impressionar.

O terceiro filme foi abandonado por Spielberg. Embora ele assinasse a produção, houve rumores de que ele nunca sequer pisou nos sets de filmagem, e o diretor Joe Johnston ficou um tanto perdido, bem como o roteiro. Por isso a existência do filme é quase esquecida. Esquecida, inclusive, neste novo filme.

O quarto filme é uma sequência, mas também pode ser considerado um reboot, não apenas pela mudança simbólica do nome como também pelo grande hiato de 22 anos da série.

O parque finalmente está aberto ao público, e realmente é emocionante ver logo nos primeiros minutos, ao som da clássica trilha sonora de John Williams (mas agora rearranjada por Michael Giacchino), o sonho de John Hammond concretizado com as belíssimas tomadas aéreas da nova Ilha Nublar e nas grandiosas escalas que firmam a idéia de como somos tão pequenos e frágeis que nem sequer os melhores engenheiros de estrutura do mundo são capazes de atestar nossa segurança.

Não é necessário ter assistido os filmes anteriores para entender esse, a não ser para identificar as referências jogadas aleatoriamente o tempo todo sobre eles, como preciosos souvenirs para agradar os fãs mais vorazes.

A história já começa com várias autocríticas (e também metacríticas) que se estendem por todo o filme. A principal delas é de que os dinossauros não impressionam mais. E essa é a segunda verdade.

Em 1993 as pessoas lotaram os cinemas para verem o que nunca haviam visto, e hoje elas lotam o cinema porque são fãs e esperam ver algo a mais. Na história a situação é a mesma, e por essa razão criaram um novo personagem projetado pela engenharia genética, chamado de Indominus Rex, um tipo maior, mais assustador, mais inteligente, mais tudo aquilo que alguém poderia imaginar. Seu nome parece até piada, e de fato vira dentro da metacrítica. Ele é a nova atração no intuito de manter o interesse dos visitantes (e também daqueles que estão no cinema). Justificam também que a tal falta de precisão histórica dos dinossauros é pelas modificações genéticas que eles sofreram em laboratório.

Mas espera... o primeiro filme também falava que as sequências genéticas haviam sido completadas com outra espécie, bem como os filmes seguintes também abordaram a evolução natural que eles tiveram, ou o ecossistema auto suficiente que se desenvolveu na Ilha Sorna. Então essas informações não são novas, são apenas reafirmadas para refrescar a memória de quem não lembra e informar aqueles que não sabem. Assim como também não é novo o fato do Indominus ser maior, mais rápido e até mais esperto que o Tiranossauro, porque no terceiro filme houve o Spinossauro, que nem sequer é citado no filme além de uma breve aparição de seu esqueleto.

Embora pareça, Indominus não é um dinossauro, essa é a terceira verdade. Da mesma forma como o espectador pode pensar isso, essa afirmação é feita diversas vezes durante o filme. É a metacrítica novamente, justificando os erros do filme dentro do próprio filme. Isso até ajuda a história, mas não exonera a produção de defeitos, até porque o estreante não pode ofuscar a estrela principal que é o Tiranossauro.

Se dizem as más linguas que Spielberg abandonou completamente o terceiro episódio da franquia, aqui é evidente sua presença. Basta notar as formas como as cenas tentam gerar impacto. São cenas clássicas de Spielberg. É como se ele tivesse pego a câmera das mãos do diretor Colin Trevorrow e falado: Deixa que eu faço isso!

Não há como negar que a história tenta se embrenhar na atualidade ao mesmo tempo que almeja conquistar um público que não é mais familiarizado com sutilezas. A linguagem do cinema hoje está mais dinâmica, mais bruta e pesada, sem tempo para diálogos de duplo sentido ou uma ironia mais refinada. Se em 1993 era assustador um Tiranossauro devorar um homem que esperava sentado em uma privada para ter um efetivo alívio cômico na brutalidade, hoje isso causa apenas risadas e nada mais. E voltando na idéia de que dinossauros não impressionam mais, é por isso que o tom cômico aqui é maior. E graças a Chris Pratt, encarnando um tipo Indiana Jones de ser, que o humor de todo o filme parece muito mais parte da personalidade descontraída e aventureira do herói que ele interpreta do que um simples pastelão insosso.

E vale ser dito: é nesse filme que descobrimos porque Pratt se tornou o novo astro de ação. Mas não daquela ação bate-e-arrebenta de Dwayne Johnson ou Jason Stathan, mas aquela mais caricata, embutida de humor físico e carismático. É o Harrison Ford da nova geração. Até Bryce Dallas tenta retomar um tipo de heroína atualmente esquecido no cinema, daquela que arregaça as mangas, mas não tira o salto alto por nada, uma Willie Scott atualizada. Aliás, os sapatos da personagem é o que mais se ouvia comentar na sala, e que até rende uma cena rápida e bem feita em câmera lenta enquanto bate os saltos em fuga do Tiranossauro, num estilo meio Brian De Palma em Femme Fatale (2002). É a piada pronta, a sátira e o cliché para que não nos esqueçamos em momento algum que o Mundo dos Dinossauros é unica e exclusivamente um entretenimento.

Por isso, o que vemos ao longo das duas horas são os mesmos clichés e personagens estereotipados de sempre, e que sempre fizeram parte não apenas dos filmes da série como também desse gênero de ação com certo tom satírico que Spielberg definiu tão bem com seus filmes nas décadas de 80 e 90. Há o herói charmoso e engraçado, a mocinha que grita mas é dura na queda, o bandido que quer ficar rico, os pamonhas que morrem fácil e as crianças que dão trabalho. O maniqueísmo é óbvio, e os estereótipos que facilmente geram conflitos no arco dramático para convergirem ao final feliz são clássicos. Sim, igual ao primeiro. Igual ao segundo. E esta é a quarta verdade.

A quinta verdade é que ele vai agradar qualquer tipo de pessoa porque ele foi construído para isso. Não há ousadias. É tudo parte de uma fórmula pronta, repetida diversas vezes, e executada corretamente, como um prato aprovado no MasterChef. Realmente há exageros desnecessários, como a dos animais passarem a se comunicar como se estivessem numa reunião na praça. Mas isso é o cinema blockbuster em sua forma mais óbvia, não há como ser diferente, por mais que pudessem ter sido, já que tiveram 22 anos anos para isso. 

O defeito maior de tudo fica a cargo de tanta informação ao mesmo tempo deixar tudo muito raso, principalmente na relação entre os personagens, ou a presença das crianças também nem causar o mesmo impacto de fragilidade que tinha nos dois primeiros filmes. Não há sequencias que realmente impressionam e tiram o fôlego como já tiveram no passado, com excessão do ataque das aves, algo introduzido no terceiro filme e usado em larga proporção agora. O espectador até se esforça para se sentir impressionado, e os efeitos especiais também, principalmente dos animatronics, que parecem reais.

Ainda acredito que o 3D tem muito a evoluir, e no caso desse filme essa tecnologia mais incomoda do que ajuda. Ela nos dá noção de profunidade, mas diminui muito a qualidade visual do filme. Perde-se muitos detalhes do próprio cenário e suas composições, principalmente quando (como sempre) o dia vira noite no ápice da ação para facilitar o uso da computação gráfica, e tudo com o óculos desconfortável mais parece um filtro mau usado do Instagram do que uma experiência imersiva. Logo, se puder evitar as cópias 3D, evite.

O resultado de tudo é apenas uma leve satisfação. A intenção da franquia sempre foi entreter e nos levar para um mundo até então desconhecido, mas que hoje, depois de ter sua fórmula repetida diversas vezes, virou algo familiar e previsível que ainda diverte, mas muito mais no sentimento nostálgico do que naquele sabor de novidade.

CONCLUSÃO...
22 anos podem ter reacendido o interesse pelas pessoas nos dinossauros de Spielberg, mas não fizeram tão bem assim à franquia, já que a produção ainda se utiliza das mesmas fórmulas de sempre para construir sua narrativa e os personagens rasos, muito embora Chris Pratt e Bryce Dallas conseguiram até fazer milagres com pouco e entregar momentos cômicos sem soarem pastelões ou fora de lugar. Cheio de piadas prontas e referências aos filmes anteriores, diverte muito mais como uma sátira de ação, até porque com tanta metacrítica embutida para justificar seus erros e defeitos, fica difícil não interpretá-lo assim.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

TIREM AS CRIANÇAS DA SALA...

★★★★★★
Título: Sense8
Ano: 2015
Gênero: Drama, Ficção, Ação
Classificação: 16 anos
Direção: Andy e Lana Wachowski (The Wachowskis)
Elenco: Miguel Angel Silvestre, Doona Bae, Jamie Clayton, Tina Desai, Brian J. Smith, Tuppence Middleton, Max Riemelt, Aml Ameen
País: Estados Unidos
Duração: 50 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
8 pessoas de diferentes partes do mundo se veem conectadas umas às outras por um evento em comum.

O QUE TENHO A DIZER...
Quando os irmãos Lana e Andy Wachowski estouraram no cenário cinematográfico em 1999 com Matrix (na época Lana ainda era Larry), os dois automaticamente foram para o topo da lista dos diretores e roteiristas mais cobiçados e promissores de Hollywood, e o esforço hercúleo de se manterem no cenário cult deu a eles um peso de responsabilidade em que a ambição atrapalhou significativamente todo e qualquer processo criativo.

A bagunça organizada de Matrix transformou os Wachowskis em referência da cultura pop, e o exagero se tornou marca registrada da dupla, mas que nunca atingiu o mesmo patamar em suas produções posteriores, inclusive dentro das duas sequências da própria trilogia que os definiram.

Os subsequentes fracassos pós-Matrix culminou no recente O Destino de Jupiter (Jupiter Ascending, 2015), tão mal elaborado e feito quanto seu antecessor, A Viagem (Cloud Atlas, 2012), este ultimo que, de tão exagerado, tinha até mais um par de mãos do diretor Tom Tykwer para ajudá-los, e mesmo assim não conseguiu retirar mais do que bocejos da platéia. Pois é... inacreditável. O orçamento dos dois filmes supera o patamar dos US$250 milhões, e os dois juntos arrecadaram pelo mundo um pouco mais de US$300 milhões. Conseguiram se pagar com dificuldade, mas de longe não valem o custo que tiveram.

A trajetória dos diretores é baseada em épicos visuais, onde utilizam o exagero de personagens, tramas e efeitos para impressionar e dar um teor complexo que desvia a atenção do roteiro oco, com histórias inconsistentes que impressionam apenas aquele grupo de fãs xiitas que nunca enxergam defeitos, por mais evidentes que sejam.

Embora saibam criar imagens deslumbrantes e sequências visuais de tirar o fôlego, os Wachowkskis nunca souberam contar uma boa história (além do já mencionado e único grande sucesso) porque eles mesmos se perdem em tanta complexidade desnecessária.

E Sense8 não poderia ser diferente.

Ao contrário do que se pensa, não é um seriado de ação. É muito mais uma ficção dramática com pitadas de suspense e alguns raros momentos de ação que aumentam gradativamente mais para os últimos episódios. O primeiro episódio apresenta cada um dos oito personagens que vivem em lugares distintos do mundo, mas por alguma razão inexplicável (e que nem vale a pena tentar supor), eles conseguem literalmente sentir e acessar a consciência uns dos outros, pois o "sistema" é uma via de mão dupla. Sentem, ouvem e vivenciam o que cada um passa, bem como também possuem a capacidade de absorver os conhecimentos e habilidades particulares de cada um. O grande problema é que, por trás de heróis, sempre existe um grande vilão, e o vilão aqui se chama Whispers.

Whispers é aquele tipo de vilão que pouco aparece e pouco se sabe, mas já causa medo mesmo assim. A função dele na história é, em resumo, caçar sensates, e basta olhar nos olhos apenas de um deles para descobrir onde estão todos os outros do grupo.

Até parece Matrix, e o Sr. Smith. Sim... o seriado é cheio de referências aos próprio Wachowskis do começo ao fim. E não falo apenas de suas produções, mas da maneira como eles pensam sobre a sociedade como um todo, da liberdade sexual, da igualdade de gêneros e da necessidade que ignoramos de indivíduos trabalharem juntos, como uma unidade, o que sempre fez parte das características narrativas de suas produções.

A narrativa, a princípio, tenta fazer uma mistura entre os diferentes cenários para tentar passar essa sensação de conexão entre os protagonistas. Algumas vezes funciona, outras não. Mas com o passar dos episódios essa transição deixa de ser menos didática para mais sensorial, principalmente no episódio em que a personagem Nomi precisa fugir e pede ajuda, ou quando a maioria deles tem um momento de sincronia sexual e se transforma em uma das cenas mais luxuriosas, prazerosas e visualmente eróticas que algum seriado já ousou fazer. Um momento que definitivamente irá atingir os medos e anseios dos mais conservadores dos homens na Terra.

Aliás, se prepare, porque vai ter muita cena de sexo de tudo que é tipo imaginável, muita nudez, muita mulher pagando peitinho e genitais masculinas balançando por aí. Situações que a gente sabe que são para chocar e atrair atenção, indo para a apelação carnal tanto quanto fazia True Blood, mas a diferença aqui é que, enquanto em True Blood tudo era sujo, meramente apelativo e gratuito, os Watchowskis sabem fazer belas imagens até mesmo das coisas mais banais, e a maneira como essas cenas são montadas e postas nos episódios realmente conseguem ter uma sensualidade bastante particular e coerente no contexto da história. Sensualidade e sensibilidade, diga-se de passagem.

Numa época em que o conservadorismo novamente aflora com força no Brasil pelo crescimento de grupos moralistas, conservadores e hipócritas, esse seriado definitivamente é para essas pessoas que, ou irão entrar na onda do boicote, ou irão assistir trancados no quarto, com a luz apagada e no volume mínimo para ninguém descobrir. E vão gostar. O que é muito mais provável.

O projeto ambicioso foi filmado em oito lugares distintos no mundo, tanto que, no final da produção, a equipe de filmagem já havia acumulado mais de 160.000km de vôo. Capacidade para dar 4 voltas ao mundo. Cada uma das locações teve cenas filmadas por diretores diferentes, incluindo novamente o próprio Tom Tykwer, que também assina a trilha sonora junto com seu amigo e colaborador Johnny Klimek, algo em que, deve-se admitir, são bons nisso por natureza desde o primeiro filme de Tykwer, o clássico Corra Lola, Corra (Run Lola, Run, 1998).

Por essas razões temos a sensação de diferentes estilos em alguns episódios, mas que não atrapalha. Pelo contrário, o estilo particular de cada um deles parece ter encontrado uma linguagem unica que oferece um senso de linearidade, apesar de tudo. Uma simbiose interessante que tem tudo a ver com a proposta do seriado. É o trabalho em conjunto, como os Wachowskis gostam.

Mas será que era necessário tanta coisa junta nessa escala? Acredito que não. Muitos personagens, muitas histórias paralelas, muitos lugares distintos e muitos acontecimentos impressionam, mas não é consistente como seria se tudo acontecesse dentro de um raio menor, ou com um menor número de personagens. Portanto, o senso de qualidade da série que se constrói vem muito mais afogada neste grande leque de deslumbres e exageros do que da própria história. São tantos fatores que dispersam a atenção aos defeitos que muita gente vai bater o pé em dizer que a nova produção dos irmãos é a melhor da temporada. O que não é. Mas também não é de se jogar fora nenhum pouco, valendo até dizer que, depois de Matrix, este talvez tenha sido o único tiro certeiro que os irmãos tiveram em todos esses anos.

As atuações são, em sua maioria, boas, mas as histórias não possuem uma densidade que realmente saia do status quo ou que seja tão revolucionária da forma como a produção foi promovida. Demora para que o interesse pelos personagens cresça e a empatia aconteça, assim como demora muito para eles finalmente interagirem entre si e criar essa gostosa e assustadora sensação de dependência um do outro, como um Friends da ficção científica. A atenção dada a uns personagens é maior do a outros e muitas vezes não há nada de diferente daquilo que qualquer outro seriado envolvendo um grupo de pessoas com habilidades únicas não tenha feito antes. Personagens com dramas pessoais ou familiares paralelos, flashbacks para contar suas histórias particulares, e cenas clichés que abusam do drama e de frases batidas.

Mas se tem uma coisa até muito interessante é essa abordagem pluralista, em tentar desenvolver bem cada um dos personagens a partir de suas culturas, por mais fantasiosas que elas possam ser, como na cena bollywoodiana do segundo episódio, desnecessária, mas ainda bonitinha e inusitada que muito tem a ver com a cultura pop indiana.

Os Wachowskis são bibliotecas ambulantes da cultura pop e eles utilizam esse extenso banco de dados sem vergonha ou medo algum aqui. Cabelos coloridos, roupas personalizadas, personagens com atitudes descoladas, cultura underground e linguagem popular. Por mais defeitos que venha a ter, não há como não se sentir atraído e perceber que Andy e Lana se deram muito melhor no formato televisivo do que nos quase 20 anos de experiência no cinema, porque no formato sequencial eles tem onde encaixar os exageros sem pressa. Também não há como não se sentir atraído pelos dramas dos personagens. Chega um ponto em que parece que eles disputam entre si quem tem a maior trajédia, pois são tão trágicas que Shakespeare teria inveja. Por conta disso o drama é muito bem acentuado nesses momentos, e chega a ser até genuíno de tão bem elaborados dentro da história.

Como um todo, a experiência é gratificante. Sabemos que os personagens são assim e pouco nos interessa o motivo, porque o circo que acontece em volta de cada um deles é muito bem armado. E o melhor de tudo é que o final é satisfatório, nada daquela sensação de ter sido enganado por 12 episódios, podendo ser tanto uma conclusão como uma ponta solta para uma segunda temporada.

A produção deixa clara também que ela pode, sim, ter personagens que fujam de estereótipos comuns, e que histórias não precisam ser feitas de maneira convencional, com personagens convencionais, heterossexualizados e apaixonados para ser um bom entretenimento. O primeiro episódio, que se passa durante uma Parada do Orgulho GLBT, a situação deixa bastante evidente que o seriado não se importará com a relação entre gêneros e suas orientações. Lana e Andy conseguem usar a fantasia a seu favor para levarem essas mensagens sem atingir os ânimos preconceituosos, e isso é sempre válido. Na verdade, dentro do contexto do seriado, e que fica bastante evidente nos episódios seguintes, é que todos os 8 personagens principais deixam de ter uma sexualidade definida por conta da abrangente experiência que todos passam a ter. Como definiu Lana Wachowski, todos eles são "pansexuais".

E dentro de dramas, descobertas, algumas pitadas de humor e últimos episódios bastante eletrizantes, os Wachowski voltaram à forma.

Difícil entender? Então assista. Será mais fácil.

CONCLUSÃO...
Exagerado e exagerado. É a definição. Mas apesar disso tudo, a produção consegue chamar a atenção. Mesmo que demore, os personagens se tornam cativantes no decorrer dos episódios dentro de uma pluralidade social e sexual que vem muito bem a calhar numa época em que o falso moralismo e a hipocrisia estão tomando dimensões assustadoras. É Lana e Andy Wachowski atraindo a atenção em diferentes níveis sensoriais, com imagens deslumbrantes e eróticas que conseguem pular fora da tela. E como sempre, tudo isso chama mais atenção do que a própria história. Poderia ser um defeito no cinema, como é recorrente nos seus filmes, mas na televisão a proposta toda funciona muito bem.

terça-feira, 9 de junho de 2015

SABOREAR COM OS OLHOS...

★★★★★★★★★☆
Título: Chef's Table
Ano: 2015
Gênero: Documentário
Classificação: Livre
Direção: David Gelb
Elenco: Massimo Bottura, Dan Barber, Francis Mallmann, Niki Nakayama, Ben Shewry, Magnus Nilsson
País: Estados Unidos
Duração: 50 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Documentário em seis episódios focado, cada um deles, em um renomado Chef da gastronomia contemporânea pelo mundo.

O QUE TENHO A DIZER...
Se existe uma série original da Netflix em 2015, e que seja realmente boa, verdadeira, humana e naturalmente sentimental, Chef's Table é o nome.

Criado e dirigido por David Gelb, o cineasta já tinha feito um trabalho similar em um documentário em longa metragem sobre o sushi master Jiro Ono, em 2011. Ao contrário dos incontáveis reality shows culinários, a aposta do Netflix foi nadar contra a maré e não ir em busca de um novo destaque, mas descobrir o que fez de seis, dentre os mais renomados Chefs do mundo, personagens fundamentais da gastronomia contemporânea.

São eles:
-O italiano Massimo Bottura, dono do Osteria Francescana, cuja inspiração é (obviamente) a culinária italiana, porém relida para que sua arte e seu sabor fossem intensificados, algo que ele acreditava não ser possível na sua forma mais tradicional, decisão que conflituou diretamente com a cultura regionalista.
-O norteamericano Dan Barber, dono do Blue Hill, que se transformou acidentalmente em agricultor por conta de suas pesquisas e trabalhos na intenção de intensificar os sabores naturais de seus ingredientes e, consequentemente, de seus pratos.
-O argentino Francis Mallmann, especializado na cozinha francesa e dono de três restaurantes, que passa a maior parte de seu tempo livre em sua casa de campo na Patagônia, onde cresceu no meio do aroma da comida feita à lenha e da fuligem que as envolvia, situação que definiu totalmente seu estilo culinário.
-A japonesa Niki Nakayama, dona do N/Naka, que além de pratos autorais, monta verdadeiras obras de arte que fazem releitura de conceitos tradicionais japoneses, tendo como meta nunca repetir o mesmo prato para seus clientes.
-O neozeolandes Ben Shewry, dono do restaurante Attica, que se sentiu obrigado a desenvolver (e por assim descobrir) suas habilidades criativas para sobreviver no mercado, que também teve que trazer à tona suas experiências de vida mais marcantes para aflorar sua essência e característica.
-O sueco Magnus Nilsson, dono do Fäviken, que tem como inspiração a cultura viking, mostrando através da inigualável mistura de textura e sabores que existe delicadeza dentro desta cultura nórdica.

Os episódios começam com um relato breve sobre um fato marcante na vida de cada um, e logo em seguida agudos de violinos introduzem o sentimento de suspense e a apreensão que se tem ao entrar em uma cozinha, a meticulosidade na sua preparação ao solo do violoncello e o caos que toda essa organização de repente se transforma para gerar uma experiência única, tudo em perfeita sincronia com as notas de Inverno, das Quatro Estações de Vivaldi.

No decorrer dos seis episódios e na vida individual de cada Chef, há muitas diferenças de estilo. Ao mesmo tempo há incontáveis semelhanças nas experiências de vida e nos interesses de cada um na hora de elaborarem seus suntuosos pratos, sejam eles autorais ou não. O fator mais interessante desta série documentada é que não há sensacionalismo ou elementos tendenciosos. A impecável produção foca exclusivamente na narrativa feita pelos próprios protagonistas das histórias. As belíssimas imagens guiadas pela música clássica reorquestrada são ambas tão meticulosamente escolhidas quanto o menu de cada um deles, e não apenas ilustram as palavras como realmente nos colocam na mesa do Chef, em uma situação bastante íntima e particular, como uma sequência de pratos poderia ser. E através das imagens orquestradas, saboreamos cada um dos pratos através das histórias únicas, e a visualisamos como jóias raras.

Declarações como a de Massimo Bottura, sobre como ele solucionou o problema de uma queijaria em 2012, depois de um desastroso terremoto em Módena, sua terra natal, ou de como um acidente na cozinha que trabalhava se transformou em um dos seus mais famosos pratos; a visão poética de Francis Mallman sobre a vida e a morte e o respeito que ele cultiva em suas relações; o esforço diário e a determinação oriental de Nakayama em sobrepor seus talentos ao machismo latente; a busca pelos ingredientes perfeitos e a maneira mais tradicional e primitiva de produzí-los, como fazem Barber, Shewry ou Nilsson... tudo isso demonstra, acima de tudo, o respeito pelas suas histórias e tradições. Respeito aos ingredientes, aos pratos e da construção da memória palativa no sentido mais alquimista possível. Mostra também que culinária é uma arte, e por mais cliche que esta afirmação possa parecer, é através dessas histórias que temos apenas uma pequena fração da profundidade desta afirmação e das delicadas especialidades de cada um, como, por exemplo, a razão de Mallmann ter como característica em seus pratos superfícies com texturas queimadas, torradas, crocantes e sabores defumados, talvez o exemplo máximo do que significa o resgate da memória através dos sabores, e como nossas experiências de vida mais antigas são as que mais nos definem naquilo que fazemos. Sabores que identificam lembranças, lembranças estas que existem e se manifestam de alguma forma, pois sempre buscamos resgatá-las.

CONCLUSÃO...
Chef's Table não é um reality show e muito menos um documentário sobre comida, mas um material muito bem executado sobre como a culinária pode se tornar uma expressão artística de profunda humanidade e respeito, mostrando que o indivíduo é aquilo que ele come, e o que ele come é aquilo que se cultiva. Também é uma oportunidade de mostrar as diferenças entre o gourmet e o tradicional e que a gastronomia elaborada por essas pessoas são impressões artísticas através do paladar para saciar a vontade por experiências, e não a fome de simplesmente comer.

terça-feira, 2 de junho de 2015

MEXIDO, MAS NÃO BATIDO...

★★★★★★★★
Título: The Returned
Ano: 2015
Gênero: Drama, Suspense, Terror
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Mark Pellegrino, Jeremy Sisto, Tandi Wright, India Ennenga, Sophie Lowe, Mary Elizabeth Winstead, Michelle Forbes
País: Estados Unidos
Duração: 43 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Uma pequena e pacata cidade entra em caos quando vários moradores dados como mortos retornam sem saber que haviam morrido.

O QUE TENHO A DIZER...
O choque já começa logo nos primeiros minutos do primeiro episódio, em um flashback de quatro anos antes, quando um ônibus escolar, lotado de crianças e adolescentes, cai de um penhasco. Ao retomar a narrativa para os dias atuais, vemos as mãos de Camille (India Ennenga) escalando uma grade de segurança, como a sair de sua própria cova rasa. Ela está intacta, com as mesmas roupas de quando embarcou no ônibus que colocaria não um ponto final em sua vida, mas uma grande vírgula, cheia de reticências.

Camille caminha por horas pelas estradas que cortam as Florestas Boreais que apenas o Canadá poderia oferecer, já que Vancouver é o cenário utilizado para retratar a pequena e pacata cidade fictícia chamada Caldwell. Em meio a uma neblina fantasmagórica, ela finalmente chega em sua casa. Ao ouvir barulhos no andar de baixo, sua mãe, Claire (Tandi Wright), desce para verificar. Ela encontra Camille devorando um enorme lanche na cozinha, reclamando da peregrinação que fez. O momento não consegue ser tão impactante como deveria, talvez por que Tandi Wright não tenha conseguido expressar muito bem o misto de espanto, surpresa, felicidade, esperança e uma pitada de horror por uma situação inexplicável que a personagem presenciava, mas o espectador consegue complementar em sua própria imaginação o verdadeiro misto de sensações. Realmente não haveria reação. O catatonismo seria a única resposta para um acontecimento sobrehumano a poucos passos de distância. Camille, surpresa pela afonia de sua mãe, pergunta se está tudo bem, sem ter a mínima noção de que estava morta há tanto tempo e que a poucos minutos antes sua mãe rezava e lamentava sua morte em um altar improvisado.

Sim, é dessa forma um tanto sombria e que vagamente nos remete ao Cemitério Maldito, de Stephen King, que The Returned cumpre o que propõe: ser um seriado dramático de horror e mistério que deixará todos curiosos demais para saber o que realmente aconteceu, no famoso estilo Lost de ser. Troca-se a ilha por uma cidade, e temos Caldwell, tão pacata e comum quanto Chester's Mill, de Under The Dome (também de Stephen King), e com uma população tão interiorana e conservadora como Bon Temps, de True Blood. Até o bar local, chamado DogStar, chega a ser um coadjuvante bastante presente tanto quanto o bar Merlotte's, do falecido seriado vampiresco da HBO. E os personagens ressucitados seriam, digamos, uma versão limpinha, educada e "vegetariana" dos zumbis de George Romero.

Com tantas referências assim, fica difícil saber se são propositais ou não, mas fica bem evidente que o seriado é uma colcha de retalhos de várias fórmulas que deram certo por aí, seja na literatura fantástica, seja na televisão. Até porque, embora ele seja apresentado como uma série original da Netflix, os dez episódios desta primeira temporada são refilmagens do seriado francês Les Revenants, que por sua vez é baseado em um filme de 2004 que leva o mesmo título. O seriado francês foi escrito por Robin Campillo, o próprio roteirista do filme, o qual curiosamente também assina a versão norteamericana. Ou seja, mesmo sem assistir a versão original francesa, supõe-se que o remake não apenas agrade o gosto exigente e preguiçoso dos norteamericanos que detestam legendas, como também consiga ser o mais fiel possível de seu irmão mais velho francês. E é exatamente isso o que se lê na maioria das críticas favoráveis por aí, de que apesar de algumas poucas e sutis mudanças, ambas versões são bastante próximas. Enquanto as críticas mais negativas se limitam a pessoas que provavelmente assistiram apenas o episódio piloto e julgaram ter sido o necessário. E devo dizer: não é.

Dentre erros e acertos das produções que o Netflix tem lançado esse ano, The Returned é uma das poucas agradáveis até o momento dentro deste gênero, ao contrário do infame e desnecessário Between, que também narra um mistério em torno de um grupo de pessoas isoladas em uma pacata cidade, uma cópia descarada e muito mais inferior de Under The Dome.

Mesmo sendo essa mexido de fórmulas já usadas anteriormente, The Returned consegue dar um acabamento final interessante, e ao invés daquela sensação batida de já termos assistido algo parecido antes, as situações semelhantes soam mais como referências muito bem usadas e reformuladas para a proposta da história. É fato que a produção não chega a ter o mesmo valor cinematográfico agregado a Demolidor, mas é muito bem feito mesmo assim. Muito bem filmado, editado e continuado, é mais comum ver acertos do que erros, algo difícil em produções menores como essa. Até porque o grande trunfo de tudo são as atuações, que em sua grande maioria são convincentes, tanto por veteranos pouco conhecidos, como pelos mais novatos que não deixam nada a dever.

A história flui como deve, e aos poucos as tramas e os mistérios se revelam de forma bastante fluida e inesperada. Inesperada não no sentido de surpresa imediata, mas de algo construído gradativamente. Nada daquelas situações manjadas de "hoje será o episódio de tal revelação", pelo contrário, todo episódio revela peças chaves do quebra cabeça, seja através da sutileza da narrativa atual, seja através da objetividade dos flashbacks. E tudo muito bem costurado para descobrirmos as demais camadas e a natureza dos personagens, tanto que cada episódio leva o nome de um deles.

Sem dar explicações óbvias, a história se utiliza de preceitos religiosos e até míticos para fundamentar algumas pontas soltas, fazendo aquilo que poucos seriados conseguem com efetividade: gerar comentários e teorias. Outros seriados, como Arquivo X, ou até o já citado Lost, conseguiram o mesmo, mas aqui a situação tem um tom mais palpável por conta da efetividade do roteiro e de seu desenvolvimento humano dentro de toda essa fantasia. Nada de clichés exagerados, nada de situações muito forçadas. Todos personagens lidam com medos, fraquezas, angustias e tristezas humanas, e todos possuem objetivos definidos. Dessa forma o espectador percebe o cenário se inverter sutilmente, e aqueles personagens que acreditávamos ter razão, deixam de tê-la, enquanto os que pareciam não ter, se fortalecem. Nada maniqueísta demais, nada de vilões ou mocinhos, apenas personagens que acreditam nas suas próprias razões e motivos, e uma construção bem interessante em cima da velha idéia de que devemos ter mais medo dos vivos do que dos mortos.

Não é um seriado perfeito, e nem redondo, porque deixou um final aberto para uma provável segunda temporada (o original francês terá sua segunda temporada ainda este ano), mas é a subida da montanha russa e a visão panorâmica antes da queda, conseguindo ser acima da média e que merece a chance de ser assistido. Resta agora saber se esta versão também terá uma segunda temporada. A única coisa que se sabe é que a primeira temporada seria fiel ao original, mas caso seja renovado para temporadas seguintes, seguirá um direcionamento completamente diferente.

CONCLUSÃO...
Dentre os atuais seriados produzidos pelo Netflix lançados esse ano até o momento, este figura na lista dos que merecem atenção. Sabe-se que Estados Unidos adora produzir remakes desnecessários, que pecam por deturpar as produções originais, resultando em produtos inferiores e esquecíveis. Por um milagre, não é o caso deste seriado. Sendo ou não sendo melhor que o original francês, The Returned cumpre o que promete dentro do gênero. Mas com tantas boas qualidades técnicas, seria difícil dar totalmente errado.
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