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domingo, 23 de março de 2014

PEDAÇOS QUE FALTAM...

★★★★★★★★
Título: Ferrugem e Osso (Rust And Bone)
Ano: 2012
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Jacques Audiard
Elenco: Matthias Schoenaerts, Marion Cotillard, Céline Sallette
País: França, Bélgica
Duração: 120 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Sobre um ex-lutador de box desempregado que de forma inesperada conhece uma treinadora de baleias, com a qual desenvolve uma relação de confiança, porém de uma estranha e confusa dependência.

O QUE TENHO A DIZER...
Dirigido pelo francês Jacques Audiard, o qual já foi bastante premiado por dois filmes anteriores: De Tanto Bater Meu Coração Parou (De Battre Mon Coeru Sést Arrêté, 2005) e O Profeta (Un Prophète, 2009), o qual também concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010. Com este filme o reconhecimento não foi diferente, chegando a competir pela Palma de Ouro no Festival de Cannes, além de ter sido indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e a Melhor Atriz para Marion Coutillard, e foi por pouco que a atriz também não concorreu ao Oscar em 2013, ficando de fora das finalistas por, talvez, a outra francesa Emmanuelle Riva ter sido indicada.

A história do filme gira em torno do ex-lutador de box, Ali (Matthias Schoenaerts), que agora está desempregado e que migra para Antibes, no sul da França, junto com seu filho de 5 anos, com o qual pouco teve contato até decidir assumir a paternidade já que aparentemente a criança era explorada como mula para tráfico de drogas. Sem dinheiro para nada, Ali vai morar de favor na casa de usa irmã Anna (Céline Sallette), e passa a trabalhar provisoriamente como segurança de uma casa noturna, onde conhece a treinadora de baleias assassinas, Stéphanie (Marion Cotillard), ao apartar uma briga entre ela e outra pessoa. De segurança do clube ele passa a realizar trabalhos ilegais, pois pagam bem, como instalar câmeras ocultas para espionar trabalhadores de empresas ou participar de torneios de lutas de rua. Ali é um homem rústico e temperamental, que não sabe lidar muito bem com seu lado mais sentimental e humano até ser novamente procurado por Stéphanie, que teve parte das duas pernas amputadas devido ao grave ataque de uma das baleias que treinava.

O filme é, na verdade, baseado em duas histórias do livro Ferrugem e Osso (Rusty & Bone), de Craig Davidson, mas nas histórias é um homem quem é atacado por uma baleia assassina. O diretor achou interessante mudar o sexo da personagem na história pelo excesso de personagens masculinos em seus filmes anteriores. Essa mudança trouxe outra dimensão na história, já que a condição da personagem e a sua fragilidade são muito mais acentuadas pelas suas próprias características que são descritas durante a história, como ela ser uma mulher sexy, que gosta de atrair a atenção dos homens simplesmente pelo prazer de se sentir desejada, e de repente se encontra em uma situação isolada, diferenciada e dependente, em que todas as possibilidades anteriores a isso se modificaram em um piscar de olhos. Essa fragilidade também intensifica a brutalidade quase ogra do antagonista e a forma como eles aprenderam um com o outro a diminuir esses excessos e encontrar um equilíbrio considerável.

O papel desempenhado pelo ator belga Matthias Schoenaerts não é muito diferente do desempenhado no filme Bullhead (Rundskop, 2011), tanto que o diretor se interessou pelo ator após assistir esse filme. A brutalidade, rustidez e o temperamento explosivo existem tanto neste personagem quanto no anterior, porém em medidas diferentes (até as cabeçadas que ele dá em determinada parte do filme soam como uma referência ao filme anterior). Enquanto em Bullhead o personagem se encontrava em uma sucessão de fatos desastrosos que nunca lhe davam oportunidades para ver a vida por pontos de vista menos duros e que dessem a ele condições de mudanças, em Ferrugem e Osso essas oportunidades aparecem gradualmente. Isso não significa que gradualmente o personagem irá melhorar seu comportamento e relações, mas que ele levará um choque definitivo de realidade que o colocará em uma bifurcação decisiva: ou continuar no mesmo caminho de erros, ou trilhar um outro mais suave e promissor.

O filme foi divulgado como um drama denso e difícil, muito pela interpretação visceral e cheia de nuances de Cotillard, mas a verdade é que é mais um filme sobre a busca por superações e o aprendizado de conviver com as dores que nos formam. O encontro e conflito desses dois personagens tão distintos, porém com o mesmo sentimento de impotência e incompreensão, mostra como a relação entre pessoas muitas vezes acontece de forma inesperada e que as conectam de alguma forma, como pedaços que faltam, como muletas umas às outras para a continuidade de uma longa caminhada. Ali é para Stéphannie as pernas que ela não tem mais, a base e o apoio, enquanto ela é para ele o foco que ele precisa, a racionalidade e o sentimento que lhe faltam.

Esse apoio é nítido em três situações cruciais no filme, a primeira quando ele a leva para o mar pela primeira vez, a segunda quando ela resolve apoiá-lo durante uma das lutas que ele estava prestes a perder, e a terceira quando, em uma das sequencias finais, ela ameaça desligar o telefone. São três momentos que deixam claro o que cada um doa para o outro e o que isso representa um ao outro.

Essa relação estranha entre os dois personagens é delicada e cheia de significados sutis sobre as noções de amizade, companheirismo, respeito e amor, mas nada de forma cliché ou enfática no drama sem compromisso, pelo contrário, cada dificuldade ou conflito encontrado por cada um deles é mostrado de forma objetiva, como um obstáculo a ser superado e nada mais. Essa relação, embora forte, é por vezes distante e fria. A tensão sexual que existe entre eles é, para ela, a concretização de algo que outrora era efêmero, e hoje se tornou um prazer raro. Para ele é apenas mais uma satisfação, tal qual lutar, tal qual era pra ela treinar suas baleias. Cotillard afirmou em uma entrevista que o que ela mais odeia como atriz é realizar cenas de sexo, mas que nesse filme em particular ela estava tão emocionalmente conectada com a personagem que ela se sentiu feliz pela intensa satisfação que a personagem teria com estas oportunidades. E nem por isso as cenas de sexo são abusivas ou desnecessárias, são os únicos momentos de intensa satisfação da personagem e da total compreensão de Ali em ver Stephanie como uma pessoa por inteiro, e não por partes. Como a atriz mesmo afirmou, se essas cenas não estivessem no filme, haveria um sentimento do espectador de que algo estaria faltando.

Claro que ele não foge de algumas mancadas como a cena na sacada do prédio em que Stéphannie relembra os comandos de treino com Katy Perry cantando ao fundo como se tudo fosse uma coreografia de video clipe, ou de repente Ali passar a ter uma relação complicada com seu filho quando, no começo do filme, a impressão que se tem é completamente inversa. Mas no mais, o filme consegue atingir o impacto necessário. Um belo, emotivo e sincero filme, por sinal.


CONCLUSÃO...
Ao contrário do que possam ter promovido, não é um filme pesado ou carregado em tragédias ou dramas. Um belíssimo filme sobre as noções de superação e apoio, além do inesperado encontro de dois personagens que não possuem qualquer afinidade, mas cujos conflitos se encaixam para que o equilíbrio exista e esta superação seja alcançada.

CONDUZINDO MRS. TRAVERS...

★★★★
Título: Walt Nos Bastidores de Mary Poppins (Saving Mr. Banks)
Ano: 2013
Gênero: Comédia, Drama
Classificação: Livre
Direção: John Lee Hancock
Elenco: Emma Thompson, Tom Hanks, Colin Farrell, Paul Gimatti
País: Estados Unidos, Reino Unido, Austrália
Duração: 120 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Sobre a dificuldade de Walt Disney em conseguir adaptar a obra escrita por P. L. Travers.

O QUE TENHO A DIZER...
O filme é dirigido por John Lee Hancock, o mesmo do filme Um Sonho Possível (The Blind Side, 2009), responsável por dar o Oscar de Melhor Atriz a Sandra Bullock, que foi um sucesso mais pelo seu tema baseado em fatos reais e em pessoas reais ainda vivas do que por outras qualidades. Filme que peca no excesso do melodrama cliché e que, sim, passa uma mensagem bonita e inspiradora, mas por várias vezes faz um copo de açúcar nunca parecer doce o bastante.

Neste filme o diretor peca nas mesmas coisas: a falta de uma direção mais refinada e coerente com a realidade da época. Assim como seu filme anterior, este parece um tanto desatualizado, com alguns enquadramentos antiquados, exagero na caricatura dos personagens e uma tentativa frustrada de contar a história do surgimento de uma das ficções mais apreciadas tanto na literatura quanto no cinema de uma forma lúdica que nunca, nunca convence. Sua direção tenta ser tão segura e correta que erra justamente por ser feita exatamente dentro dos padrões corretos e imaginados, como que seguidos em uma cartilha para novos diretores.

Talvez muito disso tenha sido por conta de ser uma produção da Walt Disney falando de uma história sobre o Walt Disney, mas com todos os pudores e recatos necessários para que seja um filme familiar e publicitário para as novas gerações sobre o quão bom e visionário Walt Disney era como homem e produtor, mas nunca como um homem manipulador, fedido de cigarro, com uma tosse grossa de puro catarro e poderoso o suficiente para conseguir tudo o que materialmente sempre quis.

A verdade é que o filme é irritante... intragável! A figura de P. L. Travers criada por Emma Thompson, além de toda sua história desenvolvida entre eventos presentes e flashbacks, é o de uma personagem esquisita e caricata, cheia de manias e caretas que, além de beirar o insuportável, se torna antiquada na tela e no propósito do filme, tanto que no começo Emma tenta até presenteá-la com algum tique nervoso que não funcionou, e mais ao fim ela tenta utilizar outros que igualmente mais constrangem do que fazem efeito.

A impressão que se tem é que Travers era uma mulher tão excêntrica, tradicionalista, neurótica e difícil de se relacionar que, para se tornar simpática na tela e atrair a empatia do público que fosse assistir o filme seria necessário pintá-la como uma caricatura tal qual foi feita, regada de momentos apelativamente lúdicos e de excesso sentimental para amolecer uma persona e uma história que não parece ter sido tão "levada nas coxas" quanto é demonstrada pelo filme. É como se a própria Disney quisesse recontar a história à sua maneira, deixando a história de verdade de lado para vir à tona uma fantasia criada por ela mesma, de forma idêntica a qual foi feita com Mary Poppins, bonita na tela, mas bastante diferente do que é nos livros.

Pelas informações que é possível encontrar em pesquisas breves sobre a pré-produção do filme, já se descobre que Travers era uma pessoa de personalidade irrefutável, de decisões irreversíveis, que foi responsável por atrasar a produção em dois anos apenas para o desenvolvimento do roteiro, já que uma das cláusulas da venda dos direitos incluia sua participação e aprovação no desenvolvimento da adaptação, ou seja, não entraria uma letra no roteiro que ela não aprovasse. Isso gerou uma grande crise nos bastidores por conta de constantes discussões e desavenças com Walt Disney que em várias situações ameaçaram impedir de uma vez por todas o filme de ser feito.

Não se sabe ao certo como Disney conseguiu dobrar as constantes relutâncias de Travers ao ponto dela assinar a venda dos direitos, mesmo que não concordando com tantas mudanças que a obra sofreu para sua adaptação (incluindo a inclusão de algumas canções dos irmãos Sherman e até mesmo a sequencia de animação), tanto é que a Disney não possui os direitos dos demais 7 livros da série, bem como os livros estão proibidos para qualquer adaptação cinematográfica segundo cláusulas de seu próprio testamento que, até hoje, tem partes de seu conteúdo não divulgado para a mídia, tão forte e pesado que devem ser as requisições.

Tudo bem que a bem da verdade é que nenhum outro estúdio se preocuparia em contar uma história de bastidores que envolvesse Walt Disney, bem como o que o presidente Alan Horn afirmou de que qualquer outro estúdio além da Disney poderia causar grandes danos à imagem e a marca da empresa é compreensível, mas que o filme é uma desnecessária produção... isso é fato.

Não entendo até agora qual foi a inteção dos flashbacks no filme, pois eles só atrapalham mais ainda a história, pois pouco acrescenta ou fundamenta as razões e motivos de Travers ser como é ou as referências que ela tirou da sua vida para colocar em suas obras. Ok, as figuras principais aparecem e são óbvias, mas nada é aprofundado o suficiente, tudo é muito superficial e banal para apelar situações sentimentais ao invés de ser uma biografia verossímil.

Talvez nada mais banal e contraditório quanto a personagem de Emma Thompson afirmar categoricamente que aboliu a cor vermelha de sua vida, enquanto utiliza batom e esmaltes carmin, ou as partes mais interessantes do filme ser entre ela e o chofer vivido por Paul Giamati, o que o nome do filme seria melhor se chamasse Conduzindo Mrs. Travers. E nada mais marketeiro como o "grande confronto" final entre Mary Poppins e Mickey Mouse, em um discurso pra lá de político e disneylândico de Tom Hanks (que está com cara e jeito de "tio da gente", como disse Rubens Ewald). Como se Walt Disney tivesse certeza absoluta naquela época de que Mary Poppins seria tão grandioso e uma referência imediata de várias gerações.

Será mesmo que ele sabia? Pra mim isso é apenas um discurso oportunista que coube bem no propósito do filme.

CONCLUSÃO...
Filme ruim, esquecível, cheio de interpretações caricatas e cafonas, se é que cafonice existe definição. Uma história amenizada que faria Pamela Travers, se estivesse viva, ter tanta vergonha quanto tinha da adaptação de Mary Poppins.

segunda-feira, 17 de março de 2014

PARA SENTIR A DOR, O PESO E O CHEIRO...

★★★★★★★★★☆
Título: 12 Anos de Escravidão (12 Years A Slave)
Ano: 2013
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Steve McQueen
Elenco: Chiwetel Ejiofor, Benedict Cumberbatch, Michael Fassbender, Sarah Paulson, Paul Giamati, Lupita Nyong'O, Brad Pitt
País: Estados Unidos
Duração: 236 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um violinista negro e livre que, no início do século XIX, foi traficado como escravo de Washington para o sul dos Estados Unidos.

O QUE TENHO A DIZER...
O terceiro filme dirigido por Steve McQueen, o mesmo diretor de Fome (Hunger, 2008) e do controverso e aclamado Shame (2011), dois filmes em que o diretor chega sempre aos extremos e tira os expectadores das zonas de conforto, todos também estrelados pelo ator Michael Fassbender. Claro que com esse título ele não faria diferente, mas agora se baseia no livro homônimo escrito por Salomon Northup, publicado originalmente em 1853 e que conta sua história e tragetória de doze anos como um escravo no estado de Louisiana, nos Estados Unidos, mesmo sendo ele um homem livre.

Depois do sucesso de crítica e público da saga de vingança chamada Django Livre (Django Unchained, 2012), a mídia o taxou como o único filme Hollywoodiano que tratou sobre a brutalidade da escravidão norteamericana de forma crua e próxima da realidade, mesmo tendo os exageros cinematográficos do diretor e sua perspicaz ironia. O próprio Tarantino chegou a alegar o mesmo, dizendo que seu filme fez mais que isso, ele chamou a atenção para reerguer o questionamento de até onde o orgulho e a ganância dos norteamericanos foi capaz de chegar por não apenas maltratar, torturar e matar os negros, mas também a população nativa indígena, e ambos sofrendo consequencias disso até os dias de hoje.

Mas enquanto Django foi uma ficção de ação e romance, com pitadas de drama histórico, era um tanto óbvio e previsível que Hollywood necessitasse abordar novamente o tema, mas de forma mais dramática e apelativa.

Não há como negar que, embora 12 Anos seja um belo e pesado drama histórico sobre um período desumano e cruel que foca a vida de apenas um exemplo dentre milhões de vítimas que existiram, ele foi feito para cumprir seus propósitos de sensibilizar seus espectadores, também reerguer as mesmas discussões e figurar entre os grandes festivais de cinema e premiações. Tanto que a obra a ser adaptada foi escolhida a dedo pela produtora de Brad Pitt, a Plan B. O filme não apenas pegou carona no caminho aberto por Django, como também foi lançado em uma época política muito propícia nos Estados Unidos, quando o único presidente negro da história do país sofre uma queda de popularidade constante. Pode parecer absurdo, mas é o cinema Hollywodiano dançando conforme a política do país.

Embora o livro tenha sido um best seller no período em que foi lançado, com uma tiragem de 30 mil cópias, ele caiu no esquecimento histórico e público por mais de um século, sendo redescoberto na década de 60 por dois historiadores de Louisiana que pesquisaram e traçaram novamente toda a jornada vivida por Solomon. Toda essa pesquisa se transformou em uma nova edição do livro, lançada em 1968, contendo anotações históricas resgatadas de acordo com a narrativa em primeira pessoa de Solomon Northup em sua obra. O próprio diretor afirmou em várias entrevistas que o que mais o chocou foi por nunca ter tido conhecimento da existência do livro até 2008, época em que ele estava engajado na idéia de contar uma história sobre a escravidão norteamericana, mas não conseguia desenvolver um projeto que realmente o interessasse. Foi então que sua mulher encontrou e apresentou a ele uma cópia do livro, que imediatamente chamou sua atenção por ser para os Estados Unidos o equivalente ao que é O Diário de Anne Frank para os alemães, porém lançado 97 anos antes das memórias de Anne.

Frente a isso, o filme foi bastante aclamado e seu destaque na mídia foi tão grande que já figura como um forte produto histórico do cinema norteamericano, o que também resultou na decisão do governo em distribuir o livro para todo o ensino médio dos EUA, um fato raro e respeitável.

Sem dúvida ele consegue cumprir esse papel de representação histórica, muito embora ele não conte ou tente definir de alguma forma, ou em quais circunstâncias, Salomon não apenas era um homem negro e livre como também uma figura social respeitável em Nova York antes de ser traficado como um escravo para o Sul do país. Também é um pouco confuso a forma como esse tráfico ocorreu, já que os poucos flashbacks que o filme mostra não deixam claro se os responsáveis foram mesmo as pessoas que o contrataram para uma temporada de trabalho ou se o sequestro ocorreu posteriormente a isso. Para o desenvolvimento do filme essas explicações podem não ser muito relevantes, pois talvez não haja informações claras sobre isso na própria obra, mas para um embasamento histórico maior no período em que o filme se situa, deixar essas circunstâncias legais um pouco mais evidentes teria dado maior fundamento e densidade não apenas para a história em si como também para aqueles que desconhecem esse delicado e complicado período de transição social nos Estados Unidos que durou quase um século.

Nos demais quesitos tudo se desenvolve como deve: McQueen segue a direção mais segura possível em cima de um roteiro que, embora tente se manter coeso o tempo todo, ainda passa uma leve sensação de que alguma coisa poderia ter sido melhor como, por exemplo, a passagem de tempo. Só temos a percepção de que 12 anos se passaram porque este é o título do filme, mas nunca temos essa sensação além dos poucos cabelos brancos que Salomon apresenta na sequencia final.

Não há como negar que é um filme difícil de ser assistido, duro de ser engolido, pois embora não tenhamos a percepção do tempo ou haja o excesso dramático com a belíssima trilha sonora, porém apelativa, já que não evita invadir cenas para incentivar o sentimentalismo fácil, nada disso, ou nenhum dos poucos defeitos que o filme apresente vai mudar o fato de que o que Salomon viveu, ou qualquer outro negro tenha vivido durante a escravidão (ou ainda viva), reflita a total e completa falta de noção de humanidade e da consciência de igualdade entre as pessoas como homens e seres humanos, seja biologicamente ou baseados na fé e na crença divina, questionamentos bastante recorrentes durante o filme.

Há também um fato muito importante de que, embora seja um filme histórico, sobre relatos do início do século XIX, ele ainda se mantém atual, já que o tráfico de humanos para servidão semiescrava ou escrava ainda é recorrente e de preocupação mundial que não se restringe mais a apenas negros ou a faixas etárias. Pessoas de todas as nações constantemente são sequestradas, traficadas, perdem total contato com suas famílias e são categorizadas como desaparecidas. Muitas perdem suas vidas neste tempo, poucas conseguem retornar anos depois de dadas como mortas, tal qual como ocorreu com Salomon Nurthop.

As individuais noções de sobrevivência e do sobreviver também são transpostas com muita efetividade pelos personagens, incluindo seus questionamentos, mas isso novamente é graças ao elenco escolhido mais do que pelo roteiro. Chiwetel Ejiofor se mantém dentro de uma situação tão limítrofe entre a desistência e a fé que apenas a sua base familiar e as memórias que lhe restam conseguem ser suficientes para que ele não se exceda nem para um lado ou para o outro. A performance da mexicana Lupita Nyong'O realmente é notável. Embora ela seja quase que uma sub-coadjuvante, pois sua participação é mais consistente só na metade final do filme, a constante brutalidade que ela sofre principalmente pela mulher ciumenta de seu dono (vivida pela também ótima Sarah Paulson) são tão chocantes e de intensidade dramática tão forte que os momentos mais deprimentes não são durante as surras ou enquanto seus companheiros cuidam da sua carne dilacerada pelo chicote, mas nos sutis momentos em que ela aparece em cena inesperadamente, que com apenas um olhar, uma atitude, já subentende-se de imediato outros maltratos e abusos sofridos, mas que não foram mostrados em cena, além da dor que ela carrega por saber que sua vida será um constante sofrimento sem fim e sem qualquer oportunidade de escolha, até mesmo para tomar um banho. Aliás, esta sequencia, que é o ápice dramático da personagem, é de um impacto tão grande e chocante que deixa evidente o total descaso e a falta de consideração dos humanos pelos seus semelhantes. O destaque e reconhecimento da atriz obtidos pelo papel é mais do que merecido, bem como dos demais atores como Michael Fassbender, a já mencionada Sarah Paulson e até mesmo Paul Giamati, que tem uma participação pequena, mas surpreende ao sair totalmente dos personagens cômicos que já representou antes. Brad Pitt também faz uma ponta, mas é fraco, forçado e caricato, talvez a interpretação mais esquecível quando comparado com tantos grandes momentos de cada um dos demais.

Cheio de cenas memoráveis, talvez uma das mais tocantes e significativas seja na sequencia em que estão todos os escravos cantando pela a morte de um companheiro, e aos poucos Solomon se rende ao costume e a louvar com uma intensidade crescente e emocionalmente infinita, tanto que a música gospel negra, depois dessa cena, passa a fazer muito mais sentido, pois essa transcendência que esses cantores alcançam é a mesma que o personagem também alcança, e tudo isso se explica na cena por si só.

O filme assustadoramente custou US$20 milhões, um orçamento bastante baixo para uma produção de extrema qualidade, e é considerado um grande sucesso, pois já arrecadou mais de US$150 milhões no mundo. Ele concorreu a 9 Oscars, vencendo apenas nas categorias de Melhor Filme, Melhor Atriz Coadjuvante e Roteiro Adaptado, categorias merecidas, muito embora na categoria de Melhor Filme havia outros grandes concorrentes, mas era previsível, já que como afirmei em posts anteriores, a Academia não apenas é formada em sua maioria por membros antigos e conservadoras como também viram nesse filme uma obrigação em premiá-lo para camuflar um rascismo que ainda é latente nos EUA, no cinema e no mundo.

CONCLUSÃO...
É mais um filme respeitável do diretor Steve McQueen, mesmo que dentro de uma produção segura, mas que deve ser aceita como um produto cinematográfico relevante para a história e para a consciência pública de que atos desumanos são inaceitáveis independente de sua época. Embora tenha uma faixa etária definida, deve ser assistido por todos, sejam eles crianças, jovens ou adultos, para que todos tenhamos consciência da dor, do peso e do cheiro desagradável de ter a dignidade completamente anulada.

terça-feira, 11 de março de 2014

ELA É PRESENTE, EMBORA NÃO EXISTA...

★★★★★★★★★☆
Título: Ela (Her)
Ano: 2013
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Spike Jonze
Elenco: Joaquim Phoenix, Amy Adams, Scarlett Johanson, Olivia Wilde, Rooney Mara
País: Estados Unidos
Duração: 120 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Sobre um escritor solitário que desenvolve uma estranha relação de amor e dependência com um sistema operacional desenvolvido para oferecer as principais necessidades humanas.

O QUE TENHO A DIZER...
Dirigido, produzido e escrito por Spike Jonze, é o primeiro filme em que o roteiro é assinado inteiramente por ele, diferente do que foi com o já clássico Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999) e Adaptação (Adaptation, 2002), que foram escritos por Charlie Kaufman, ou Onde Vivem os Monstros (Where The Wild Things Are), co-escrito por ele e Dave Eggers.

Jonze começou a carreira dirigindo vídeos de música para artistas com conceitos visuais fortes como Björk e R.E.M., onde adquiriu experiência e amadureceu seu estilo que se transformou em uma assinatura forte em Hollywood tal qual como aconteceu com David Fincher ou Tarsem Sigh. Seus filmes geralmente são conhecidos pela narrativa estranha e de desenvolvimentos esquisitos para o público comum, mas propositais para causar impacto em cima de idéias simples e, assim, fugir de clichés ou simples melodramas, fazendo o espectador olhar sobre eles por um ponto de vista mais sensível, humano, que são pouco observados ou até mesmo ignorados, um estilo que se assemelha bastante ao de Wes Anderson, porém por uma narrativa menos fantasiosa e irônica, focada muito mais no que ele quer contar do que na excentricidade de seus personagens.

Ela conta a história de Theodore (Joaquim Phoenix), um escritor que trabalha em uma empresa que escreve cartas virtuais impressas em letras cursivas simuladas, enviadas e assinadas no nome de pessoas que contratam esse serviço para substitur o árduo trabalho de fazerem elas mesmas algo tão pessoal. Por acreditar que suas cartas são perdidas e esquecidas com o tempo, é no trabalho que ele desempenha o seu melhor papel ao dar sentimento em todas as palavras e frases poéticas que utiliza para pessoas que ele não conhece. Sua solidão e a difícil situação de ter que assinar seu divórcio com Catherine (Rooney Mara), sua ex-mulher, deixam nele um vazio que nunca é preenchido e com uma imensa dificuldade de se relacionar novamente com qualquer outra pessoa, incluindo sua única e melhor amiga, Amy (Amy Adams). Sua vida parece não ter sentido e nem graça até encontrar no mercado um novo sistema operacional de inteligência artificial capaz de agir, reagir, aprender e se desenvolver de acordo com as ações, reações e gostos de seu dono, desenvolvendo uma personalidade própria, porém relativa e similar a de seu usuário para que exista empatia e conexão, e é quando ele cria Samantha, a companheira que ele sempre sonhou ter.

A história se passa em um futuro indefinido porém visualmente desconexo com seu tempo, onde a tecnologia virou uma parte tão viva dos humanos que eles se esqueceram de como eles mesmos são, ou de como se relacionam ou devem se relacionar entre si. A frieza e a distância da condição não apenas do personagem, mas de todos os demais, incluindo os figurantes, é representada logo no início do filme com um design de produção e figurinos que abusam de cores lisas e formas geométricas retilíneas, que oferecem uma bela fotografia, mas propositalmente são vazias e inexpressivas, como um catálogo de uma revista. Tudo muito simples, padronizado e dentro de uma organização comum, como se tudo fosse parte desse grande sistema operacional e as pessoas apenas mais uma ferramenta dele, tal qual uma cadeira, uma mesa, um computador e tudo mais que não tenha identidade, apenas uma função.

O mais estranho de tudo é que esquecemos que a voz que conversa com o personagem (feita por Scarlett Johanson), na verdade, é ninguém. Samantha é apenas mais um personagem virtual de interação que, como dito, age, reage e diz coisas que Theodore quer ouvir, sentir ou imaginar, tudo de acordo com as análises vocais, da relação do personagem com outros sistemas, no que ela também aprende com ele e com outras informações absorvidas, já que este sistema tem uma inteligência artifical de adaptação e aprendizado de tudo que está interligado a ele, como muitos sistemas que utilizamos na realidade hoje em dia como, por exemplo, os aplicativos de previsão de texto, que podem "aprender" o modo de escrita de seu usuário e fornecerem frases inteiras com apenas duas palavras conforme o aumento da experiência de uso.

Obviamente que o filme maximiza uma realidade que não existe, mas que está próxima (ou que chegará perto), já que a tecnologia, a cada dia que passa, tenta aumentar cada vez mais essa interatividade entre o homem e a máquina. De qualquer forma, isso tudo nos deixa claro como somos facilmente influenciados não pela tecnologia, mas pela nossa própria imaginação e fantasia, e ao invés de trocarmos essas idéias e vontades uns com os outros, a tecnologia tem nos favorecido a nos isolar cada vez mais dentro dela, algo muito cômodo, pois no medo de sermos mau interpretados, compreendidos, criticados e nos decepcionar com as reações alheias, estamos cada vez mais mergulhando em uma individualidade e em uma interação virtual que nos priva de sofrimentos, mas também nos impede de viver a realidade e aprender a lidar com ela.

De forma indireta essa busca pelo amor ideal e platônico ou a mistura do real com o imaginário já foi abordado em filmes anteriores como A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose Of Cairo, 1985) ou até no mais recente Ruby Sparks (2012), em que um escritor desenvolve um amor tão grande por uma de suas personagens que ela cria vida própria e é perfeita, até ele mostrar seus próprios defeitos que refletem na sua própria criação, o que se assemelha bastante ao conflito vivido neste filme entre Theodore e Samantha, quando ela passa a aprender com ele os seus próprios erros e a mostrar pra Theodore não uma personalidade própria, mas um espelho daquilo que ele realmente é.

A princípio até pode parecer que seja, mas o filme não faz parte da teoria de Isaac Aazimov de que uma inteligência artificial poderá desenvolver uma inteligência própria e independente, como em O Homem Bicentenário (Bicentenial Man, 1999), baseado em obra do próprio cientista, porque Samantha nada mais é do que a resposta de uma vontade do próprio personagem. Ela não tem idéias e sentimentos como diz ter, e ela não tem vontades e nem sensações, ela apenas expressa toda uma fantasia em resposta ao que ele mesmo cria, muito embora a função dela seja de fazê-lo acreditar de que aquilo é real. Theodore tanto acredita nisso que quando um de seus amigos diz que Samantha é hilária, nenhum deles sequer imaginam que ela é assim porque ele é hilário, mas ninguém o conhece dessa forma porque ele nunca se deu a oportunidade de se mostrar assim a não ser para ela.

Toda essa correlação entre ele e seu sistema faz existir uma empatia e uma conexão direta entre eles, florescendo o entusiasmo de uma amizade pelas afinidades e pela sinceridade nas quais ela foi programada a ter, que posteriormente amadurece a uma paixão por ser correspondido a algo que ele sempre buscou, e culminar no florescer do amor porque, para ele, ela é única. É a pura definição do verdadeiro amor platônico, que existe apenas dentro daquilo que ele imagina ser o ideal. A existência de Samantha também alimenta cada vez mais a solidão que ele tanto desprezou, mas que agora é confortável porque ela está presente, mesmo que não exista.

A diferença das relações fica clara quando sua amiga, Amy, em uma das sequencias do filme, conta os motivos e razões de seu relacionamento de oito anos ter acabado por algo tão banal, porém real e inevitável, mostrando que por mais que o tempo passe, por mais que os anos avancem e o homem evolua, ele nunca se habituará a isso, e fugirá de uma relação sempre que possível quando as dificuldades se tornarem maiores do que as vontades, e Theodore ouve tudo como se fosse uma história comum e banal, seguro de que entre ele e Samantha isso nunca irá acontecer.

Jonze não tenta em nenhum momento criticar a existência de tal tecnologia ou da possibilidade dela existir, até porque no filme isso é tão comum que ninguém se espanta quando o personagem revela "namorar" um sistema operacional. Ele muito menos também tenta sequer criticar o aumento da individualidade e da introspecção das pessoas frente a tecnologia, pelo contrário, ele mostra os seus prós e contras de forma sutil, como uma experiência de vida qualquer que deve ser desfrutada para próprio autoconhecimento, mas que em nenhum momento devemos ficar presos a ela ou a qualquer outra coisa, pois todas elas, independente de serem concretas ou abstratas, são vãs e passageiras, restando apenas o sentimento e a memória, já que são as únicas consciências reais e que ficam. Isso tudo é muito claro quando, em um diálogo bastante comovente, novamente a personagem de Amy Adams, sensibilizada quando Theodore confessa se sentir um louco por estar apaixonado por algo que não existe, diz que não há nada de louco nisso, e que depois de tantas coisas que viveu e na atual situação e época que se encontra, ela quer somente ser feliz, independente da maneira que seja, mesmo que com algo que não exista.

Em um mundo onde as pessoas contratam uma empresa para escreverem e forjarem suas próprias cartas à mão, quando elas mesmas estão tão vazias de sentimento e vontade que é necessário que alguém faça isso para elas, Jonze não economiza em mostrar que a busca pelo reconhecimento e do amor são como drogas, e que todos nós temos necessidade vital de tê-la e consumi-la, não importa como.

CONCLUSÃO...
Merecidamente Jonze levou todos os principais prêmios que concorreu por Roteiro Original, que é brilhante no seu desenvolvimento e no levantamento de questões sentimentais e existenciais, sincero nos sentimentos que carrega e uma lição de que experiências devem ser vividas intensamente para o crescimento e desenvolvimento do caráter, e que o amor é uma grande escola, pois é o sentimento mais sincero e humano que apenas os humanos tem, muito embora pouco sabemos lidar com ele.

sexta-feira, 7 de março de 2014

MELHOR QUE O LIVRO DE NOVO...

★★★★★★★
Título: Jogos Vorazes: Em Chamas (The Hunger Games: Catching Fire)
Ano: 2013
Gênero: Ação
Classificação: 12 anos
Direção: Francis Lawrence
Elenco: Jennifer Lawrence, Josh Hutcherson, Woody Harrelson, Elizabeth Banks, Jena Malone, Donald Sutherland, Stanley Tucci, Philip Symor Hoffman
País: Estados Unidos
Duração: 146 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Katniss pode ter vencido o Jogos Vorazes, porém se transformou em uma ameaça ao Presidente Snow e ao seu poder totalitário.

O QUE TENHO A DIZER...
Em Chamas foi dirigido por Francis Lawrence, mais conhecido por ter dirigido Eu Sou A Lenda (I'm A Legend, 2007). É a segunda parte da tetralogia de filmes (a trilogia é apenas na série de livros, já que o último episódio, A Esperança, será dividido em duas partes nos cinemas, a serem lançados em 2014 e 2015).

Também é a firmação de Jennifer Lawrence como a grande e atual "Namoradinha da América", já que os dois primeiros filmes já arrecadaram mais de US$1,5 bilhão no mundo até o momento, além do Oscar que já recebeu em 2013 por O Lado Bom da Vida (Silver Linings Playbook, 2012) e outras duas indicações, sendo a segunda este ano por Trapaça (American Hustle, 2013).

É engraçado como o cinema às vezes nos surpreende, pois a maioria dos filmes baseados em livros bons costumam ser de medíocres a constrangedores, como, por exemplo, grande parte das adaptações das obras de Stephen King. Algumas outras conseguem fazer jus às obras que são baseadas, como a série Harry Potter ou O Senhor dos Anéis. Raras são as vezes em que livros tão pobres em narrativa ou descrição conseguem resultar produtos válidos de entretenimento, como acontece com esta série.

É nítido observar nos livros que a escritora Suzanne Collins utiliza uma narrativa em primeira pessoa para se abster de uma ação mais descritiva, talvez porque ela não tivesse idéia do que estava fazendo, ou também porque ela realmente não tenha talento o suficiente para descrever Panem e seus conflitos de forma tão detalhada como seria de costume em uma série épica, tanto que o roteiro que ela co-escreveu para o primeiro filme amplia o mundo distópico e compensa todas as faltas de criatividade literária que ela apresenta nos livros (com excessão da violência, que nos filmes é muito mais suave).

Claro, não podemos negar o fato de falarmos de uma série infanto-juvenil que conseguiu consquistar até jovens adultos nos Estados Unidos, país onde ele foi mais popular até o lançamento do primeiro filme, mas isso não justifica narrativa tão pobre e fácil, esquecível e que muitas vezes deveria ser dada a pré adolescentes para iniciação à leitura.

Com o fim das séries Harry Potter e Crepúsculo, adolescentes ficaram sedentos a procura por alguma nova série popular que pudesse compensar o buraco e a falta de assunto nas escolas. Eles encontraram em Jogos Vorazes algo que chamasse a atenção. De fato, o livro, embora pobre, possui uma idéia interessante, mas sabemos que de originalidade ele pouco (ou quase nada) tem.

Aparenta-se que a verdade é que Suzanne Collins se apropriou de uma obra japonesa escrita por Koushun Takami, chamada Batalha Real (Batoru Rowaiaru), lançada em 1999, sete anos antes de Collins lançar o primeiro livro de sua saga. Muito do que Collins utiliza em seus livros é bastante similar ao utilizado por Takami, há apenas algumas diferenciações de narrativa, culturas e ações, tudo de forma muito mais acessível para o ocidente. Mas a premissa, o tema e o conceito principal são os mesmos. Claro que hoje em dia há uma rivalidade entre os dois livros, mas não podemos ignorar o fato de que a obra de Takami é original por ter sido lançada antes, além de muito mais densa, melhor elaborada e descrita do que a de que a pobreza literária de Collins.

Seguindo a história do primeiro filme, agora Katniss Everdeen, a heroína que conseguiu sobreviver ao Jogos Vorazes juntamente com seu "suposto" amado, agora se transformou em uma ameaça ao governo de Panem, que abusa de seus cidadãos que vivem sobre uma repressão política e ditatorial presidida pelo temido Snow. Katniss virou um símbolo de liberdade e mudança de paradigmas para toda a população, e agora, tanto ela, quanto o povo, serão mais oprimidos do que nunca. Para mostrar que quem manda é o Governo, a nova edição dos Jogos Vorazes contará com a presença de todos os vencedores de todas as edições ainda vivos, e toda e qualquer ameaça de manisfetação por parte do povo será retaliada severamente.

Nos livros toda essa discussão política e social nunca é citada diretamente, já que, como dito, a narrativa é em primeira pessoa e bastante pobre em ações descritivas por parte da personagem principal. O grande atrativo, tanto do primeiro filme, quanto desta continuação, é que muito foi feito com tão pouco. No filme tudo faz mais sentido e há menos melodramas, clichés ou discurso inútil como nos livros, e a relação entre o Governo e o povo toma proporções revolucionárias que chegam até a ser bastante familiares com acontecimentos atuais pelo mundo.

Com certeza o desenvolvimento desta segunda parte é muito melhor realizado, talvez pelo roteiro, que não é mais assinado de forma bastante amadora pela escritora como foi o primeiro filme, mas, sim, por dois roteiristas já gabaritados como Simon Beaufoy e Michael Arndt. Esta segunda parte também ameniza o surto tecnológico do primeiro filme, com o uso exacerbado de efeitos especiais inúteis para cobrir buracos na história e no roteiro (muito embora este filme tenha sido mais caro, talvez pelos cachês). A sensação de sobrevivência dos personagens e de perigo eminente também são muito mais efetivos, e a história tem um crescente de fatos realizados de forma tão interessante, linear e coesa que, se nada fosse amenizado para o bem do público adolescente, o filme sem dúvida seria uma grande obra de ação adulta e até uma crítica política relevante. Tudo está muito bem colocado dentro das possibilidades. A história se desenvolve quando deve e as cenas de ação ocorrem quando precisam, muito embora os conflitos e dramas sejam desenvolvidos de forma muito ruim como a relação entre Katniss, Gale e Peeta, além da ainda dificuldade dos roteiristas em saber lidar com tantos personagens ao mesmo tempo. Mas no fim tudo culmina a uma sequencia final que realmente pega o espectador de surpresa e o deixa frustrado pela falta de resolução, deixando-o também ansioso para que a terceira parte chegue logo.

É impossível negar que grande parte da efetividade do filme é por conta de Jennifer Lawrence, sendo a atriz o enorme diferencial entre Jogos Vorazes e demais franquias para adolescentes lançado nos últimos anos.

Mas nada é muito perfeito. O segundo filme tenta dar uma introdução no início da revolução popular contra o Governo, além da história girar em torno de um enorme reality show assistido por toda a população para que eles sejam constantemente lembrados de que é o Governo de Snow quem manda, oprime, decide e obriga, só que pouco disso é mostrado ou explorado pelo ponto de vista do povo. Todo o foco fica apenas sobre a personagem principal e alguns outros poucos que a circundam, como se os roteiristas tivessem definitivamente esquecido o que está acontecendo fora da enorme redoma e de que o filme, na verdade, é uma ficção sobre uma releitura do romano pão e circo. Não temos a noção de como é para o povo assistir ao evento transmitido enquanto o medo se alastra pelas ruas, e tampouco vemos essa "tal" revolução popular evoluir, ou como todos estejam lidando com esta situação. Tudo ocorre de maneira muito subliminar e oculta no filme, o que é um dos grandes erros da produção e que dá a sensação de que as mais de duas horas de duração poderiam ter sido melhor aproveitadas.

Não dá pra dizer que Em Chamas é um filme excepcionalmente para o público jovem. O público mais maduro e que busca entretenimento e pipoca pode se satisfazer muito bem com este filme (mais do que com o primeiro), até mesmo porque, como dito, a atriz principal eleva o nível da produção, bem como demais coadjuvantes como Woody Harrelson, Elizabeth Banks (em uma participação merecidamente maior) e a inclusão de Jena Malone, que aqui repete um pouco do que foi feito em Sucker Punch (2011), mas dá um empurrão interessante no filme.

É sentar e aproveitar.

CONCLUSÃO...
Fora os pequenos defeitos do subaproveitamento das tramas paralelas e alguns excessos direcionados ao público juvenil, o longa consegue entreter e cumprir o que propõe, e mais ainda em dar densidade a uma série de livros que excede o reciclável e esquecível. Ou seja, o cinema Hollywoodiano ainda consegue e tem poderes suficientes para fazer uma grande arte com o lixo, mas nem sempre há desempenho suficiente para isso.

quarta-feira, 5 de março de 2014

OSCAR NA MEDIDA CERTA...

Nas previsões que realizei nas categorias principais, só errei nas de Atriz Coajuvante e Roteiro Original, pois realmente foram duas grandes surpresas, já que Jennifer Lawrence era, de fato, a predileta por ser, como Ellen DeGeneres mesmo a chamou durante a premiação, a nova "Namoradinha da América". David O. Russel também parecia ser favorito ao menos no roteiro, mesmo que não seja segredo a ninguém que dentro do roteiro este diretor pouco fica, já que adora dar atenção e liberdade a improvisos.

Lupita Nyong'O e Spike Jonze terem recebido o prêmio foi de uma imensa satisfação. A primeira por ser uma atriz não-americana e o segundo por ser um diretor de filmes excêntricos, porém sempre carregados de um sentimento sincero e incomum, ou seja, um diretor delicado e sensível que, em seu primeiro roteiro solo comprovou que não apenas é um grande diretor, mas também sabe escrever e contar uma história.

Também não era surpresa que o Oscar este ano seria agradável, mesmo sendo uma festa chata, interminável e entediante. Tivemos o imenso prazer de ter Ellen DeGeneres como anfitriã da premiação pela segunda vez. Aparentemente os organizadores da festa finalmente concordaram que sua primeira apresentação em 2007 foi a melhor da última década, pois foi dinâmica, com um teor de humor leve e familiar e que fugiu de constrangimentos políticos como o de Jon Stewart em 2006 ou tentou enfiar guela abaixo um humor chato e irritante como foi o de Chris Rock em 2005. Ellen é realmente uma mulher fina e elegante, com um senso de humor diferenciado, leve, agradável e simpático. Isso tudo talvez por estar há anos na televisão comandando programas no horário nobre, o que lhe deu experiência suficiente para saber como tratar um público etário variado e eclético, diferente do que foi com o humor constrangedor de MacFarlane em 2013, ou o sarcasmo ranzinza de Billy Christal em 2012, ou a bobagem de James Franco e Anne Hathaway em 2011, e por aí vai. Ellen também não perdeu tempo para criar piadas que zombassem da própria festa, de Hollywood, ou de seus convidados, o que aconteceu em demasia nos últimos anos e me fazia questionar qual a razão da premiação existir se quando seus apresentadores abrem a boca é para fazerem piadas irônicas ou sarcásticas sobre ela mesma. Ou seja, se os próprios membros da Academia, seus organizadores e apresentadores não a levam a sério, quem é que levará? Pois o público já deixou de levar há muito tempo desde quando filmes foram premiados mais por um favoritismo comercial do que pela qualidade, ou desde quando o lobby e o conchavo sempre foram mais valiosos do que as cédulas de votação, ou desde quando, ano após ano, repetidamente, a Academia comete erros irreparáveis que tentam ser consertados no futuro sem êxito, como as estatuetas dadas a Titanic em 1998, ou o Oscar dado a Gwyneth Paltrow em 1999, ou Anne Hathaway ganhar um prêmio em 2013, só para lembrar algumas das enormes mancadas da premiação.

2013 houve grandes filmes, mas poucos. Filmes de grande qualidade, mas a maioria ainda dentro da zona hollywoodiana de conforto. Vale dizer que 2013 foi um ano muito mais interessante na televisão do que no cinema, só para mostrar que falta ousadia nos longas metragens, pois há público para tudo.

A apresentação correu como devia e Ellen conseguiu, mais uma vez, diminuir a distância do palco com a platéia, e do show com seus espectadores. É sempre muito agradável, naturalmente engraçado e prazeroso vê-la vagando entre a platéia para interagir com os atores, como no momento em que perguntou quem gostaria de comer pizza em um bloco para, no outro, ela realmente sair distribuindo pizzas. Ver atores de gabarito como Meryl Streep mostrarem-se como pessoas comuns, que pegam até dois pedaços de uma vez, é realmente o que faltava para mostrar de forma indireta ao público que a festa pode ser glamurosa, mas todas as pessoas lá presentes são comuns e fazem coisas comuns como qualquer outra e não há nada de excepcional nisso.

Novamente foi um ano previsível em sua maioria, mas não foi injusto. Todos os filmes mereceram seu reconhecimento de uma forma ou outra, e até mesmo aqueles que sairam de mãos abanando tiveram seu reconhecimento pelo público, que lotou as sessões para ver títulos que não era esperado o sucesso que tiveram, o que mostra que o público vagarosamente está mudando, ávido por novidades.

Premiar Lupita e Cuarón não apenas foi uma atitude sensata como de extrema coerência. Darem preferência a Blanchett do que a Bullock foi triste para muitos, mas de nenhuma forma injusto e premiar 12 Anos de Escravidão já estava escrito, mas foi bonito mesmo assim.

Claro que a festa ainda continua longa, com números musicais cansativos quando poderiam ter as canções encurtadas apenas para demonstração, tal qual são as audições em The Voice, além da Academia insistir em não abrir uma categoria técnica para a premiação de dublês, o que realmente é uma vergonha e é apoiado de forma quase unânime tanto pelo público quanto por atores e diretores, cuja discussão voltou à tona em 2013 com a campanha erguida por Jason Stathan para que isso acontecesse.

Mas como um todo não há muito do que se reclamar do Oscar 2014 que, para título de curiosidade, foi o mais assistido nos últimos 14 anos, além de ter quebrado recordes históricos no Twitter... uma prova de que Ellen realmente é uma mulher popular e carismática, e mais poderosa do que imagina.

domingo, 2 de março de 2014

ÚLTIMAS APOSTAS PARA O OSCAR 2014!

Vou ser bem direto nas minhas apostas desse ano. Vamos lá...

MELHOR FILME
Acredito que 12 Anos de Escravidão seja o grande vencedor, mas a disputa entre ele, Trapaça e Gravidade, é grande. Mas Hollywood é previsível, bem como a Academia, já que é formada em sua grande maioria por membros antigos e conservadores, e que hoje em dia adoram camuflar seu rascismo latente premiando títulos como esse.

Mas minha escolha pessoal é Gravidade. Além de um gande filme de ação, é belíssimo, com detalhes técnicos minusciosos e, sem dúvida, mais um grande marco e uma nova referência na ficção científica para as gerações futuras. Mas Hollywood não levará isso em consideração.

MELHOR DIRETOR
Alfonso Cuarón, por Gravidade. Todo o planejamento que o diretor teve para realizar filmagens de um exagerado nível de complexidade, ainda cheias de dificuldades técnicas mesmo que elas estejam avançadas o suficiente. A direção de Cuarón é impecável em todos os aspectos, desde o elenco, até no desenvolvimento da história em cima do roteiro, os impactos audiovisuais desejados e que ele conseguiu com maestria. São notas extremamente relevantes para considerar que sua direção merece o reconhecimento. Cuarón vem abocanhando todas as premiações, já ganhou no Globo de Ouro, Bafta e Critic's Choice, e particularmente também é o meu preferido neste ano.

MELHOR ATOR
Matthew McConaughey, por Clube de Compra Dallas, será o vencedor este ano por razões óbvias. Como já falei em posts anteriores, Hollywood adora personificações de estereótipos. Mas fora isso, a atuação do ator é impressionante. Embora ele tenha feito uma transformação física drástica, ele nunca apela ou abusa disso no filme para causar impacto. Seu desempenho no filme é marcante, bem como vem sendo marcante filme após filme do ator nos últimos dois anos, e levar o prêmio também significará o reconhecimento do talento do ator, que andava um pouco adormecido, mas agora voltou na melhor forma. É meu preferido este ano, embora Christian Bale também esteja ótimo.

MELHOR ATOR COADJUVANTE
Jared Letto, também por Clube de Compra Dallas. Particularmente não tenho muita simpatia por esse ator, mas é necessário admitir que ele sabe escolher bons filmes e bons papéis. Sua performance é notável, mesmo estereotipada e caricata, mas é delicada, carregada de um sentimento de incompreensão e ausência de afeto que deixa aquela sensação de engasgo o tempo todo. Também é meu preferido, até porque este ano esta categoria está bem fraca.

MELHOR ATRIZ
Talvez seja a categoria mais concorrida este ano, cheia de brilhantes interpretações. Tudo indica que, mesmo 2013 tendo sido novamente o ano de Sandra Bullock, que emplacou dois filmes que juntos arrecadaram quase US$1 bilhão no mundo, repetindo a façanha de 2009, dessa vez o prêmio irá para Cate Blanchett. Finalmente a atriz levará pra casa a estatueta de Melhor Atriz, para fazer companhia a de Melhor Atriz Coadjuvante que ela já recebeu em 2005 por O Aviador. Merecido. Cate é, sem dúvida, uma das melhores atrizes de sua geração e da atualidade. Minha torcida, apesar de tudo, ainda fica por Sandra Bullock, que realmente soube carregar Gravidade inteiramente nas costas de uma performance sutil e extremamente técnica, atenta a pequenos detalhes que fizeram uma enorme diferença. Isso não diminui as igualmente brilhantes performances de Amy Adams, por Trapaça, que concorre pela quinta vez, mas infelizmente não terá chances. Meryl Streep também faz um belo trabalho em Álbum de Família, mas quem disse que ela precisa ganhar novamente?

MELHOR ATRIZ COADJUVANTE
Não está uma categoria muito forte. Julia Roberts até faz um bom trabalho em Álbum de Família, mas nada de excepcional. As mais fortes são Lupita Neyong'o por 12 Anos de Escravidão e a favorita Jennifer Lawrence, por Trapaça. Jennifer levará o prêmio por ser a nova "Namoradinha da América", pela sua superexposição e superestimação da mídia, a imagem moderna que Hollywood estava incansavelmente na procura e finalmente achou.

MELHOR ROTEIRO ORIGINAL
É a segunda categoria mais concorrida, mas ao contrário da categoria de Melhor Atriz, este não há favoritos e a previsão é difícil. Trapaça, Blue Jasmine e Ela encabeçam o favoritismo. Mas conhecendo Hollywood, os vencedores sejam mesmo Eric Warren e David O. Russel, ao invés de Spike Jonze, que vem recebendo grandes elogios. Mas pode ser que haja uma reviravolta nisso.

MELHOR ROTEIRO ADAPTADO
Será 12 Anos de Escravidão, sem dúvidas. Não há grandes concorrentes, e as adaptações são bastante previsíveis e dentro de uma zona de conforto já pré determinada na indústria, e se é pra existir um filme favorito, que seja ele.
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