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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

MEDIANO, E NADA MAIS...

★★★★★
Título: Wolverine: Imortal (The Wolverine)
Ano: 2013
Gênero: Ação, Drama
Classificação: 12 anos
Direção: James Mangold
Elenco: Hugh Jackman, Rila Fukushima, Tao Okamoto, Svetlana Khodchenkova, Framke Janssen
País: Estados Unidos
Duração: 126 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Após a morte de Jean Grey, os X-Men se separaram, e Wolverine está em crise existencial. É quando uma estranha japonesa o aborda na tentativa de levá-lo ao Japão para se despedir de uma pessoa pela qual sua vida é grata a ele. Relutante, resolve ir, para descobrir que essa decisão será responsável por faze-lo repensar em todo seu comportamento auto-destrutivo nos últimos anos, e que inclui sua imortalidade.

O QUE TENHO A DIZER...
É difícil falar deste novo filme de Wolverine depois de tantos acidentes de percurso. Recapitulando a cronologia de forma breve, o terceiro filme da saga dos mutantes, X-Men: O Confronto Final (X-Men: The Last Stand, 2006), deixou a desejar, sendo um fracasso de crítica frente aos dois primeiros dirigidos por Bryan Singer. Posteriormente a Marvel, juntamente com a Fox, tentaram criar uma franquia chamada Origens, para contar a origem dos personagens mutantes. O herói escolhido foi de Wolverine, e o filme foi lançado em 2009. Isso foi óbvio pois ele é o personagem mais popular de todo o universo Marvel. A produção corrida, empurrada com a barriga, com um desenvolvimento péssimo e uma deturpação terrível de todos os personagens envolvidos resultou em um produto comercial pobre e ruim, que enterrou de imediato a idéia de uma nova franquia que desse ênfase ao passado de cada herói. Mesmo assim o público queria mais, e depois do sucesso da trilogia Batman, de Christopher Nolan, a tendência seria óbvia, e resolveram realizar um precipitado "reboot".

Conscientes do erro que foi o primeiro filme de Wolverine, tanto a Marvel quanto o estúdio Fox admitiram o erro, e tentaram promover a idéia de que o primeiro filme nunca existiu, e que esta nova empreitada seria, em definitivo, uma forma de mostrar o herói como ele realmente é, por um lado mais obscuro, intimista e humano, coerente com o que os fãs queriam, na tentativa de seguir à risca a idéia desenvolvida por Nolan com Batman.

A história está diretamente relacionada com os eventos do terceiro filme da saga X-Men, já que agora Wolverine está isolado e constantemente atormentado pelo espírito igualmente atormentado de Jean Grey, sua amada que morreu por suas próprias mãos... ou garras, melhor dizendo. Na verdade isso é uma dúvida que o filme propõe, pois não sabemos se o que atormenta o herói é realmente o espírito da amada, ou seu próprio psiquê. Para os que estão familiarizados com as histórias em quadrinhos ou até mesmo com a primeira série animada na televisão, sabe que Jean Grey era uma mutante de poderes tão únicos e elevados que ela até poderia morrer, mas mesmo assim, manter sua consciência no plano real e humano, e isso é uma idéia interessante proposta pelo filme.

O filme é baseado na saga de Wolverine no Japão, escrito por Chris Claremont e Frank Miller, uma época em que o herói busca refúgio espiritual no país para, na verdade, redescobrir suas próprias origens e a razão de sua existência. Para tentar manter essa atmosfera humana, sensível e ao mesmo tempo densa, o diretor James Mangold foi contratado, o mesmo dos filmes Garota, Interrompida (Girl, Interrupted, 1999), Kate & Leopold (2001), Identidade (Identity, 2003) e Johnny & June (Walk The Line, 2005).

Não se pode negar que a tentativa foi válida, mas forçada. A verdade é que, realmente, este filme mais aparenta um interlúdio entre uma história ou outra dos X-Men do que um filme com uma história própria. Também é complicado enquadrá-lo no gênero de ação quando a maior parte dele é em torno dos dramas e conflitos pessoais de Wolverine e a dificuldade do seu grande senso de humanidade aceitar o fato de um homem tão bruto quanto ele ser imortal, enquanto pessoas frágeis, e que ele ama, morrem a sua volta, ao ponto de ele se isolar do mundo e de todos, como um animal arisco.

Isso tudo é percebido no filme, que se esforça - e muito - em trazer para o espectador esse lado humano e martirizador do personagem que foi abordado de forma muito branda e breve nos filmes anteriores. Mas apesar de todo esse esforço, é impossível ignorar que a abordagem de Wolverine nos cinemas nunca deve ser a mesma da abordada nos quadrinhos, pois o personagem e sua história são muito grandes para apenas duas horas de filme, principalmente sobre uma saga tão complexa quando a sua temporada em solos japoneses, como é mostrado nos quadrinhos.

A história até que se desenvolve dramaticamente bem até uma parte do filme, mas as coisas começam a sair do trilho quando o roteiro se lembra de que é um filme de ação que estamos falando, e não um drama, obrigando o espectador a aceitar isso ao invés de guiá-lo para uma zona diferenciada, colocando as cenas de ação apenas como uma consequência, e não como uma obrigação.

O resultado de tudo é que o filme se perde em qualquer proposta que ele tenha, podendo agradar medianamente a base de fãs, mas não muito àqueles que conhecem o herói apenas no cinema. Mas até mesmo os fãs ficarão um tanto decepcionados por novamente deturparem a história de personagens clássicos como Silver Samurai ou Yukio, tal qual fizeram com Deadpool e outros antagonistas no filme anterior. Silver Samurai, que é um mutante, no filme é tratado como um ciborgue que não convence, e muito menos convence a batalha final entre ele e o herói, em uma resolução terrivelmente banal para um dos poucos inimigos que o próprio Wolverine temia além de Dentes de Sabre, Magneto e Apocalipse.

Mesmo sendo o sexto filme em que o ator Hugh Jackman encarna o personagem, a impressão que se tem é que ele está deslocado, perdido em uma história que não soube construí-lo ou desenvolvê-lo. O personagem perdeu muito de suas características clássicas, como seu senso de humor sarcástico e sua humanidade bruta e rústica para traçarem uma personalidade sombria e blasé ditadas por uma fórmula pós-Christopher Nolan que Hollywood creditou dar certo, mas que não funcionou com ele, nem com Superman, nem com Homem-Aranha, e que não funcionará com nenhum outro personagem, seja ele Marvel ou DC.

CONCLUSÃO...
O resultado de tudo isso é um filme mediano, que empolgará poucos fãs, e decepcionará muitos espectadores que buscam apenas o entretenimento que o personagem já chegou a oferecer nos filmes anteriores. Um erro que a Marvel dificilmente conseguirá superar, mas que tentará ao retomá-lo como uma parte da equipe X-Men, e não mais como um personagem solo.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

CAIXINHA MODESTA, PRESENTE SINCERO...

★★★★★★
Título: Amor Bandido (Mud)
Ano: 2011
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Jeff Nichols
Elenco: Matthew McConaughey, Tye Sheridan, Jacob Lofland, Reese Witherspoon, Sam Shepard
País: Estados Unidos
Duração: 130 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Dois adolescentes encontram um estranho em uma ilha, curiosos a respeito da história deste estranho e comovidos pela razão de sua volta, resolvem ajudá-lo com o que ele precisa, para só depois descobrirem que ele é um fugitivo.

O QUE TENHO A DIZER...
Amor Bandido é o terceiro filme dirigo por Jeff Nichols, que embora tenha sido produzido no mesmo ano que seu drama apocalíptico O Abrigo (Take Shelter, 2011) só foi lançado no Festival de Cannes em 2012. O Abrigo chamou bastante atenção da crítica mundial e foi o grande vencedor de Cannes naquele ano, enquanto Amor Bandido teve sua estréia oficial no Festival, sendo bem recepcionado pelo público e crítica.

Não há muito o que se dizer sobre a história, já que se trata unicamente de um drama sobre o amor, um sentimento único que é proposto no filme pelo ponto de vista ingênuo da puberdade e o traiçoeiro da idade adulta. Dois pontos de vista paradoxais que se encontram em uma mesma história e que realmente constróem gradualmente um impacto sentimental para aqueles que já cultivaram seu primeiro amor e também para aqueles que já sofreram por um grande amor.

O diretor já tinha o conceito da história ainda na década de 90, e sempre imaginou Matthew McConaughey interpretando o personagem principal. Ele foi fortemente inspirado pelo personagem Tom Sawyer, de Mark Twain, o qual tem muitas similaridades com o personagem adolescente do filme. Mas seu interesse principal foi captar a sua própria época de colégio, representando esses sentimentos de euforia e decepção que ele sentia quando se apaixonava por alguma garota que o devastava por não corresponder. Sua intenção era condensar toda a emoção, a dor e a intensidade dessa paixão pura, sobre uma época de descobertas que parecem ser muito duras, mas necessárias para a construção do caráter e da maturidade.

E sem dúvida o filme consegue construir essa atmosfera complexa de sentimentos mistos sem ser piegas, e muito menos cliché. Não é um filme com uma história complexa, com um final feliz e um beijo arrebatador ao final com uma grandiosa trilha sonora, e por isso não irá atrair a atenção de qualquer pessoa, mas é um filme pequeno, em uma embalagem simples, um presente sincero e muito honesto frente a duas perspectivas diferentes sobre um mesmo sentimento. Só é muito longo, em uma narrativa lenta e às vezes cansativa, cheia de indas e vindas e talvez um conflito até um pouco exagerado, que não interferem na bela construção do diretor e roteirista, mas que geram alguns bocejos durante o desenvolvimento.

O longa foi listado entre os 10 melhores filmes independentes pelo National Board Of Review, um dos grupos mais importantes e respeitados da crítica norteamericana para o cinema. A performance de Matthew McConaughey é tão enigmática, sincera e natural quanto a própria história, e chamou a atenção da crítica mundial além de ter sido uma grande publicidade ao ator que, posteriormente a ele, escolheu filmes nem sempre muito bons, mas excelentes papéis, como nos filmes Killer Joe (2011), Obessão (The Paperboy, 2012) Magic Mike (2012) e o atual Clube de Compra Dallas (Dallas Buyers Club, 2013), no qual concorre ao Oscar de Melhor Ator, com grandes chances de vencer.

CONCLUSÃO...
Ao contrário do que o título induz, ou o que equivocadamente os posters aparentam, não é mais um filme de suspense ou de crimes passionais que se passa no sul dos Estados Unidos. Como dito, é um filme pequeno, em uma embalagem simples, um presente sincero e muito honesto frente a duas perspectivas diferentes sobre um mesmo sentimento.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

NÃO É EUROPEU, MAS AINDA SIM UM DRAMA FAMILIAR...

★★★★★★★★★☆
Título: Álbum de Família (August: Osage County)
Ano: 2013
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: John Wells
Elenco: Meryl Streep, Julia Roberts, Chris Cooper, Margo Martindale, Ewan McGregor, Juliet Lewis, Abigail Breslin, Benedict Cumberbatch, Dermot Mulroney
País: Estados Unidos
Duração: 121 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Relações familiares nunca foi algo fácil de ser interpretado ou definido, e é o que acontecerá na família de Violet, uma mulher com câncer em estado terminal, viciada em calmantes, que acabou de perder seu marido e agora deverá confrontar pedaços dela mesma em cada uma de suas filhas.

O QUE TENHO A DIZER...
Album de Família é dirigido por John Wells, seu segundo longa metragem como diretor, tendo mais experiência como roteirista e produtor de seriados. Mas o interessante aqui é o roteiro ser assinado por Tracy Letts, baseado em sua própria peça homônima. É sua terceira adaptação de três peças teatrais próprias, sendo a primeira delas Possuídos (Bug, 2006) e a segunda Killer Joe (2011), ambos dirigido por Willian Friedkin, diretor mais conhecido pelo clássico O Exorcista (The Exorcist, 1973) e que poucas pessoas tem conhecimento disso pois não foram filmes de sucesso comercial, muito embora muito aclamados pela crítica e pelo público do circuito mais alternativo.

O tema deste filme é distinto tal qual as outras adaptações. Enquanto Possuídos trata sobre uma personagem que se afunda em um crescente distúrbio de personalidade e Killer Joe é uma comédia gótica violenta e absurda sobre uma crescente sucessão de fatos desastrosos, Album de Família também segue essa mesma construção crescente de infortúnios e segredos desastrosos responsáveis pela completa destruição das fundações familiares. Tracy Letts tem se destacado como um grande escritor, roteirista e dramaturgo contemporâneo no teatro e no cinema norteamericano por conta da profundidade e complexidade de seus personagens, além dos ambientes que eles vivem serem como uma metáfora transformadora dentro de idéias filosóficas ou psicossociais. Ele tem um estilo diferenciado na dramaturgia, construindo seus personagens fundamentados em perfis psicológicos e muitas vezes psiquiátricos distintos, que podem parecer exagerados na densidade, mas não deixam de ser exemplos verdadeiros. Ele também seguisse à risca as idéias deterministas já expressadas por Sartre, Marx e outros pensadores de que o homem é produto do meio, e não é à toa que os ambientes que ele situa suas histórias tem uma grande importância na narrativa e nos conflitos da trama.

É por isso que esta história se passa no centro-sul dos Estados Unidos, no condado de Osage, em Oklahoma, uma região que tinha um dos maiores números de nativo americanos, mas que foi reduzido significantemente depois de epidemias e guerras de dominação territorial, além de ter sido palco da chacina de índios Osage no ínício da década de 20, realizado por brancos para evitar o crescimento econômico dos indígenas nativos e tomar seus territórios e royalties de exploração de petróleo. Ou seja, historicamente um território marcado por violência e estupidez, que é citado no filme quando a racista Violet (Meryl Streep) narra as dificultades de ter crescido naquele condado e a brutalidade necessária para que sua família pudesse sobreviver nele naquela época.

A narrativa desse fato dada pela personagem é crucial para compreender a original natureza de todos, seus traumas e tragédias, já que são três gerações que se reencontram após o falecimento do patriarca. Letts não apenas se utiliza do determinismo para dar o ponto de partida para toda construção dos personagens e conflitos, como também abusa da teoria psicanalítica de que os filhos são a perpetuação dos erros dos pais, e de que há a tendência dos mesmos em reproduzirem e repassarem os mesmos traumas aos seus descendentes, como uma herança, geração após geração.

O filme é um drama familiar que não chega a ser complexo ou confuso já que os personagens tem personalidades parecidas entre si, mudando apenas o grau de intensidade, justamente por serem baseados na teoria já mencionada, mas é denso, algumas vezes pesado, com diálogos que ferem uns aos outros devido ao constante comportamento hostil. Isso fica claro na sequência em que Barbara (Julia Roberts) questiona sua irmã, Ivy (Julianne Nicholson), sobre o cinismo que ela agora apresenta, a qual oferece uma resposta compreendida como uma nova lei de sobrevivência pra ela.

A perpetuação dos erros é tão clara e nítida que temos Violet e Mattie Fae (Margo Martindale), irmãs, filhas de uma mãe que elas mesmas se referem como "uma mulher diabólica". Ambas tem personalidades bem parecidas, mas o comportamento de Violet é pior, mais explosivo e maldoso, talvez para compensar o complexo de "nunca ter sido a filha predileta, mas ter se acostumado com isso", como ela mesma diz em uma cena. Violet possui três filhas: Barbara, Ivy e Karen. Cada uma delas possui uma parte de sua personalidade, uma mais, outra menos, mas que deixam claras as heranças comportamentais e psicológicas herdadas, e juntas representam toda a engrenagem da história.

Barbara é a filha mais velha, a "predileta", é a que possui a maioria das características negativas e positivas de Violet, mas que tenta não reproduzir em sua filha, Jean (Abigail Breslin), os mesmos erros da mãe, mesmo que impossível em algumas determinadas situações. Seu casamento com Bill (Ewan McGregor) está em ruínas, tal qual estava o casamento de seus pais.

Ivy é a filha do meio, o "defeito" da família, talvez por ser a única que possui a maioria das características do pai. É a que cuidou de Violet durante anos tanto quanto ele, e que conquistou o afeto da mãe unicamente pela condição de dependência, já que foi a única das filhas que esteve presente.

Karen é a filha mais nova, a "desprezada", e que notoriamente se "acostumou" com a situação, tal qual como sua mãe. Essa personagem é a mais deslocada de todo o filme, a única com um comportamento que não se encaixa em lugar algum, e não é à toa que é sempre encontrada no canto da história ou de escanteio no filme, que de forma simbólica deixa nítida a falta de atenção e cuidado que ela sofreu pela família por nunca ter sido uma filha predileta, ou alguém que se destacasse. Ela é a que tem a personalidade mais distinta de todos por ter vivido sempre sozinha, dentro de um mundo imaginário e particular do qual ela nunca conseguiu sair, além de extremamente carente de afeto e atenção, deslumbrada com o pouco que consegue. É uma personagem pequena e que a maioria das pessoas provavelmente não darão muita atenção, mas ela tem muitos significados em todo o contexto, e a relação distante entre ela e sua mãe é chocante, como no jantar de luto, em um dos poucos momentos que Karen abre a boca para dizer algo. O olhar ferino e desdenhoso de Violet sobre ela já poupa o espectador de qualquer maior detalhe sobre a relação entre elas.

Frente a essa breve descrição das três personagens chaves da história, temos toda a trama que se completa em torno de cada uma delas, com conflitos muito semelhantes uns dos outros, como a mostrar que, embora uma familia esteja em ruínas, vivendo separadamente uns dos outros, os laços que os mantêm conectados ultrapassam uma mera condição sanguínea e genética. É muito mais do que isso, e são definitivamente as heranças psicológicas herdadas entre eles e a tragédia.

Quando o filme é analisado dentro deste contexto mais profundo e conflituoso de uma estrutura familiar, seu roteiro e o desenvolvimento dos personagens fazem muito mais sentido. Obviamente que há uma ou outra cena com excessos dramáticos, mas são relevantes por ser uma adaptação teatral, e esse tom ter sido mantido em momentos oportunos como o jantar de luto do patriarca ou no almoço entre Barbara, Violet e Ivy, e também para ampliar a personalidade de cada um e a semelhança entre eles ser mais nítida.

Há muito mais que pode ser observado no filme e nas relações desastrosas entre os personagens, mas são tão meticulosos, subliminares e muitas vezes delicados que são indescritíveis em palavras, apenas perceptíveis quando assistidos por este ponto de vista analítico.

Por incrível que pareça, é um filme que, mesmo se mantendo dentro de um padrão dramático Hollywodiano, é bastante diferente dos dramas familiares comumente produzidos e, talvez, um dos mais relevantes no circuito comercial que assisti nos últimos anos. Não é uma observação muito comum entre as críticas que li até o momento, mas por se tratar de uma obra de Tracy Letts é de se esperar que há muito mais na história do que a própria história mostra, e é necessário estar atento a isso, pois só quem já conhece o estilo do autor, por conta de suas duas adaptações anteriores, poderá compreender todos esses intercursos com mais facilidade. Também há espaço para algumas reviravoltas na trama, simples, porém inesperadas, como também é parte do estilo do autor e roteirista.

Não há o que se falar sobre as atuações. Meryl Streep dispensa comentários e Julia Roberts está segura, e até mesmo aqueles que se parecem deslocados ou meio fora de contexto, isso é apenas uma impressão superficial. É interessante perceber que não há uma similaridade sequer entre os atores escolhidos ao ponto do espectador realmente considerar aquilo como uma família de fato, como se essa escolha um tanto aleatória tenha sido proposital para representar todo esse caos que a trama alimenta, e a conexão entre eles ser única e exclusivamente, como já dito, pelos seus conflitos e semelhanças psicológicas.

Infelizmente o filme não concorreu na categoria de Roteiro Adaptado nas premiações mais populares (com excessão do Writers Guild), o que é uma pena, pois novamente ignoram mais um trabalho consistente e desafiador de Tracy Letts.

CONCLUSÃO...
Sem dúvida um filme que deve ser analisado além do que ele mostra superficialmente, uma representação muito verdadeira dentro de seus exageros dramáticos de que os filhos são espelhos de seus pais e que quebrar os laços dessas heranças traumáticas e psicológicas são desafiadoras e talvez impossíveis, pois são justamente isso que os conectam (atenção para a revelação que Ivy faz quando diz que não poderá ter filhos, como um simbolismo da quebra desta perpetuação de heranças). Mais um roteiro brilhante desenvolvido por Tracy Letts, que novamente usa e abusa de construções psicológicas densas para seus personagens, fundamentados e teorias e observações verdadeiras, nos propondo a pensar e repensar no que realmente significa os laços e as estruturas familiares, seus erros e acertos, o que devemos manter para as gerações seguintes e como quebrar as heranças trágicas.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

ERRA POR UM LADO, MAS ACERTA EM OUTROS...

★★★★★★★
Título: Clube de Compra Dallas (Dallas Buyers Club)
Ano: 2013
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Jean-Marc Vallée
Elenco: Matthew McConaughey, Jared Leto, Jennifer Garner, Steve Zahn, Griffin Dunne
País: Estados Unidos
Duração: 117 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Sobre a história verídica de Ron Woodroof, que sem querer foi um dos pioneiros no auxílio da pesquisa para a busca de um protocolo de tratamento eficiente para o HIV em uma época em que pouco se sabia sobre a doença e a indústria farmacêutica não tinha a mínima idéia de onde ou como desenvolver suas pesquisas e suas drogas.

O QUE TENHO A DIZER...
O filme é dirigido pelo mesmo diretor de A Jovem Rainha Vitória (The Young Victoria, 2009), o canadense nascido na provícia de Quebec, Jean-Marc Vallée.

A história tem início em 1985, durante o delicado período epidêmico de HIV ocorrido nos EUA na década de 80. Para os que desconhecem, esse surto de contágio fatidicamente ocorreu alguns anos depois do movimento de liberação sexual gay, iniciado também nos EUA, mais precisamente em São Francisco/CA, entre o fim dos anos 60 e início dos anos 70, mas que ainda ecoava não apenas pelos EUA como também pelo mundo. Por conta disso, o vírus HIV, desconhecido na época, foi vulgar e erroneamente associado à homossexualidade porque o primeiro caso descoberto e registrado foi de um paciente homossexual. A associação do vírus com essa orientação sexual gerou muita discriminação e debate (mais do que já havia), bem como a crença de que apenas eles eram um grupo de risco, pensamento ainda muito comum nos dias de hoje.

Com o tempo conseguiu-se divulgar o fato de que todos estão propensos ao contágio e que não existe um grupo de maior ou menor risco. Naquela época o preservativo existia mais como um método contraceptivo, raramente utilizado para prevenção de DSTs, e ninguém se preocupava com um vírus mortal porque o HIV era desconhecido. Principalmente depois do movimento de liberação sexual gay, pessoas faziam sexo em qualquer lugar e com qualquer pessoa, e o surto epidêmico entre os homossexuais acabou sendo maior por conta de todos esses fatores agregados.

Mas o filme não é sobre o movimento de liberação sexual, e muito menos se passa em San Francisco, pelo contrário, se passa no Texas, um dos estados mais conservadores e machistas dos EUA.

Vai contar a história verídica de Ron Woodroof (Matthew McConaughey), um texano que vive na cidade de Dallas, machista, homofóbico, ninfomaníaco, alcólatra e cocainômano, e que descobre a doença por acaso, depois de um acidente de trabalho. Ele não quer acreditar no diagnóstico, mesmo com os exames em mãos, porque para ele o HIV é uma doença de gays, como era divulgado fortemente na época. Ron vai atrás de informações sobre o vírus e a doença, descobrindo que entre os grupos de risco estão as pessoas que fazem sexo sem proteção, o que o remete a lembrar de uma relação sexual específica que ele teve no passado e a finalmente ter de aceitar a dura realidade. Durante suas pesquisas ele descobre as drogas que estavam em uso para testes, sendo uma delas o AZT. Ele volta para o hospital e exige tratamento com a droga, que é negado pela médica Eve (Jennifer Garner), a qual informa que, por estar em fases de testes, não é certeza de sua eficácia e muito menos da garantia de terem a droga verdadeira, pois a indústria farmacêutica misturava placebo entre os lotes e apenas os fabricantes tinham conhecimento de quais eram eles. Desesperado, Ron consegue comprá-la ilegalmente, administrando-a em doses exageradas e sem acompanhamento médico. Por conta da superdosagem ele se intoxica e sofre um colapso que quase o leva a morte. Acreditando que a droga ainda possa ser sua salvação, ele continua sua busca no mercado negro, o que o leva ao Dr. Vass, o qual teve sua licença cassada nos EUA por tentar enfrentar as gigantes farmacêuticas, e agora trabalha no México, desenvolvendo pesquisas principalmente com soropositivos. A observação cientifica do médico é de que o AZT destruia todas as células saudáveis do sangue e que, embora a doença não fosse curável, havia a possibilidade de conviver com ela desde que haja a manutenção constante dos níveis saudáveis do sangue, utilizando suplementos vitamínicos e protéicos, e uma droga de combate ao vírus menos agressiva, além da instrução de que o paciente deve ficar longe do uso de outras drogas e manter uma alimentação regular e saudável. Ron tem uma melhora significante nos três meses que fica em tratamento com o médico, e volta para os EUA com o interesse de fazer de sua descoberta uma mina de dinheiro ao contrabandear os produtos, já que eles ainda não eram aprovados pela agência nacional de controle, mas também não eram considerados ilegais. Com o tempo Ron percebe a melhora e a satisfação de seus clientes, bem como um aumento constante de novas pessoas que o procuram em busca  do novo tratamento. Pensando nisso, e com a ajuda da travesti Rayon (Jared Leto), ele resolve ampliar seu negócio de forma mais organizada e abre o seu Clube de Compra Dallas, onde para ser sócio é necessário preencher uma ficha médica, assinar um contrato de responsabilidade e pagar US$400, dando direito ao sócio de ser fornecido constantemente com os suplementos. Ron passa a não pensar mais nos lucros quando a indústria farmacêutica se sente ameaçada por suas descobertas e passa a interferir em seu trabalho e na pesquisa que ele resolveu desenvolver por influência do Dr. Vass. Aos poucos ele consegue provar a Dra. Eve que o AZT reduz a expectativa de vida de um paciente, enquanto com os produtos que ele comercializa a expectativa aumenta, conseguindo uma aliada na guerra que ele trava contra a agência nacional de controle.

Sem dúvida o filme aborda todo esse período na história da doença e do desenvolvimento de uma droga farmacêutica com muito empenho, bem como os demais assuntos paralelos, como o preconceito e a discriminação sofrida pelos soropositivos, a falta de informação, a dominação corporativa e a dificuldade de todas as pessoas (saudáveis ou não) em lidar com tudo isso.

Muito embora o roteiro esteja presente na temporada de premiações na categoria Roteiro Original, algumas coisas chegam a incomodar aos mais atentos. Mesmo a história sendo dividida durante os dias de vida do personagem principal, a impressão que se tem é que tudo acontece de uma vez só, não havendo uma percepção de passagem de tempo muito efetiva. Os roteiristas também parecem não ter prestado muita atenção em personagens coadjuvantes chaves que surgem repentinamente na história e que nunca sabemos de onde são ou de onde surgiu o grau de relação enre eles, como o policial Tucker (Steve Zahn), a secretária e ajudante Denise (Deneen Tyler) ou até o caso romântico de Rayon. O desenvolvimento da relação entre Ron e Rayon também não soa muito convincente, já que os preconceitos e homofobia do personagem chegavam a níveis de intolerância máxima. Também é pouco explorada a percepção do personagem sobre a gradiosa descoberta que faz, ou da sua transição de um homem oportunista para um pesquisador por acidente que contribuiu imensamente para pesquisas futuras e na evolução de drogas farmacêuticas efetivas. O Clube de Compra Dallas também teve uma grande popularidade nos EUA, ultrapassando as fronteiras do Texas para outros estados do país, mas isso também é pouco pontuado, sendo apenas referido em alguns momentos enquanto Ron gerencia seus negócios por telefone.

O mérito do roteiro é definitivamente na congruência de várias situações e dificuldades que foram sofridas e a importância de Ron Woodroof em criar e divulgar, talvez, o primeiro protocolo de tratamento efetivo para o HIV.

Mesmo a história sendo fortemente baseada em fatos reais, muitos dos acontecimentos e personagens são fictícios, como a travesti Rayon e Dra. Eve. Segundo os roteiristas, esses personagens foram criados em referência aos vários travestis soropositivos e médicos entrevistados durante a pesquisa. A personalidade real de Ron também é contraditória, pois embora ele mesmo tenha afirmado em uma entrevista concedida ao roteirista Craig Borten de que a sua convivência com os gays tenham mudado consideravelmente sua percepção sobre eles, pessoas próximas chegaram a afirmar que ele não era homofóbico e, na verdade, era bissexual, e que seu comportamento mostrado no filme é exagerado, já que ele era um tipo intimidador, mas não violento.

É interessante também que, embora o Clube tenha tido uma grande popularidade nos EUA naquela época, poucas informações são encontradas sobre ele e sua existência é desconhecida pela maioria. O próprio ator que interpreta o personagem afirmou que desconhecia totalmente a existência de Ron e do Clube, e Jennifer Garner também disse em uma entrevista que leu diversas revistas científicas e jornais durante aquele período e não encontrou qualquer referência sobre o Clube e a importância que ele teve no tratamento. 

O filme concorre a seis Oscars, incluindo Melhor Ator a Matthew McConnaughey e Ator Coadjuvante a Jared Leto. Embora o talento de McConaughey já tenha sido reconhecido ainda na década de 90 em filmes como Tempo de Matar (A Time To Kill, 1996) e Amistad (1997), passou um tempo se dedicando a filmes de ação e comédias românticas pouco expressivas e apenas nos últimos anos tem se dedicado a papéis mais densos e complexos como nos filmes Killer Joe (2011), Obsessão (Paperboy, 2012), Amor Bandido (Mud, 2012) e Magic Mike (2012), todos personagens sulistas por excelência, porém interessantes e distintos, que finalmente chamaram a atenção da crítica e da Academia. Sem dúvida a transformação física que o ator sofreu é relevante (ele emagreceu mais de 20kg para o papel), mas ao contrário do processo similar que Tom Hanks realizou em Filadélfia (Philadelphia, 1993), aqui o ator não se coloca em uma posição submissa e martirizada, ele desempenha um papel forte e autoritário, superando obstáculos e lutanto o tempo todo contra seu próprio corpo devido a debilitada condição que se encontra, conseguido transpor sentimentos sem caricaturas ou cliches. Jared Leto também passou pela mesma transformação, emagrecendo mais de 10kg para sua personagem. Sua atuação também é notável, e mesmo representando um tipo estereotipado, sua perfomance é tão delicada e sensível que não aparenta artifical, forçado ou vulgar.

A atuação só é sofrível mesmo com Jennifer Garner. Para quem acompanhou sua trajetória no seriado Alias, sabe que ela realmente pode atuar, mas agora chega a espantar a falta de talento que ela apresenta filme após filme (com excessão de Juno, talvez por ter sido bem dirigida). Mas não é possível compreender o que aconteceu com essa atriz que, quanto mais os anos passam, pior ela fica, atuando de maneira até infantil, jogando no lixo o Globo de Ouro que já recebeu outrora pelo papel de Sidney Bristow.

Os conflitos são muito bem colocados e raramente o diretor apela para uma cena dramática excessiva, mantendo o filme sempre dentro do tom mais sincero e realista possível e emocionante por conseguir nos inserir nas condições vivenciadas pelos personagens. O próprio diretor afirmou que o filme sofreu vários problemas financeiros e quase não pode ser finalizado por falta de verbas. Matthew investiu dinheiro pessoal para o filme, bem como outros atores como Brad Pitt e Ryan Gosling, além dos diretores Marc Forster e Craig Gillespie. Com orçamento apertado, as filmagens duraram apenas 25 dias, não houve iluminação cenográfica ou ensaios, e os atores não foram mantidos na pós produção para correções. Mas o mais interessante de tudo é a produção ter sido filmada inteiramente com apenas uma câmera de mão capaz de gravar apenas 15 minutos, e o trabalho de edição realizado foi tão bem feito que se essa informação não tivesse sido divulgada, seria imperceptível. Não é à toa que o filme também concorre ao Oscar nas categorias de Edição, Direção e Filme, porque apesar de alguns poucos defeitos, sabe-se que eles existem por conta das limitações técnicas e não por incompetência, e o tanto que foi feito com tão pouco resultam em um belíssimo e admirável trabalho que merece ser respeitado por conta de sua grandiosa intenção.

CONCLUSÃO...
Frente a tantos problemas orçamentais que a produção teve em conseguir fundos para concluir as filmagens, realmente é um trabalho bastante digno que não apenas é baseado em fatos reais como também conta uma parte muito importante da história da descoberta do HIV e pesquisas para seu tratamento. Não podemos ignorar o fato de que isso tudo ocorreu em uma época em que ninguém tinha idéia de como combater ou começar a combater a doença, e que a indústria farmacêutica também não teve outra alternativa a não ser produzir os coquetéis e testar diretamente em humanos e de forma aleatória frente a urgência cobrada da situação. Os primeiros coquetéis produzidos possuiam uma composição completamente diferente da atual e eram muito mais agressivos (embora os efeitos colaterais sejam inúmeros e igualmente fortes), mas hoje em dia o seu uso é efetivo e o aumento da expectativa de vida é comprovado e bastante considerável em comparação com o da época do início das pesquisas. O filme também peca neste aspecto, em não esclarecer isso ou informar o espectador de que os tratamentos mostrados no filme são antigos e ultrapassados frente aos avanços farmacêutico e dos protocolos médicos de tratamento disponíveis hoje em dia.
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