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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

DESDE O PRIMEIRO EPISÓDIO...

★★★★★★★★☆☆
Título: The Sinner
Ano: 2017
Gênero: Drama, Suspense, Mistério
Classificação: 16 anos
Direção: Vários
Elenco: Jessica Biel, Bill Pulman, Christopher Abbott
País: Estados Unidos
Duração: 60 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Após assassinar um homem desconhecido, uma mulher tenta descobrir o que a levou ter esta atitude violenta.

O QUE TENHO A DIZER...
Chelsea Handler uma vez disse em seu programa que, ao conhecer Jessica Biel, se surpreendeu pela sua beleza, talento, inteligência e espirituosidade. De fato, quando a atriz chamou a atenção no remake de O Massacre da Serra Elétrica (2003), sabíamos que ela não era apenas mais um rostinho bonito colocado lá apenas para chamar atenção. Mas seguindo um caminho totalmente inverso ao esperado, ela nunca abraçou o título de estrela que Hollywood quis, com tanta insistência, condecorá-la. Uma carreira sempre muito comedida e discreta, que tenta se manter relevante fora do grande circuito comercial, produzindo sua estréia no primeiro seriado em que é protagonista. Ela já havia se aventurado como produtora antes, como no filme O Homem das Sombras (2012), cuja personagem de personalidade igualmente desfragmentada mostra a predileção da atriz por temas psicologicamente complexos.

Ler a sinopse de The Sinner, sobre uma mulher que comete um crime sem se lembrar dos motivos que levaram a isso, pode não parecer novidade. Afinal, quantos filmes e séries existem por aí com um argumento parecido?

Mas quando damos a série uma oportunidade é que descobrimos que, ao longo dos episódios, a história pode soar similar e a sua construção, feita através de flashbacks e memórias desconexas, pode parecer genérica, mas seu diferencial é sair da obviedade de maneira inteligente e, no fim, nada ser aquilo que imaginávamos.

O primeiro episódio é surpreendente por si só, e serve como uma poderosa ferramenta de persuasão, já que instantaneamente irá conquistar o interesse do espectador em compreender os motivos e razões para Cora Tannetti (Jessica Biel) ser a personagem perturbada e multidimensional que é. E se tem uma coisa que esta nova produção selada pela Netflix faz com categoria é nos dar a mesma agonizante sensação que a própria personagem tem de que, conforme os fatos se revelam, mais complexo o desenvolvimento fica e menos ainda percebemos saber sobre tudo, embrenhando todos em um labirinto que não parece ter fim ou saída, e é por isso que a protagonista, desde o princípio, é tão enfática sobre sua própria culpa.

É essa consciência de culpa que irá criar uma empatia imediata dela com o público, por mais brutal e doloso que seu crime possa parecer, porque a princípio o roteiro não se interessa em convencer o espectador do contrário. O que é um grande ponto de partida, já que facilmente poderíamos deliberadamente condená-la e julgá-la a nossa própria maneira caso seu arco dramático não tivesse sido bem construído, ou oferecesse perspectivas diferentes do que aquela que o roteiro constrói a passos lentos e densos.

Enquanto Cora está convicta de que nada é capaz de retirar dela a responsabilidade de seus atos e que ela deve ser punida por isso (o que a princípio concordamos e de estranha maneira nos sensibilizamos), é óbvio que, como observadores, sabemos que existe mais na história do que aquilo que espelha em sua superfície. É com esse objetivo esclarecedor que entra em cena o delegado Ambrose (Bill Pulman), que quer a todo custo compreender as motivações que levaram Cora ao homicídio, por mais que os testemunhos e a própria confissão de culpa dela já fossem o suficiente para sua sentença e encerramento do caso.

Ambrose se dedica na investigação por diversos motivos. Assim como ela, ele também carrega consigo culpas e complexos resultantes de uma vida pessoal e profissional falida em uma cidade pacata e socialmente doente. Ele se sente inferiorizado, estagnado, preso em um ciclo contínuo de dúvidas e buscas, submisso ao meio em que vive. Sua incondicional dedicação ao caso de Cora deixa de ser uma obrigação para se tornar uma punição, uma necessidade quase obsessiva de se redimir das próprias culpas que carrega. 

Fazia muito tempo que não assistia um seriado tão intrigante como esse. De igual valor, ele se assemelha bastante à primeira temporada de Damages (2007-2012) na maneira surpreendente em que as tramas e subtramas se revelam através de fatos presentes e flashbacks. Mas enquanto em Damages a intenção era criar um suspense criminal e jurídico consistente e cheio de reviravoltas, aqui existem diversas camadas dramáticas que se sobrepõem umas às outras, desconstruídas de tal forma a reproduzirem de maneira eficiente a confusão em que a protagonista se encontra, numa complexidade psicológica convincente, que irá justificar absolutamente todos os comportamentos dos personagens, seus traumas, complexos e vulnerabilidades. Por isso se enquadra nas séries com os personagens mais ricos a estar disponível no serviço atualmente. E por conta de seu enredo e de algumas construções, é um tanto impossível também não perceber certas similaridades narrativas com Alias Grace, outra mini-série recente da Netflix, já que ambas protagonistas, mesmo convictas de suas próprias culpas, sejam consequências decorrentes de diversas situações delicadas de abusos familiares e traumas sociais.

Igual a outros produtos do mesmo gênero, a série se destaca por nada ser aquilo que parece ser. Existem os elementos dispersivos, como em qualquer outra produção que se utiliza da mesma fórmula construtiva, mas ao contrário do que comumente costuma ser, não são elementos enganosos soltos aleatoriamente para distrair ou confundir o espectador gratuitamente, os chamados red herrings. O desenvolvimento da história tem sua linearidade na narrativa presente, mas não linear na sua narrativa passada conforme as memórias de Cora se encaixam como um quebra-cabeças, e em momento algum isso é um artifício barato de tentar trazer falsa densidade. Como dito, os níveis de complexidade dos personagens são construídos de forma vagarosa, camada a camada, e tudo o que é mostrado terá sua devida importância no momento certo, resultando em um produto bem pensado, organizado e tecnicamente correto.

Há diversas situações surpreendentes e reviravoltas inesperadas justamente pela maneira cirúrgica como as subtramas são sobrepostas. Existem momentos bastante chocantes em outros núcleos, havendo até mesmo uma sequência um tanto perturbadora se vista de forma superficial e preconceituosa, mas realizada de maneira tão delicada e bem justificada que deixa de ser um simples incesto para se tornar um situação singular de extrema compaixão. A trajetória paralela de descobertas e buscas em que Cora e Ambrose traçam, um se tornando a metáfora do outro, confinados cada um dentro de seus próprios complexos, gera entre eles um nível de mútua cumplicidade, confiança e dependência que nenhum deles havia se disposto até então, aflorando sentimentos honestos de maneira natural e emotiva que os ajudam a superar os obstáculos e adversidades ao longo do caminho.

The Sinner é explícito em todos os sentidos, seja na sua brutalidade física ou psicológica, sendo intrigante, chocante e provocativo nos temas que aborda em medidas certas, uma experiência bem diferente e satisfatória dentro de um enredo que parece simples, mas construído com tanto cuidado e atenção a mínimos detalhes que falar qualquer coisa dele além de questões técnicas é estragar completamente a experiência surpreendente que ele oferece em diversos momentos.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

DEU LIGA...

★★★★★★★☆
Título: Liga da Justiça (Justice League)
Ano: 2017
Gênero: Ação, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Zack Snyder, Joss Whedon
Elenco: Ben Affleck, Gal Gadot, Jason Momoa, Ezra Miller, Ray Fisher, Henry Cavill, Amy Adams, Diane Lane
País: Estados Unidos, Reino Unido, Canadá
Duração: 120 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Inspirado pela altruísta morte de Superman, Batman busca ajuda de Mulher Maravilha para recrutar outros aliados poderosos e assim terem forças o suficiente para combater uma grande ameaça que está por vir.

O QUE TENHO A DIZER...
Em 2000, quando Brian Singer lançou o primeiro X-Men, cinéfilos visionários já sabiam que um novo gênero havia sido criado, e que os quadrinhos revolucionariam para sempre o futuro estagnado do cinema de ação. Hollywood tem se aproveitado disso incansavelmente, tanto que tem sido o gênero mais rentável desde então. Só as produções da Marvel já tiveram uma bilheteria que facilmente extrapola os US$20 bilhões quando se faz uma conta bem por cima, sequer sendo necessário analisar os dados contábeis no Box Office Mojo.

Quase 20 anos depois, muita pedra rolou, e enquanto a comissão de frente da Marvel foi abrindo alas, criando tendências e fórmulas, a Warner/DC mofava num mundo paralelo, acreditando que a coexistência ente os quadrinhos e o cinema seria algo passageiro. Por essa razão, preferiu permanecer na zona de conforto explorando apenas aquilo que sempre lhe deu lucro: o mundo obscuro de Batman. Os anos foram passando, a Marvel se divertia horrores e ria à toa, e o gênero, ao invés de decair, apenas se fortalecia. Houve uma tentativa aqui e alí da DC com o nostálgico Superman - O Retorno (2006), com o desastroso Lanterna Verde (2011) e o dispensável Homem de Aço (2013), e do nada, resolveu acordar para a vida e pegar este último como o ponto de partida daquilo que ela veio a chamar de Universo Expandido.

A pressa é a inimiga da perfeição, já dizia o ditado. O que demorou 20 anos para a Marvel aperfeiçoar, a Warner/DC resolveu fazer em 3. E o pior, sem qualquer pré-requisito. Ao invés de se aproveitar das experiências da rival, ela quis se provar única, pegando um ou outro elemento irrelevante da "concorrência" e transformando todo o resto para dizer que havia uma assinatura particular.

Funcionou? Não.

Os filmes estão aí para provar. Se Homem de Aço já começou todo errado, Batman vs. Superman foi um equívoco e Esquadrão Suicida foi tudo aquilo que Esquadrão Suicida não deveria ter sido, sobrou a Mulher Maravilha a salvação. O filme de Patty Jenkins conseguiu ser o momento de grande redenção da DC, conquistada com merecimento. E até o momento, não foi Batman, nem Superman, quem salvou o Universo Expandido da DC, mas a heroína grega criada por William Moulton Marston.

É compreensível que exista uma rincha entre os fãs da Marvel e os da DC. O mercado sempre precisou disso desde quando a rivalidade começou lá nos quadrinhos, nas décadas de 60, 70 e posteriores. Sabemos também que, enquanto os fãs se matam, os dois grandes selos jantam e brindam juntos, gargalhando de uma situação que o próprio mercado cria espontaneamente, caso contrário as empresas nunca teriam feito os famosos crossovers, como as mini-séries em quadrinhos DC vs. Marvel e Amálgama, ambas da década de 90.

Mas no cinema a coisa tomou proporções mais sérias, e a polaridade se tornou quase política. Por um lado temos os fãs da Warner/DC que não aceitam o constante sucesso da Disney/Marvel, argumentando pelos quatro cantos que a crítica mundial foi comprada (???) para falar mal a qualquer custo sobre os filmes da Warner/DC e deliberadamente denegrir sua imagem. Por outro lado temos os fãs da Marvel, que tiram sarro do fracasso alheio e contribuem para a anti-propaganda.

A verdade é que os dois lados estão errados. Há espaço para todos, mas não há espaço para aquilo que é evidentemente mal feito e mal planejado. Os filmes da Marvel podem ter entrado numa fórmula já cansada, ter excesso de piadas infantis e um irritante bom humor como os últimos filmes tem sido, mas a ação, o entretenimento e as conexões com todo seu universo funcionam. A Warner/DC ainda engatinha, e a cada passo para frente, um novo filme a faz dar dois para trás porque não há uma estrutura sólida, uma base concreta suficiente como a Marvel demorou anos para lapidar. Do Homem de Aço para o dia, a DC resolveu finalmente criar um universo cinematográfico com 15 anos de atraso que poderia dar certo, já que nos games e na TV esse universo já existe, é sólido, e funciona. Não está funcionando não porque chegou atrasada, mas porque existe uma ânsia obrigatória de sucesso e um foco ambicioso em cifras que a está fazendo atropelar processos, trocando os pés pelas mãos.

Um ou outro fã extremista pode querer justificar de mil maneiras que Batman vs. Superman e Esquadrão Suicida foram propositalmente subestimados. Não importa o que se diga, é fato que são dois filmes que fazem qualquer coisa, menos agregar a idéia de que são parte de um mesmo ecossistema.

Liga da Justiça tinha tudo para dar errado. Absolutamente tudo. A começar por manter Zack Snyder na direção. Ele não havia entregado um bom trabalho nas duas tentativas anteriores com Homem de Aço e Batman vs. Superman, e mantê-lo era burrice desde o princípio.

Ruim com Snyder, pior ficaria sem ele, e assim foi quando o diretor se afastou do filme no fim da produção depois do suicídio de sua filha, em Março deste ano. É fato que imprevistos durante uma produção tem a tendência de desandar como claras em neve. A sorte foi que Joss Whedon havia recentemente fechado contrato com a Warner para dirigir Batgirl, e como sua disponibilidade pelo estúdio estava acessível, ele aceitou o convite/desafio de dar continuidade ao trabalho de Snyder. Ele não leva créditos como diretor, mas leva como roteirista.

Whedon pegou o filme quase pronto, mas isso não o impediu de mudar certas coisas, convocando novamente os atores para filmagens extras, mesmo com Gal Gadot grávida, e Henry Cavill com um bigode que não podia ser raspado por exigências contratuais de outro longa que estava filmando. Tanto a barriga de Gal quanto o bigode de Cavill foram removidos digitalmente nas cenas incluídas tardiamente. A barriga não foi um problema, mas a boca digitalmente reconstruída de Cavill gerou piadas e polêmicas ao ponto de argumentarem que teria saído mais barato pagar a multa contratual do que fazer um trabalho caro e porco como o que foi feito.

Mas a verdade é que os pitacos de Whedon foram importantíssimos para o resultado final. As cenas de ação se mostram mais fluidas e menos megalomaníacas, e as filmagens extras trouxeram leveza e humanidade aos personagens, elementos que sempre faltaram no outro diretor. Mesmo com boa parte do trabalho já feito por Snyder, as mãos de Whedon fizeram mágica na pós-produção, evitando ao máximo a saturação e o carregamento de filtros, além de uma edição que faz milagres e um resultado acima da média para quem esperava o pior.

Whedon também foi o responsável por trazer de volta o compositor Danny Elfman ao mundo DC, compositor responsável pela icônica trilha sonora de Batman (1989) e Batman: O Retorno (1992), ambos de Tim Burton. Não é à toa que uma deliciosa sensação nostálgica toma conta quando notas dessa clássica trilha sonora ecoa na sala do cinema enquanto Batman (Ben Affleck) se aventura pelas ruas de Gotham. Sem dúvida foi uma referência direta e muito importante de que o legado de Tim Burton precisava ser mantido, mesmo que distante. Uma pena que o filme acabou não dando espaço para o brilhantismo de Elfman enaltecer a atmosfera heróica como deveria, sua participação bastante comedida acaba por dar muito mais espaço a efeitos sonoros que tentam tirar a atenção de grandes defeitos do filme.

Sim, Liga da Justiça não consegue se abster de defeitos, o que não deveria ter acontecido para um projeto que existe desde a década de 90. Começando pelo excesso de cenas em computação gráfica até mesmo quando desnecessário. O grande vilão da trama, o Lobo da Estepe, não precisava ser um personagem digital. A dublagem de Ciaran Hinds é cavernosa e expressiva o suficiente para dar medo apenas em ouvir o seu suspiro, mas o personagem perde o impacto com expressões faciais bastante artificiais e uma falta de sincronia tão ruim que chega a parecer até piada. Outra coisa é que, embora Mulher Maravilha (Gal Gadot) tenha uma entrada triunfal logo no ínicio do longa junto a sua já característica trilha sonora, mantendo a mesma brutalidade acrobática em táticas ofensivas e defensivas que tanto chamaram atenção no seu filme solo, seria perspicaz que, depois do sucesso dele, muita da atenção fosse voltada mais a ela do que nos demais. Só que é possível notar que o roteiro tentar ofuscá-la a todo custo, não para manter um equilíbrio igualitário entre os heróis, mas para tentar enfiar "guela abaixo" no espectador uma predileção a Batman e Superman que não existe mais. Isso contraria a preferência natural do público e do próprio desenvolvimento da história, já que quanto mais as ameaças aumentam, mais inútil Batman fica, e quando Superman entra em cena é porque o filme precisa acabar, ignorando completamente que os poderes de Mulher Maravilha são os mais equivalentes aos de Superman que o universo DC tem, mas que o filme insiste em colocá-la em situações sempre bastante vulneráveis para, como dito, impedir que ela roube a cena. O que é impossível, diga-se de passagem, porque ela as rouba mesmo assim tanto quanto fez em Batman vs. Superman, e o interesse pelo seu segundo filme solo só aumentou depois disso.

Se a Liga for analisada como ela de fato se propõe, ter colocado um personagem como Lobo da Estepe como o primeiro grande vilão da franquia soa um pouco inadequado. A Liga na verdade foi montada para que as habilidades de cada respectivo herói fosse utilizada para missões específicas frente às inúmeras ameaças e diferentes vilões que foram brotando no universo DC, algo que não é o foco aqui, além de uma grande reunião de pessoas poderosas que batalham aleatoriamente com o que aparecer na frente. A escolha de um primeiro vilão, ou de uma primeira grande ameaça, deveria ter sido melhor feita para que houvesse uma progressão convincente daqui pra frente. Não foi dado um sentimento de continuidade, como acontece em Os Vingadores, e se no segundo filme aparecer um outro vilão que tem como objetivo novamente destruir o mundo, apenas teremos mais do mesmo e a sensação de deja vu que todo filme da Marvel tem dado ultimamente.

Mas como um todo, o filme traz uma excelente sensação de novidade tal como o primeiro filme d'Os Vingadores, e mesmo com tantos defeitos, muita coisa funciona. Finalmente parece que, mesmo a tropeços, Warner/DC está conseguindo encontrar seu rumo no cinema, principalmente no equilíbrio entre a ação e os momentos de alívio cômico que não beiram a infantilidade fora de hora dos títulos da Marvel, e muito menos a imbecilidade quase ultrajante de Esquadrão Suicida. O humor aqui é equivalente ao longa de Mulher Maravilha, sutil e pontual, sem exageros. Os momentos de humor ocorrem naturalmente e de maneira equilibrada, como na inusitada sequência em que Aquaman (Jason Momoa) começa a fazer declarações floridas e piegas, uma pegadinha que funcionou muito por fazer algo que há muito os alívios cômicos não fazem nos filmes: pegar o espectador de surpresa. E momentos assim há bastante. Além de tudo, por incrível que pareça, os diálogos paralelos tem mais consistência do que parecem, e merecem atenção.

The Flash (Ezra Miller) é um dos outros exemplos daquilo que funciona, pois ele poderia ter caído no banalismo caricato, mas Miller consegue segurar as pontas, expressando muito bem o deslumbre juvenil do personagem, de suas descobertas, e de fazer parte de algo grandioso e útil, e mesmo que seu comportamento chegue a ter leves semelhanças ao jovem Mercúrio, de X-Men: Primeira Classe (2011), as situações lhe caem tão bem que deixa de ser um estorvo para se tornar carismático. O mesmo sobre Aquaman. Completamente diferente da versão clássica dos quadrinhos, Jason Momoa trouxe uma carranca bem vinda ao personagem, uma fúria sem limites ou medo na hora de enfrentar o que deve ser enfrentado. O humor brucutu dele também está lá, implícito, contrabalanceando o egocentrismo de Batman (Ben Affleck), que também teve seu lado mais obscuro pendurado nos cabides e mais ironia em seus sorrisinhos de canto de boca.

Mas infelizmente para tudo há seu preço, e mesmo que Liga da Justiça cumpra bem seu papel, o fato é que ele deveria ter sido o primeiro grande filme inaugural do Universo Expandido da DC, e não o quinto. Depois de tantos acidentes de percurso e persistência do público fiel à espera de algo realmente bom por parte da Warner/DC, Liga chega um pouco tarde, num momento que seu público já estava descrente e cansado de esperar, e o reflexo disso é visto em sua péssima estréia nos Estados Unidos, não chegando sequer a US$95 milhões. Um desastre quando comparado com os anteriores, tanto deles mesmos, quanto da Marvel. E frente a isso, o futuro da DC no cinema, novamente, outra vez, será uma incógnita.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE GRACE...

★★★★★★★☆☆☆
Título: Alias Grace
Ano: 2017
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Marry Harron
Elenco: Sarah Gadon, Edward Holcroft, Zachary Levy, Paul Gross, Anna Paquin, Rebecca Liddiard, David Cronemberg
País: Canadá
Duração: 60 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Baseado na história real de Grace Marks, uma serviçal que é condenada a prisão perpétua por duplo homicídio.

O QUE TENHO A DIZER...
Em 1843, Thomas Kinnear e sua governanta, Nancy Montgomery, foram brutalmente assassinados na região do Alto Canadá, hoje sul da província de Ontário. Grace Marks e James McDermott, serviçais de Kinnear, foram acusados do crime. McDermott foi condenado à forca, e Grace acabou sendo sentenciada à prisão perpétua por, na época, ter apenas 16 anos, e porque a sua participação no crime tinha pontos inconclusivos.

A sentença foi controversa, pois por um lado a investigação concluiu que McDermott foi o principal responsável pelo crime por conta da brutalidade e da força necessária para tal, mas sua confissão afirmava que Grace não apenas participou, como também foi a mandante. Durante os 30 anos encarcerada, Grace afirmou não se lembrar de absolutamente qualquer coisa relacionada ao crime, e sua amnésia pós-traumática ergueu diversos questionamentos sobre o fato. Para piorar as dúvidas já existentes, o advogado de defesa dos réus orientou-os à uma confissão elaborada perante o juri. A confissão tinha apenas o intuito de aliviar a pena, já que a sentença havia sido determinada antes mesmo do julgamento. Logo, a confissão elaborada serviu, por fim, apenas para criar maior confusão sobre o que realmente aconteceu ou não, o que o seriado também consegue estruturar muito bem.

Por conta do excelente comportamento e conduta de Grace, além da relevância de ter sido presa tão jovem e passado boa parte da sua vida encarcerada, mesmo com um julgamento inconclusivo, com 46 anos de idade ela foi perdoada pelo Governador. Com a liberdade ela se mudou para Nova York. Após isso, nunca mais se teve registros sobre seu paradeiro, sequer data oficial de morte, e sua história, ao mesmo tempo que é uma dúvida, também se tornou lenda. Portanto, o final do seriado é fictício, e apenas uma forma da autora concluir a história de maneira que todas as discussões relevadas durante os episódios tomassem uma forma definitiva, deixando explícito que, para a personagem conquistar pequenas coisas que sempre deu valor, teve de aceitar continuar sendo subserviente.

O livro homônimo de Margaret Atwood, no qual o seriado é baseado, foi publicado em 1996, e utilizava como base a biografia de Grace Marks a partir das publicações de Susanna Moodie, de 1970. Segundo Atwood, o trabalho de Moodie foi uma grande inspiração, mas com o tempo percebeu, através de pesquisas, que muito do descrito sobre o assassinato não era verídico, o que a fez mudar sua opinião sobre a culpabilidade de Grace Marks, e então a idéia sobre o romance que trajeta entre o verídico e o fictício, criou forma.

A mini-série de 6 episódios (e será somente isso) tem prioridade na mesma narrativa em primeira pessoa da protagonista, cuja história se desenvolve através de diálogos com um personagem que não existiu na vida real, justamente para alguns fatos se manterem próximo dos acontecimentos verídicos, mas ao mesmo tempo dar liberdade para diversas outras interpretações.

O personagem fictício em questão é Dr. Simon Jordan (Edward Holcroft), um psiquiatra jovem, engajado em estudos sobre doenças mentais numa época em que a psiquiatria começava a dar maior atenção ao empirismo. Nas primeiras sessões, Dr. Simon tenta resgatar a memória de Grace através de sugestões sobre coisas e sensações que pudessem remeter ao momento do homicídio, mas a paciente não corresponde da maneira como ele espera. É quando ele solicita que ela conte toda sua história desde sua infância até o momento mais recente, acreditando que, dessa forma, a memória perdida possa aos poucos ser recuperada. E dia após dia, durante as tardes na sala de costura da casa do Governador, é onde as sessões ocorrerão em meios a flash-backs sobre as memórias da protagonista conforme sua narração progride.

Atwood tem sido um nome bastante comentado ultimamente por conta da aclamada série The Handmaid's Tale, disponível pelo serviço de streaming Amazon Prime, série igualmente baseada no livro homônimo da autora de 1985. Embora os dois livros e as duas séries tenham temas bem distintos, a alma central de ambas é basicamente a mesma: utilizar um acontecimento específico como gatilho para explorar de maneira abrangente diversas questões sócio-culturais, políticas, espirituais e religiosas.

O roteiro aqui, assinado pela própria Atwood em parceria com Sarah Polley (criadora e produtora da série), tenta manter as mesmas características do gênero gótico no qual o livro se propõe. Essas características incluem a expressão das doenças sociais da época, explicitando a corrupção moral e a hipocrisia aristocrática, adicionando a isso elementos sobrenaturais e a possibilidade de comunicação espiritual com os mortos, o que foi, de fato, uma catarse de interesse científico durante a era vitoriana (por isso que o episódio da sessão de hipnose é assistida por um pequeno grupo formado por religiosos, intelectuais e estudiosos).

O foco do roteiro se mantém fiel ao do livro, que não é questionar a culpabilidade de Grace no duplo homicídio, mas de utilizar a personagem como uma forte ferramenta de expressão e estudo de comportamento. Tanto é assim que a história pisa em ovos para não ser tendenciosa para nenhum dos lados, seja para sua culpa, seja para sua inocência. Mas independente disso, o que vale é a perfeita costura dos fatos com observações sociais que ainda continuam mais atuais do que nunca.

A narrativa da protagonista, que tem início desde sua imigração da Irlanda para os Estados Unidos aos 12 anos, não esconde em nenhum momento as dificuldades que teve com sua família ao saírem de seu país natal em busca do Novo Mundo. Sua história é uma incrível sucessão de desastres e infortúnios. Das desgraças da pobreza às dificuldades sofridas por ela e suas irmãs por conta de um pai alcoólatra e abusivo, sendo obrigada a deixar aquilo que restou de sua família para trabalhar como serviçal em regimes de trabalho semi-escravo, sem qualquer perspectiva de independência ou mobilidade, como qualquer outra pessoa no mesmo patamar social que o dela.

As roteiristas conseguem retratar uma época onde as mulheres eram obrigadas a serem subservientes aos homens, em uma sociedade machista que as impediam de decisões além do espaço doméstico. Ao proletário, a subserviência incondicional aos detentores do dinheiro e do poder.

A ingenuidade de Grace a leva a acreditar que todos os sofrimentos, perdas e desastres de sua vida sejam coisas comuns e naturais por essas terem sido a realidade que sempre viveu, e essa consciência fica explícita na maneira indiferente como ela relata sua trágica história como fatos corriqueiros, partindo do princípio fatalista e conformista de que as coisas assim são porque devem ser e nada há de ser feito para ser mudado, um ponto de vista triste e melancólico para quem observa, mas que foi (e ainda é) a realidade de uma grande maioria. Mesmo assim, as observações simplistas e tácitas da personagem sobre a vida cotidiana e submissa, e de sua função irrelevante e passageira na sociedade, ao mesmo tempo que soam poéticas, narram a crueldade social de maneira cirúrgica e arrebatadora.

Aos poucos a história de diversos acontecimentos trágicos nos revela que ela nada mais é que um produto determinado pelo meio em que vive, mas que de certa forma evolui tal como as mariposas de Darwin, obrigando-a criar escapes psicológicos para conseguir sobreviver às adversidades sociais em que está inserida, oprimindo suas vulnerabilidades e desencadeando mecanismos de defesa inconscientes. Daí o significado do título, pois "alias", numa tradução livre, significa "codinome", já que ela desenvolve personas ao longo de sua vida para conseguir superar os obstáculos e dificuldades, o que é explicado após a já citada sessão de hipnose, sequência que poderá ser facilmente confundida como um elemento sobrenatural na série quando, na verdade, é o mecanismo de defesa da personagem que se manifesta. Um momento em que toda a atenção deve ser dada, pois é ele que irá esclarecer absolutamente muitas das dúvidas semeadas ao longo dos episódios, sem tirar do espectador o seu próprio julgamento.

Se torna óbvio que o maior ponto de toda a trama é escancarar a opressão e a submissão feminina na sociedade, e que tudo o que estamos vendo nos dias atuais nada mais é do que o resultado histórico disso. E Grace Marks, sendo ou não uma metáfora, é igualmente uma consequência.

Se é angustiante ver Grace ser abusada pelo próprio pai e depois escurraçada de casa por não ter sido conivente com o incesto, isso irá parecer até pouca coisa perto de outros momentos bastante chocantes, como quando sua melhor amiga decide realizar um aborto com medo de ser despejada da casa na qual trabalha e evitar viver da prostituição para sustentar um filho indesejado. De igual forma a condição pela qual Nancy Montgomery (Anna Paquin) se submete, obrigada a se manter em uma relação abusiva para não ter o mesmo fim, descontando em Grace suas frustrações e delírios resultantes de dúvidas e incertezas, num terrorismo psicológico cultivado pelo próprio patrão para que sua vulnerabilidade esteja constantemente exposta e ele possa abusar disso sempre que lhe for conveniente. E se existem vilões na história, eles são os próprios homens, independente de sua classe social, pois a ignorância é democrática.

Apesar de toda essa brutalidade, por outro lado existe uma delicadeza, ou uma sobriedade, na forma como tudo é conduzido, justamente para amenizar situações tão indigestas, contrabalanceando momentos que poderiam facilmente se sobrepor à história de fato e saírem do contexto se tivessem seguido para um caminho mais explícito e sensacionalista.

Mérito de uma equipe formada em sua grande maioria por mulheres que compõem os principais núcleos, seja no roteiro, na direção, produção e elenco, fazendo o produto final ter um olhar feminino bastante honesto de mulheres falando sobre mulheres, e não homens falando sobre aquilo que acham ou acreditam ser sobre mulheres.

Para quem já conhece os trabalhos da canadense Sarah Polley, seja como atriz, roteirista ou diretora, sabe que seu engajamento político e feminista é bastante presente naquilo que faz, mas sem ser extremista ou doutrinante, ela apenas explora personagens femininas com o intuito de mostrar lados e situações que, tanto a sociedade, como a indústria do entretenimento, insistem em esconder ou deturpar. E ao juntar forças com Atwood, em uma produção que, segundo a própria Polley, demorou 20 anos para se concretizar, Alias Grace surpreende pelo desenvolvimento lento e detalhado de um drama psicológico que escancara a responsabilidade da sociedade sobre a maneira que ela mesma enxerga e compreende os gêneros, e que o empoderamento feminino e a constante busca pela igualdade que tanto tem ganho força nos últimos anos não é uma necessidade de auto-afirmação ou de promoção sexista, como muitos daqueles que não compreendem a necessidade dessas mudanças costumam contra-argumentar, mas uma dura batalha necessária contra uma herança cultural secular opressora e abusiva, ainda existente porque a História nos mostra que taxar um sexo de frágil, e criar uma cultura conivente a isso, sempre foi benéfico para aqueles que se sustentam disso, e sempre será enquanto essa deturpada consciência existir.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

DIVERSÃO AO QUADRADO...

★★★★★★★★☆
Título: Stranger Things 2
Ano: 2017
Gênero: Ação, Fantasia, Ficção Científica, Drama, Suspense, Terror
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Winona Ryder, David Harbour, Finn Wolfhard, Noah Schnapp, Millie Bob Brown, Gaten Matarazzo, Caleb McLaughling, Natalia Dyer, Charlie Heaton, Joe Keery, Sadie Sink, Dacre Montgomery
País: Estados Unidos
Duração: 55 min.

O QUE TENHO A DIZER...
A segunda temporada de Stranger Things vem recheada de pura nostalgia 80tista. O número 2 que agora acompanha o título para caracterizá-lo mais como uma continuação do que como uma segunda temporada, se tivesse sido usado de forma sobrescrita (²), faria muito mais sentido, porque tudo o que o espectador experimentou na primeira temporada, agora é elevado ao quadrado.

Não que esta segunda parte seja melhor que a primeira, mas ela não fica atrás. Tudo aquilo que se esperava foi oferecido com grande estilo. O interessante da primeira temporada foram as surpresas que a série proporcionou, além do fator novidade ao resgatar a infância, o companheirismo e a amizade com uma fidedignidade que havíamos visto apenas no cinema até aquele momento, tão bem representados pelos filmes dirigidos ou produzidos por Spielberg como E.T.Os Goonies. Para quem nasceu nos anos 80, o seriado foi um túnel no tempo de boas memórias e lembranças vividas num período em que a vida conectada só existia por telefone fixo e walk talkies, e a interação pessoal, as ruas, os jogos de tabuleiro, os brinquedos manipuláveis, a bicicleta como principal meio de transporte e o grande símbolo da independência infantil, além da exploração da imaginação e da fantasia eram muitos mais consistentes.

As mesmas referências da temporada anterior são utilizadas aqui, com a soma de outras, mas sempre mantendo Stephen King e Steven Spielberg como grandes inspirações. Para os mais atentos, haverá até algumas boas referências a Indiana Jones e o Templo da Perdição, como quando os personagens Nancy (Natalya Dyer) e Jonathan (Charlie Heaton) se encontram num momento de intensa tensão sexual, cada um em um quarto, tal como Willie e Indy; quando Max dirige o carro; quando Hopper volta correndo para pegar o emblemático chapéu do chão. George Lucas também tem seus momentos de homenagem quando Eleven/Onze aprimora o domínio de seus poderes, tal como com Luke Skywalker em Star Wars - Episódio IV.

É esse o grande trunfo dos irmãos Matt e Ross Duffer, criadores, produtores e roteiristas, de fazer que esse imenso conglomerado de referências diretas ou indiretas atinja o público das mais diversas maneiras, seja compreendendo as fontes de origem, seja apenas apreciando o produto como um entretenimento comum, sem querer perder tempo desmembrando, observando e degustando as centenas referências da cultura de época, das produções cinematográficas e televisivas daquela década e da trilha sonora, que dessa vez vem muito mais pop, rock e nostálgica do que na temporada passada.

A Netflix não poupou esforços para que sua mais famosa, popular e aclamada produção original mantivesse o mesmo nível de qualidade. Não era para menos. A expectativa pela segunda temporada aumentou em proporções geométricas ao longo dos mais de 450 dias que separaram uma temporada da outra.

E é por aí que a segunda parte começa sua história, aproximadamente um ano depois dos acontecimentos do primeiro. E mesmo com apenas um ano de diferença, os atores mirins cresceram. Perderam aquela fisionomia infantil para adquirirem uma mais adolescente e, de igual tamanho, seus comportamentos. O núcleo adolescente formado pelo respeitoso triângulo Nancy-Jonathan-Steve, agora embarcam para o início da vida adulta, com maiores responsabilidades, interesses e planos. Já os adultos, continuam os mesmos, apenas menos perdidos, mais decididos e com menos conflitos porque a temporada anterior já havia oferecido situações o suficiente para colocar nos eixos todos aqueles que estavam com parafusos frouxos, como foi o caso de Joyce (Winona Ryder) e Hopper (David Harbour).

O elenco sofreu um leve aumento com a inclusão dos personagens Bob Newby (Sean Astin, o eterno Samwise Gamgee), o novo namorado bacana de Joyce; Max Mayfield (Sadie Sink), a nova e misteriosa aluna da escola Hawkins; Billy (Dacre Montgomery), o rebelde irmão postiço de Max; e Kali (Linnea Berthelsen), uma vingadora com poderes e intenções anarquistas, com um passado correlacionado com o de Eleven. Personagens novos que, ao contrário do que se imagina, quando analisados dentro do universo estrutural de Stranger Things e das tramas e subtramas já consolidadas desde a primeira temporada, seriam naturalmente irrelevantes. E realmente são. A única função de todos é apenas gerar um maior número de conflitos de um lado (Max, Billy e Kali) e aumento de determinadas situações dramáticas de outro (Bob).

Não são personagens ruins. São bem construídos e com arcos interessantes, mas que entram e saem de cena sem grandes progressões narrativas. Apenas inflam um elenco principal que já começou inflado na primeira temporada. Considerando que cada um desses novos personagens agregam, em média, de 5 a 10 minutos de cada episódio, não é de se espantar que sejam utilizados exatamente na função de tapa-buracos, mas sem parecerem como tais.

A presença de Bob na história é apenas de criar uma breve férias pouco convincente na confusa relação entre Joyce e Hopper, postergando a resolução desse núcleo o máximo possível. Para Bob ter o fim que teve, ficou incoerente sua inclusão na história. Esse fim era óbvio quando se analisa a construção de um roteiro, seus elementos necessários e desnecessários: a relação entre Joyce e Hopper é necessária, e Bob um excesso. Max surge para repetir a tensão que Eleven criou entre os 4 amigos na primeira temporada, dando oportunidade a mais um deles de descobrir seu primeiro amor juvenil tal como aconteceu com Mike, deixando outros frustrados no processo. A Billy sobrou a função de semear a discórdia, não apenas servindo como um antagonista direto de Max, como também uma forma do roteiro abordar de maneira bastante sutil prováveis abusos e violências domésticas que poderiam ter tido um maior foco numa temporada que se absteve de grandes momentos dramáticos como a primeira teve. Kali, que começa tendo destaque logo na introdução do primeiro capítulo, entra tardiamente na história de fato, e sai dela como se não tivesse entrado, em um daqueles comuns momentos que é nítida a mudança da direção da trama pelos roteiristas, que de última hora - e por falta de tempo - devem ter resolvido deixar a personagem ser melhor desenvolvida em temporadas futuras.

A segunda temporada definitivamente foca muito mais na ação e na expressão do suspense e do medo através dos elementos de ficção científica que novamente abusam de referências à franquia Alien do que no drama, antes tão bem desenvolvido por Winona Ryder e na busca frenética de sua personagem pelo seu filho desaparecido, numa linha tênue entre a loucura e sanidade, entre a comédia e a angústia, que renderam à atriz uma justa indicação ao Globo de Ouro. Numa evolução natural em consequência dos acontecimentos anteriores, Joyce agora é uma personagem mais forte e menos emotiva, e para isso acontecer foi sacrificado boa parte de sua cômica excentricidade, mas que de nenhuma forma diminui sua importância que novamente é garantida em um importante momento de decisão.

A personagem de Millie Bob Brown, uma das maiores revelações mirins de 2016, perdeu um pouco daquele charme andrógino e misterioso, e junto com isso boa parte da sua natureza infantil e ingênua. Grande parte disso também se deve ao próprio comportamento precoce da atriz, que na vida real já tem uma postura mais austera e um tanto prodígio que se distancia bastante dos colegas de sua idade. O roteiro também força um amadurecimento precoce de Eleven, uma "adultalização" sentida não apenas nela, mas também nos demais personagens mirins, principalmente ao tentarem dar grande foco nos interesses amorosos entre eles, conflitos e dramas que ainda não eram o momento para serem abordados, impactando no próprio comportamento de cada um deles na ficção e na vida real. Tanto que houve até uma breve polêmica a respeito do beijo entre Max e Lucas, momento que, segundo a própria atriz Sadie Sink, se sentiu obrigada pelos irmãos Duffer a fazê-lo, mesmo recusando por conta do beijo não estar no roteiro. Sadie e Millie também revelaram que as cenas de beijo de cada uma não apenas foram o primeiro beijo técnico de ambas, como também o primeiro beijo delas na vida real. Complicado quando colocamos crianças e adolescentes em situações que não condizem com seu momento de vida ou interesse, contribuindo com a cultura atual que cada vez mais exige e cobra deles comportamentos mais adultos e responsabilidades que não lhes cabem, contrariando a premissa principal da série de abordar essas fases da vida da maneira mais livre, espontânea e fantasiosa possível.

Tirando um ou outro elemento excessivo, ou que, como dito, contradiz com o próprio propósito de Stranger Things, a série conseguiu voltar tão forte quanto esperado, com fôlego suficiente para agradar até os mais exigentes e aqueles que tinham as maiores expectativas. Vale questionar se as próximas temporadas continuarão tendo fontes de inspirações tão consistentes e relevantes como apresentaram até o momento, já que a série foi automaticamente renovada para mais duas temporadas, com promessas para exceder esse número, segundo preveem os produtores.

O direcionamento que terá no futuro é incerto, mas uma coisa é garantida: será muito interessante ver todo esse elenco crescer frente a nossos olhos, tal como foi interessante ver as crianças em Harry Potter crescerem e amadurecerem ao longo dos seis filmes, e o melhor, tendo suas fases respeitadas. Que os irmãos Duffer sigam o mesmo exemplo.
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