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segunda-feira, 30 de novembro de 2015

"BLACK... BLACK... BLACK..."

★★★★★★★★
Título: Amy
Ano: 2015
Gênero: Documentário
Classificação: 12 anos
Direção: Asif Kapadia
País: Reino Unido, Estados Unidos
Duração: 101min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Vida e obra da cantora britânica Amy Winehouse.

O QUE TENHO A DIZER...
Falar de Amy Winehouse é desnecessário. Todos nós fomos testemunhas de toda sua trajetória, assim como também fomos cúmplices do perverso sensacionalismo que cresceu a sua volta como um fungo. E também somos responsáveis porque consumíamos isso.

Chegou um tempo em que Amy não era mais a cantora, mas a viciada, a problemática, a louca e esquisita. A mídia fez disso uma moda, e ser assim se tornou cool, e Amy foi a tendência. Todos nós acordávamos já esperando encontrar na revista, no jornal ou nos trend topics do Twitter a próxima e última trágica notícia. Aliás, não esperávamos. A avidez com que fazíamos isso chegava ao nível de desejo mórbido, tamanha a lavagem cerebral atroz que a mídia criou em cima de sua persona ao ponto de sua voz ser subtituída apenas por vexames e constrangimentos quando ela queria apenas estar sozinha.

Até que um dia a notícia veio, e realmente não foi surpresa.

Portanto, falar de Amy é desnecessário.

O que é necessário falar, o documentário já o faz muito bem com acervo audiovisual que ilustra as principais fases da cantora britânica. É narrado por parentes, amigos e até seu ex-marido, além de algumas gravações de telefonemas.

Houve uma polêmica envolvendo o lançamento do documentário em que o pai de Amy, Mitchell Winehouse, acusou o diretor Asif Kapadia de ter distorcido a imagem familiar de Amy com informações inverídicas. Mitchell pediu publicamente que os fãs da cantora assistissem ao filme apenas pelo acervo nunca visto ou ouvido antes, e somente isso, porque a edição distorce principalmente a relação familiar de Amy, pontuando mais os pontos negativos do que os positivos de sua vida.

A campanha de Mitchell contra o filme não adiantou e o resultado foi totalmente o oposto, sendo de relativo sucesso pelo mundo e aclamado pela crítica por ser uma biografia sucinta baseada em materiais sólidos. Ao contrário do que o pai da cantora afirmou, o resultado final não é tendencioso, mas respeitoso e até superficial, pois boa parte do que é mostrado, chegamos a acompanhar na época. Os pontos são apenas ligados para uma melhor compreensão dos fatos e nada mais.

Entre um ou outro momento há declarações da própria cantora da relação distante que ela tinha com o pai quando criança, do divórcio dos pais, ou de "problemas familiares" que ela passava (o fato dos pais serem divorciados já é um problema evidente), mas novamente, sem entrarem em detalhes. Dessa forma ninguém é retratado como um grande vilão além da própria mídia que a sufocou, de seu ex-marido, Blake Fielder-Civil (que não é o responsável, mas foi o ponto de mudança na vida da cantora) e da grande pressão sofrida pela gravadora, resultando na desastrosa apresentação em Belgrado, na Sérvia, em 2011.

Então, na realidade, a polêmica que Mitchell criou em cima do filme é mais ilusória do que real.

Kapadia segue a cronologia como todo documentário faz, sem tentar criar uma imagem da cantora diferente daquela que já conhecemos, mas desmistificando alguns pontos, principalmente nos meses que Amy se afastou em Santa Lucia e permaneceu sóbria e suas incansáveis tentativas de se reabilitar, algo que muita gente não acredita que ela sequer tentou.

O filme deixa bem evidente logo no início quando, em um vídeo familiar, ela canta um trecho de "Happy Birthday" ou em registros de algumas audições, que ela não foi uma cantora "montada" por uma gravadora, pois até mesmo antes do album Frank (2003) ela já se inspirava nos seus ídolos clássicos até mesmo no seu visual retrô.

Chamar Amy de "artista incompreendida" soa como um resumo muito cliché e simplório porque ela era muito clara a respeito de seus sentimentos e vontades, principalmente nas músicas. A verdade é que ela era uma pessoa com fortes indícios de depressão congênita, cujos sentimentos depreciativos e autodestrutivos não precisavam de muito para serem engatilhados. Ela sabia disso, mas não conseguia lidar além do uso da música para extravasar o mundo confuso que vivia, e que se degradou aos poucos porque as drogas que passou a usar lhe traziam um alívio momentâneo de tudo aquilo. Fora a ilusão que alimentou de que elas eram a solução de seu problema.

Mais do que uma cantora genuína e expressiva, Amy também era compositora das letras e melodias. Como Tony Bennett diz, Amy deve ser colocada no mesmo patamar de Ella Fitzgerald e Billie Holliday. E ouvir isso de uma das poucas figuras ainda vivas da era de ouro do Jazz, é para ninguém discutir.

Que Amy foi um chacoalhão que o cenário musical precisava na época, é inegável. Tanto que cantoras que surgiram depois dela, como Duffy, Adele, Gin Wigmore ou Paloma Faith, reconhecem que, se não fosse por Amy, as portas de suas carreiras ainda estariam fechadas. A perda de Amy também é sentida, principalmente pelo fato de até hoje nos perguntarmos o que mais teríamos ouvido dela depois de Back To Black (2006), ao mesmo tempo que sua regravação de You're Wondering Now, uma de suas últimas, faz tanto sentido.

É um documentário simples, que ainda sim consegue ser emocionante principalmente quando a trilha sonora original e chorosa de Antonio Pinto surge para intensificar o tom nostálgico e saudoso que sempre desperta ao lembrarmos dela.

CONCLUSÃO...
Ao contrário da polêmica que Mitchell Winehouse criou sobre o documentário, o material não distorce a imagem familiar ou paterna da cantora, ele até poupa a família em não entrar em detalhes sobre isso. E sem apelar para o sensacionalismo, o filme mostra de forma sucinta através de acervo audiovisual sólido os importantes momentos de uma carreira curta, porém relevante e marcante para a história musical mundial.

domingo, 29 de novembro de 2015

O FILHO DO MEIO...

★★★★★★
Título: Os Vingadores: Era de Ultron (The Avengers: Age Of Ultron)
Ano: 2015
Gênero: Herói, Ação, Fantasia
Classificação: 12 anos
Direção: Joss Weadon
Elenco: Robert Downey Jr., Chris Evans,  Chris Hemsworth, Mark Ruffalo, Scarlet Johansson, Jeremy Renner, Elizabeth Olsen, Aaron Taylor-Johnson, Paul Bettany
País: Estados Unidos
Duração: 141min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Quando Tony Stark e Bruce Banner decidem retomar um projeto de manutenção de ordem e paz chamado Ultron, a situação sai do controle de forma totalmente contrária do que esperavam.

O QUE TENHO A DIZER...
A Era de Ultron é parte da Fase 3 do universo cinematográfico da Marvel. Fases divididas para que o público compreenda melhor a sequência de filmes e séries que terão uma conclusão em comum. É como se cada um dos filmes fosse uma edição especial de quadrinhos com elementos chaves que direcionam cada próximo capítulo da história.

Marvel criou um universo gigante no cinema, até mesmo com franquias que diretamente não fazem parte dele, como X-Men, já que a Fox detém seus direitos (tanto que o termo "mutante" não é, e nem pode ser, usado nos outros filmes), contribuindo consideravelmente para aquilo já considerado um novo gênero no cinema: os filmes de super heróis. Tanto que sua rival, a DC Comics, juntamente com a Warner, agora engataram para projetos semelhantes aos feitos pela Marvel para pegar sua fatia no mercado nesse novo gênero e criar seu próprio universo dentro do cinema.

Pode parecer um pouco confuso e complexo para quem não assistiu todos os filmes das fases anteriores, que teve início com o primeiro Homem de Ferro (Iron Man, 2008), mas nada é muito consistente porque o produto principal de todos eles é o entretenimento nu e cru.

O que beneficia quem assistiu todos os filmes (e que agora inclui as séries de televisão também) é a conexão até natural que existe entre eles, com referências e elementos que surgem em breves momentos durante as histórias. Para aqueles que são fãs de quadrinhos, ver os heróis personificados é delirante, e para aqueles que não são, terão uma idéia muito próxima de como a Marvel nos quadrinhos funciona.

Diferente do que vem acontecendo no Netflix, que tem expandido mais ainda esse universo com outros heróis da marca por pontos de vista mais violentos e adultos, o tom no cinema é sempre mais brando para atingir o maior público, que inclui crianças e adolescentes, os maiores consumidores do gênero, e é isso que, em partes, acaba estragando o resultado.

É o que acontece aqui.

Tal qual o filme anterior, Ultron é recheado de cenas de ação, com piadas previsíveis, fáceis e bobas entre uma atitude heroica e outra, dispersas e sem timing. Mas esse excesso de atenção ao público infantojuvenil acaba ferindo o público adulto mais do que aconteceu no primeiro filme, subestimando a inteligência com inúmeras piadinhas que não causam nem um sorriso amarelo sequer, o que fica óbvio desde o princípio que o único entretenimento são os efeitos especiais e somente isso.

É cansativo todo momento ver Tony Stark (Robert Downey Jr.) por dentro da armadura, tecendo comentários tão espirituosos quanto apresentadores da Rede TV, ou Thor (Chris Hemsworth) querendo ser engraçado e Capitão America (Chris Evans) sendo dramático em seus discursos motivadores que batem continência ao suicídio. Em um filme cuja história tende a ser rasa e pouco importante, havia espaço de sobra para um humor mais inteligente e sagaz, algo que o vilão Ultron (James Spader) até consegue ser no começo, mas de repente cai no pastiche tanto quanto sua mirabolante idéia de extingir a raça humana da Terra. E então o inevitável acontece: o vilão perde a força na trama e se torna tão esquecível ao ponto de praticamente sumir, deixando um buraco sem razão para os heróis fazerem tudo que estão fazendo.

É praticamente regra toda segunda parte de uma trilogia ser mais equilibrada por ser a ponte de transição entre um filme e outro, e Ultron é um deles. Por isso, peca justamente ao tentar manter esse nível de equilíbrio em excesso: nunca revelando muito para não estragar surpresas futuras, ou nunca tentando ser melhor que o primeiro filme no medo de não conseguir garantir que Guerras Infinitas, que será lançado em duas partes em 2017 e 2018, consiga ser superior que os anteriores. A saga dos Vingadores precisa acabar coesa e respeitada, e fazer desse segundo filme algo ameno e um tanto indiferente é estratégico.

No primeiro filme tudo era empolgante, embora rápido demais, o que fazia o espectador muitas vezes não saber quem estava fazendo o quê. Talvez tenham ficado mais atentos a isso dessa vez, e a câmera lenta se tornou uma excelente ferramenta em algumas sequências não apenas para intensificar alguns efeitos como também nos dá tempo de apreciar melhor o que cada um faz em ação.

Mas a empolgação também não dura muito. Cheio de diálogos chochos e um desenvolvimento bastante desinteressante que chega até a envolver um draminha conflituoso entre eles que não convence, entre um bocejo e outro, nem mesmo a trilha sonora de Danny Elfman consegue ser um aditivo importante e uma identidade, como já foi em filmes como Batman (de Tim Burton) ou Homem Aranha (de Sam Raimi). Com excessão de uma sequência ou outra, como no primeiro minuto de abertura em uma cena sem cortes, mostrando cada um dos vingadores agindo coordenadamente no campo de batalha, ou a mesma interação durante um ataque de androides, nada mais é muito impressionante. Nem mesmo quando Ultron transforma a cidade fictícia de Sokovia em uma ilha flutuante, como que para justificar a destruição em massa sem gerar polêmica, já que o primeiro filme foi bastante criticado por tanta destruição gratuita no cenário de Nova York.

Outra vez há espaço para todos os personagens, e como prometido deram uma participação maior a Hawkeye (Jeremy Renner). Os irmãos Maximoff (Elizabeth Olsen e Aaron Taylor-Johnson) foram bastante subutilizados, e a química da equipe já não é mais tão forte como no primeiro filme, uma impressão que até ajuda a trama, como também ajuda a tentativa de não haver um personagem principal mais destacado que outro.

Ultron não consegue em nenhum momento ser superior ao filme de estréia, ele nem mesmo se esforça. O diretor e roteirista Joss Wedon pode ter feito um bom material para aqueles que acompanham esses heróis no cinema, justificando a saída de alguns personagens e a entrada de outros (já que nos quadrinhos a rotatividade de heróis na equipe sempre foi grande), além de ter dado importantes prévias dos rumos que as próximas duas partes podem tomar a partir das visões e delírios que cada um deles tiveram ao serem enfeitiçados pela Feiticeira Escarlate, as únicas cenas mais relevantes de todo o filme dentro do contexto do Universo no cinema. Portanto o resultado é um filme caro e fraco, não ao ponto de ser decepcionante, mas um mais do mesmo como sempre.

CONCLUSÃO...
Repetindo o sucesso do filme anterior, arrecadando pelo mundo aproximadamente US$1.5 bilhões, o sucesso se deve mais pela curiosidade do que pela qualidade, já que não consegue ser superior ao primeiro filme em nenhum aspecto. Nem ao menos tenta. Tanto é assim que não foi tão marcante como o primeiro, de onde quer que você fosse ouvia alguém comentar a respeito. Foi algo consumido em massa, mas digerido muito rapidamente.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

JÁ ACABOU, JESSICA?

★★★★★★★★★☆
Título: Jessica Jones
Ano: 2015
Gênero: Drama, Ação
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Krysten Ritten, Rachael Taylor, David Tennant, Carrie-Anne Moss, Mike Colter
País: Estados Unidos
Duração: 50 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Uma detetive particular com super poderes descobre que um homem responsável por vários traumas de seu passado está de volta, deixando mais um rastro de vítimas por onde passa.

O QUE TENHO A DIZER...
Jessica Jones é parte da empreitada da Netflix em investir em super herois subaproveitados da Marvel. O primeiro foi Demolidor, lançado no começo do ano e que superou as expectativas tanto do serviço quanto de seus assinantes. Jessica Jones é o segundo, enquanto Luke Cage e Iron Fist estão previstos para 2016. Esses quatro heróis fazem parte do mundo de Demolidor, que estão inseridos no universo da Marvel.

A idéia da Marvel é explorar heróis que, de alguma forma, não tem espaço para serem explorados no cinema, e assim expandir sua proposta para outras mídias e dar continuidades paralelas aos acontecimentos dos filmes, já que todos eles ocorrem dentro de uma mesma época, mesmo que não estejam conectados. Por isso que a estratégia da Marvel com a Netflix será a mesma que foi na telona, apresentando os heróis com seus seriados individuais para depois reuní-los em um especial que se chamará The Defenders, previsto para 2017.

Jessica (Krysten Ritter) é uma mulher independente, com super poderes e uma personalidade um tanto auto-destrutiva, inferiorizada por conta de acontecimentos traumáticos no passado, tanto na sua infância quanto os causados por um homem misterioso e muito perigoso conhecido como Killgrave (David Tennant).

Killgrave possui o poder da persuasão e do controle da mente, e Jessica foi uma de suas vítimas, conseguindo escapar com diversas sequelas psicológicas que a fizeram abandonar a vida fracassada de heroína. Para alimentar seus vícios e pagar o aluguel de um horroroso apartamento, ela agora trabalha como detetive particular. Dessa forma também se sente útil sem precisar estar em evidência e muito menos ter um pseudônimo e uma identidade secreta, já que vive pelas sombras da cidade e da sua autodepreciação, sabendo que ninguém dará atenção a isso.

Logo no primeiro episódio ela é contratada para descobrir o paradeiro de uma garota desaparecida, e durante as investigações percebe que Killgrave está envolvido, fazendo-a reviver novamente o pesadelo do passado, piorando suas crises ao ponto de decidir fugir.

Mas é durante o desespero que percebe que fugir nunca será a solução. A solução é, na verdade, neutralizar o responsável por tudo. Então a heroína adormecida ressurge, não apenas para impedir o vilão de fazer outras vítimas, mas para superar seus traumas e se livrar da obsessão de um homem que a aprisionou e acredita dominá-la.

Ao contrário do desenvolvimento de Demolidor, aqui a história engata para um suspense dramático mais psicológico, embora a fórmula seja basicamente a mesma, começando com a trilha sonora progressiva de abertura, bastante similar com a do seriado anterior.

A melhor parte desta fórmula é que novamente nada é tratado como um seriado de ação cuja única proposta seja um super herói combater vilões poderosos. E o ingrediente diferenciado aqui é que ele não é recheado de pancada e perseguições miraboltantes na tentativa de impedir o caos e a destruição em massa de uma cidade, como muita gente pode esperar. Assim como no seriado de seu colega de bairro (já que ambos são ambientados no bairro novaiorquino Hell's Kitchen), mesmo havendo o lado fantástico dos quadrinhos naturalmente embutido, o assunto é levado a sério, de maneira envolvente, adulta e, por vezes, pesada demais, bastante diferente do universo mais lúdico que a Marvel levou aos cinemas, de classificação etária mais acessível.

Se em Demolidor a máfia foi abordada de forma crua e violenta, aqui o tom não é diferente. Mas ao invés do sangue escorrer pela tela, o que realmente aflige o espectador é a proximidade amarga com a realidade ao tratar de assuntos delicados e recorrentes, como a discriminação, o assédio, a violência contra mulheres e o estupro. De forma indireta também lida com o sexismo e a misoginia, já que o seriado é liderado por um elenco feminino, de personagens poderosas que fogem de estereótipos frágeis e submissos para agradar o público masculino. Tudo a calhar numa época em que as mulheres voltaram a questionar seus valores e a sua importância no mundo atual.

Sim, são todos assuntos válidos e que chegam a dar um nó na garganta, como no sexto episódio, em que Jessica visita na enfermaria da prisão uma das vítimas de Killgrave. É quando outro assunto mundialmente discutido entra em pauta e de maneira bastante discreta e impactante. São momentos como esse que percebemos como as metáforas no mundo Marvel sempre foram muito fortes, e que heróis e poderes são ferramentas relevantes para mostrar através da fantasia como é a realidade que vivemos, nos mantendo atentos enquanto a mensagem disfarçada de diversão e passa tempo é absorvida.

As atitudes duronas de Jessica são apenas para camuflar seus medos e receios. Por dentro ainda é uma mulher que se sente fragilizada e inferiorizada, que agora luta para se livrar desse sentimento opressor e dominador custe o que custar, como a emergir do fundo do mar. Os poderes de Jessica se tornam bastante coadjuvantes, esquecíveis até. Estão lá apenas como um adorno, para nos lembrar de que ela é uma personagem adaptada dos quadrinhos e para reforçar a idéia de que ela é uma metáfora da mulher que se fortalece para lidar com qualquer problema.

Sim, é um seriado com tons feministas, mas tudo muito bem construído e abordado. Nada panfletário, mas óbvio em sua proposta, o que deixa evidente a boa qualidade do roteiro que consegue inserir e desenvolver todos esses assuntos em forma de tramas e não de discussões impositivas.

Claro que também há espaço para os alívios cômicos. O próprio temperamento da protagonista já é um por si só, rendendo algumas situações engraçadas até quando o assunto é sério, como quando sofre hostilidade de um casal preconceituoso que acusa pessoas com poderes de terem destruído Nova York e matado pessoas inocentes (em referência aos acontecimentos de Os Vingadores), e Jessica se defende dizendo que ela nem estava lá, e que se é para acusar alguém, que acusem "o homem verde e o outro que se veste de bandeira" (referindo-se a Hulk e Capitão América). Alívio cômico certeiro que brinca com as próprias referências do universo Marvel, assim como quando ela recomenda uma outra investigadora, chamada de Angela Del Toro, outra personagem dos quadrinhos e do mesmo universo de Demolidor.

Essas metacríticas em tom de piada são recorrentes em qualquer adaptação da Marvel porque são formas bem humoradas de fazerem referências diretas aos materiais originais e especialmente feitas para o delírio dos fãs. Claro que em Jessica Jones não seria diferente, havendo referências diretas à própria imagem da personagem nos quadrinhos quando, em um flashback, Trish propõe que Jessica use um horroroso uniforme branco e adote o pseudônimo Jewel, nome e uniforme que a personagem utilizou nas publicações antes de abandonar a carreira de heroína.

Como acontece na maioria das produções originais do Netflix, demora alguns episódios até tudo engatar o ritmo que o espectador realmente espera, e o clima neo-noir apenas contribui para dar mais ênfase ao suspense psicológico do que na ação. A situação fica cada vez mais aterrorizante quando a obsessão de Killgrave mostra-se tão sufocante ao ponto de não termos mais certeza se ela será capaz de se livrar, ou se continuará submetida a ele. Pois é... a grosso modo pode ser apenas uma história sobre Jessica, mas que na verdade representa várias Jessicas pelo mundo afora.

Há até momentos para um romantismo cheio de obstáculos e dificuldades típicas do Universo Marvel entre Jessica e Luke Cage, já que esta também é a oportunidade de apresentarem o personagem antes dele ter seu próprio seriado (valendo dizer que ambos são casados nos quadrinhos). A boa química entre eles já nos faz perceber porque no meio de tantos erros, tudo no fim dará certo.

Algumas mudanças foram feitas para se encaixarem melhor na adaptação. O nome verdadeiro do vilão nos quadrinhos é Zebediah Killgrave, e ele é croata, mas no seriado é Kevin Thompson e ele é britânico. Nos quadrinhos, por conta de sua pele cianótica depois de um acidente, seu pseudônimo passou a ser Purple Man (Homem Púrpura) e no seriado se tornou Killgrave. Embora na série sua pele não seja roxa, suas roupas são, sejam acessórios ou até mesm o terno completo, como em alguns episódios. Seus poderes nos quadrinhos são hormônios que afetam a decisão das pessoas, no seriado é um vírus. Jessica também não tem os poderes tão desenvolvidos como nos quadrinhos, e no seriado sua força é limitada, e ela é bastante vulnerável, além de não voar. Jeri Hogarth é um homem nos quadrinhos, mas no seriado é uma mulher justamente para intensificar essa atmosfera feminina mais dominante.

Apesar de não chegar a ser uma anti-heroína como é Elektra, outra personagem também do mesmo cenário de Demolidor (e que fará sua aparição na segunda temporada do herói em 2016), sua personalidade um tanto auto-destrutiva a faz chegar bem próximo, além de ser tão bem justificada quanto da outra personagem. A diferença é que Jessica, como ela mesma chega a dizer, tem a piedade como seu maior defeito. E assim o Netflix oferece mais uma decente adaptação de uma heroína que realmente já estava na hora de todos conhecerem.

CONCLUSÃO...
O Netflix acerta mais uma vez adaptando uma história em quadrinhos da Marvel que faz parte do mundo de Demolidor, mas dessa vez por um ponto de vista muito mais feminino do que antes, e nada frágil, abordando temas delicados e desenvolvidos como tramas e subtramas, e não como discurso panfletário e impositivo em uma história de uma heroína cujos seus poderes ficam até esquecíveis perto da história que se desenvolve lenta, mas com intensidade e relevância.

sábado, 21 de novembro de 2015

BACK TO BASICS...

★★★★★★
Título: 007 Contra Spectre (Spectre)
Ano: 2015
Gênero: Ação
Classificação: 14 anos
Direção: Sam Mendes
Elenco: Daniel Craig, Christoph Waltz, Ralph Fiennes, Naomi Harris, Lea Seydoux, Monica Belucci
País: Reino Unido, Estados Unidos
Duração: 148 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma organização terrorista espalhada pelo mundo faz 007 ter que confrontar seu maior desafio: o passado.

O QUE TENHO A DIZER...
A era de Daniel Craig deu uma renovada na série 007 além do profundo suspiro de novidade pra quem é fã (ou também pra quem não era). Ninguém imaginava em 2005/06 que Craig daria conta do recado como o agente britânico. Pelo contrário, imaginavam que ele não duraria mais que um filme, ou dois. Depois que Casino Royale (2006) foi lançado, até os "fãs xiitas" que criticaram a escolha do ator abaixaram as orelhas e aceitaram que, indiscutivelmente, a escolha havia sido certeira.

Craig não é bonito ou charmoso como Roger Moore ou Sean Connery, mas é expressivo, além do porte físico enganoso que, quando mascarado no smoking, aparenta ser um mirrado agente, e fora dele mostra que o porte atlético não é algo meramente estético, mas porque é um ágil combatente corpo a corpo, um perseguidor voraz, uma máquina humana bruta a favor de sua majestade.

Foi diferente de tudo aquilo que os 007's anteriores foram porque Bond não é mais mais um cara cheio de aparatos tecnológicos, mas um cara que consegue encarar a morte de frente e ainda surrá-la com suas próprias mãos. Foi como dar a Bond uma injeção de Jason Bourne, mas sem descaracterizá-lo.

Funcionou.

Depois de Casino a expectativa por Quantum Of Solace (2008) foi estrondosa, o que atrapalhou muito o desempenho do filme e também a compreensão do público de que ele era uma continuação direta de Casino, algo que nunca aconteceu na franquia que sempre tratou de suas continuações como filmes individuais.

Para a maioria das pessoas, Quantum falhou feio nas sequências de ação e na falta de um vilão realmente marcante. A proposta principal era dar maior ênfase às consequências psicológicas e ao abismo obscuro no qual o agente mergulhou depois da morte de Vesper Lynd. Esse foi um dos grandes méritos do filme e o mais ignorado pelo grande público, o que acabou assassinando a idéia da era Craig ser originalmente uma trilogia.

Por conta disso, a dúvida sobre o ator permanecer no papel voltou a pairar e os rumos da série ficaram incertos outra vez. Os produtores afirmaram categoricamente que Craig seria mantido, mas que a franquia voltaria a tomar novos rumos e a ter o formato de antes, ou seja, os filmes futuros não teriam mais qualquer conexão com os anteriores. E assim foi feito em Skyfall (2012), um dos mais elogiados e bem sucedidos filmes não apenas da nova safra, mas de toda a franquia. E embora ele seja recheado de referências, não há qualquer citação sobre Casino ou Quantum.

O diretor Sam Mendes, juntamente com os roteiristas, conseguiram levar o filme para outro nível e gênero. Repaginaram a série, ignoraram fatos anteriores e deram outra vez um ar de reboot na franquia. Deixou de ser simplesmente um filme de ação para se tornar um thriller psicológico denso e crescente que Quantum não conseguiu ser. Apresentando um personagem mais velhoe cansado, Bond se sentiu forçado a deixar a truculência de lado para abraçar o lado mais tático, menos impulsivo e tempestivo dos dois filmes anteriores. As limitações físicas que agora ele apresentava o obrigaram a deixar de ser um agente solitário e a confiar em uma equipe tal qual o que aconteceu com Ethan Hunt em Protocolo Fantasma (2011) ou com Batman, na série Cavaleiro das Trevas. Lançado no mesmo ano em que a franquia completaria 50 anos, Skyfall é um delírio de referências e já um clássico na série.

Óbvio que a expectativa por Spectre seria tão grande quanto foi por Quantum, tanto que Mendes foi novamente contratado como diretor, os roteiristas foram mantidos, Craig resolveu também apostar na co-produção e Sam Smith foi chamado para compor a música tema.

Só o longo plano sequência (sem cortes) que abre o filme durante um festival popular na Cidade do México já imprime bastante o estilo meticuloso de Mendes lidar com as surpresas, numa coreografia que me lembrou bastante o começo de Olhos de Serpente (Snake Eyes, 1998), de Brian De Palma, ou A Marca da Maldade (Touch Of Evil, 1958), de Orson Welles. Mas vale dizer que é a única sequência realmente ousada do diretor em todo o filme, diferente do anterior, que havia dezenas. 

Depois vem a sequência de explosões que levam Bond a cair direto em cima de um sofá, ou os absurdos acrobáticos com o helicoptero, cenas que deixam claro que Bond está novamente diferente, que o alívio cômico britâncio e sisudo, além das cenas absurdas e aceitáveis dentro do universo, tentam resgatar o delírio dos filmes mais clássicos da franquia e que sempre foram marcas registradas, mas que andavam um tanto adormecidas.

Mas é na abertura músical que a surpresa realmente acontece quando os filmes anteriores são citados em imagens como a de Vesper, dos vilões e de M.

Sim, os produtores enganaram todos muito bem, e o 24º filme não apenas é uma continuação direta de Skyfall como também a chave da era Craig e até mesmo de toda a série, como a encerrar um enorme ciclo que parecia sem fim. O resultado é que Spectre costura todos os recentes filmes, transformando-os em uma tetralogia muito bem esquematiza, dando sentido a eles e também aos quase 30 anos de James Bond no cinema. O argumento para tudo isso foi simples (claro que não irei dizer), nada muito mirabolante ou complexo, mas que funcionou no universo do espião.

Se Bond realmente existisse, poderíamos dizer que este é o seu filme mais pessoal, pois o silêncio sobre seus anos antes do Serviço Secreto finalmente é quebrado. A história demora para engatar e tudo novamente começa com Bond sendo repreendido por M devido a suas atitudes autônomas dentro do Serviço, fato de recorrência cliché, assim como também é cliché sabermos desde o começo que ele está certo. Sim, já estamos cansados dessa mesma praça e deste mesmo banco, tanto que até Bond desiste de argumentar. Mas agora o buraco é muito mais embaixo, um esquema terrorista mundial praticamente impossível de ser dissolvido, e só depois de uma hora um tanto monótona de filme é que tudo começa a tomar forma e ritmo.

Em Casino, Bond foi reapresentado como um brucutu que suava a camiseta e resolvia tudo na base da porrada, agora Bond é reapresentado em sua versão clássica, aquela em que, seja aterrisando de paraquedas no meio da rua, ou pulando de um prédio prestes a ser demolido, ele estará sempre com seu smoking impecável. E é exatamente o que acontece aqui. O personagem e o filme retomam todas as raízes clássicas. Os vilões caricatos com suas maneiras peculiares de eliminar suas vítimas, o Aston Martin equipado, o relógio multiuso para as situações extremas e o abandono da camiseta suja pela camisa engomada. Sim, o nosso Bond cresceu, e essa progressão do personagem de Casino até Spectre foi muito sutil e interessante. E é aí que o filme funciona muito bem.

Spectre está longe de superar Skyfall, podendo deixar aqueles que não esperavam uma continuação direta um pouco confusos. Para aqueles que se empolgaram com o formato bate-e-arrebenta de Bond, poderá sentir uma pontada de decepção com o retorno de Bond ao seu formato clássico, engomado e galanteador. Com um inimigo tão gigante quanto Spectre, tudo é resolvido muito simploriamente, e de complicado só fica a vida de Bond mais uma vez. As cenas de ação são bastante limitadas, dando espaço para um suspense que nunca atinge a mesma atmosfera apreensiva e naturalmente assustadora do filme anterior, o que diminui o impacto do vilão vivido por Christoph Waltz.

A cena em que Waltz aparece pela primeira vez, sob a sombra, numa crueldade de poucas palavras, consegue impactar, mas seu desenvolvimento perde a força, caindo numa caricatura quase Austin Powers. Principalmente na sequencia de tortura, em que o vilão começa a divagar sobre o procedimento até revelar sua verdadeira identidade. Tudo muito superficial, sem densidade além de um passado traumático. O engraçado é que esse tom caricato não é erro de Waltz, mas do roteiro que enfraquece porque Bond tem que lidar com tantas coisas que nem os quatro roteiristas conseguiram definir o foco.

O cliché romântico também volta com força total, além da sedução espontânea e esquecível com a personagem de Monica Belucci, que embora tenha sido uma sequência sutil e expressiva por mérito dos atores, é aleatória e fora de propósito. Depois temos Madeleine declarando seu amor por James depois de uma única tempestiva noite de amor. Tudo muito forçado, difícil de aceitar. De todas as bond girls que a série já apresentou, Madeleine pode até ser cativante nessa personalidade pseudo-frágil, duvidosa e rasa, mas a resolução da relação de ambos não foi convincente mais do que um caso do acaso. Não há uma química, uma parceria realmente impactante. Até na era Pierce Brosnam as personagens vividas por Michele Yeoh e Halle Berry, foram muito melhores e parceiras. Dessa vez parece desesperada, tanto pelo ponto de vista do personagem que sempre sofreu de solidão e agora precisa casar antes de ficar velho de vez, quanto pelo ponto de vista dos roteiristas que precisavam cativar o público com um ápice romântico na trama, um final feliz manjado e previsível para fazer jus aos clássicos e entregar para o personagem a única opção que sobrou.

De novo, não é um filme ruim, mas um filme feito às pressas, novamente pressionado pelas expectativas e pelo cronograma apertado. Ao mesmo tempo não deixa de ser, como disse um comentário que li, uma "carta de amor para toda a série", com cenas que não chegam a ser surpreendentes além da abertura sem cortes, pois todas são na verdade variantes e variáveis de filmes anteriores, apenas atualizadas, repaginadas e melhor produzidas. Não houve o mesmo cuidado e sutileza que em Skyfall porque a vontade de agora resgatar o antigo Bond é tão forte que Mendes voltou para a década de 70, realizando um filme de ação comum e repleto de absurdos que sempre fizeram parte do universo, mas que também jogaram fora, sem qualquer consideração, toda a aproximação do realismo construído por Martin Campel e Marc Forster em Casino e Quantum, respectivamente, e que funcionou tão bem.

CONCLUSÃO...
O título também reflete o que o filme é, um espectro do sucesso de Skyfall. Um filme que, sem dúvida, costura muito bem todos os últimos quatro filmes em uma tetralogia que não era esperada, ao mesmo tempo que justifica os quase 30 anos de Bond, fechando um ciclo e dando abertura para outro. Se este foi realmente o último filme de Daniel Craig, ele foi encerrado muito bem, mesmo que com falhas e superficialidade. Mas o resgate de Mendes ao mais clássico dos clássicos de Bond realmente jogaram fora todo o esforço de dar ao espião maior credibilidade com a aproximação mais realista que Casino e Quantum construíram. Apesar de tudo, dentro desses últimos quatro filmes, essa progressão de Bond da truculência ao refinamento, e esse retorno às origens (back to basics) foi bem feita e respeitosa, mas nada ousada. Apenas segura demais.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

AH-MAH-ZING!

★★★★★★★★★☆
Título: Happy Endings
Ano: 2011-2013
Gênero: Comédia
Classificação: 12 anos
Direção: Vários
Elenco: Elisa Coupe, Adam Pally, Elisha Cuthbert, Casey Wilson, Zachary Knighton, Damon Wayans Jr.
País: Estados Unidos
Duração: 28 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Seis amigos vivendo suas desventuras surreais da vida adulta em Chicago.

O QUE TENHO A DIZER...
Bem vindo a um dos melhores, mais injustiçados e mais desconhecidos seriados de comédia dos últimos anos. Tão desconhecido que até aqueles antenados em cinema e televisão pouco sabem do que se trata, e ao vê-lo disponível na lista do Netflix, pouco se interessam.

Recomendado por uma amiga que disse ser "bom pra relaxar e assistir antes de dormir", resolvi deixar meus preconceitos de lado e, com alguns anos de atraso, dar uma olhada, já que esta sitcom é um original da rede ABC, emissora conhecida por produzir seriados em um formato padronizado para conquistar as massas, recheando suas produções cômicas com os famosos "sacos de risadas" da platéia em estúdio, piadas pastelões, situações marcadas, personagens estereotipados e sonoplastia para cobrir buracos.

E acreditem, apesar de ser mais uma sitcom dessa que é uma das maiores emissoras abertas dos EUA, o seriado já surpreende por não ser exatamente assim.

Criado e escrito por David Caspe, tudo gira em torno de seis amigos que moram em Chicago. A série tem início a partir do momento em que Alex (Elisha Cuthbert) abandona Dave (Zachary Knighton) no altar. Ao contrário do que se imagina, esse acontecimento não será a trama principal como foi, por exemplo, o cansativo relacionamento entre Rachel e Ross em Friends (1994-2004), mas é o desastre que se torna a piada imperdoável mais recorrente na série. Além disso, diversas situações inusitadas serão construídas, algumas incrementadas com rápidos flashbacks para ilustrar mais ainda a comédia de absurdos que Caspe criou tão bem e que, vale dizer, são sempre hilárias.

A princípio o seriado sofreu muitas comparações com o falecido e intocável Friends, e assim como toda produção que marcou uma determinada época e se transformou em referência de um gênero ou de uma geração, qualquer outra que tente forjar o mesmo formato está fadada ao total fracasso. A crítica não foi muito positiva no começo, taxando-o como algo raso, dentro de um formato já cansado. Essa opinião mudou drasticamente conforme os episódios da primeira temporada seguiram, e o público finalmente entendeu o tom jocoso que se assemelha bastante ao surrealismo de Scrubs (2001-2010). Posteriormente, a crítica mudou de idéia, chegando a considerar a terceira temporada a melhor delas, justo quando acharam que a segunda já era insuperável.

Portanto, coincidentemente ou não, dizer que Happy Endings seja um Friends dentro do humor satírico e surreal de Scrubs, talvez seja a melhor maneira de resumidamente definí-lo, mas isso não o diminui e nem o limita. Pelo contrário, acabou construindo um universo único e até bastante original dentro da proposta.

Enquanto Friends lidava com o cotidiano dos protagonistas, Happy Endings lidou com situações aleatórias em um humor cartoonizado que deu capacidade infinita para explorarem seus personagens, suas relações e interações. Além do fato de que, pelos protagonistas serem fãs de filme e televisão (eles inclusive se conheceram em - acreditem - um reality show), o seriado também se torna uma grande celebração e uma engraçada homenagem a esse grandioso mundo do entretenimento, fazendo referências constantes a tudo que seja relacionado a isso, seja diretamente (como quando Dave está bêbado e chama cada um dos seus amigos pelo nome dos personagens de Friends), ou indiretamente (como quando Jane está em um casamento, vestindo um longo com uma fenda até a coxa, satirizando Angelina Jolie e seu modelito usado no Oscar 2012, que virou piada mundial na época).

Mesmo com uma base de fãs já consolidada e uma crítica bastante favorável, o seriado foi cancelado em 2013 por conta da perda de audiência sofrida devido às contantes mudanças de horário na grade da emissora. A própria ABC tentou, sem sucesso, vendê-lo para outras emissoras, mas nunca conseguiu chegar em um acordo com nenhuma delas. Em 2014 houve até um boato de que a Netflix estaria interessada, o que posteriormente foi desmentido, mas Caspe ainda é esperançoso de que o projeto tenha continuidade em algum futuro, em algum lugar. Ele também acredita que, na verdade, o seriado tenha sido cancelado por conta do excesso de piadas internas que surgiam na sala dos roteiristas e que eventualmente entravam no texto de alguma forma, o que acaba sendo inviável para uma emissora que busca sempre os melhores índices de audiência.

Mas as piadas internas não atrapalham, porque embora existam muitas delas feitas para poucas pessoas, os episódios são recheados de piadas universais. O que realmente atrapalha é a tradução para aqueles que não entendem a língua e dependem da versão dublada ou legendada. Muitas das piadas e referências são perdidas no processo porque são feitas em cima de imitações, trocadilhos (como o próprio nome do caminhão de lanches de Dave, "Stake Me Home") e neologismos exagerados (como a bíblia de mentiras de Penny, sua "Blieble"), coisas que não possuem traduções literais, além das referências que nem mesmo os mais cinéfilos dos cinéfilos conseguiriam compreender facilmente sem o Google ou um almanaque do lado. Exemplos disso é quando Penny (Casey Wilson) sofre um acidende e é mantida em cárcere privado por Max (Adam Pally), em sátira direta ao filme Louca Obsessão (1990), no qual a personagem de Kathy Bates quebra as pernas de um escritor do qual é fã para obrigá-lo a reescrever o fim da protagonista de seus livros, chamada Misery (que também é o nome original do filme). Daí quando Penny diz: "Max is Misery-ing me!", que na verdade, nessa única frase, significa que Max está fazendo com ela o mesmo que Kathy Bates fez no filme baseado no livro de Stephen King. Ou em outra situação, quando Alex não quer sair da televisão para seus amigos assistirem ao jogo, fazendo um trocadilho com os filmes de Liam Neeson, Taken e Taken 2. Excelentes piadas infames que se perdem na tradução, assim como dezenas de outras.

Então, para aqueles que conseguem compreender a língua, sem dúvida o seriado atingirá outro nível e será muito mais divertido do que é, e muito mais ainda se for uma pessoa antenada no entretenimento.

Mesmo os episódios não terem histórias consistentes, o humor é sagaz e certeiro, pois como dito, é uma comédia de situações absurdas, e as piadas são construídas em cima delas, abusando no humor físico dos personagens, transformando-os em caricaturas de si mesmos. Todos sabemos que fazer humor é difícil, e principalmente no caso de Happy Endings, cujo humor é muito mais físico que verbal, seria fácil o desastre ocorrer a qualquer momento. Se no humor verbal um erro acontece no processo, ele pode ser rapidamente consertado se o ator tiver destreza e técnica suficiente pra isso (como acontece bastante em stand up). Mas no humor físico, se um erro ocorre e tenta ser consertado, o pastelão nasce e a piada morre.

Como já dizia a personagem Valerie Cherish no seriado The Comeback, fazer humor físico é difícil e só deve ser feito pelos experientes, por isso que ela fazia (ha ha!). E a experiência aqui é notada por todos os lados, e até mesmo em situações clichés como tombos, cabeçadas, tropeços e pancadas, nada soa pastelão dentro do contexto, conseguindo ser genuínas e até extensões da personalidade peculiar de cada um deles.

Nada disso seria possível se o texto e as atuações não fossem pontuais como são. Claro que a edição ajuda, mas ela não é milagrosa se a interação entre os atores e o roteiro não funcionasse. É óbvio que alguns personagens são mais interessantes que os outros, uns muito mais engraçados e caricatos que outros, mas isso tudo é proposital para que os mais fortes engrandeçam os mais fracos, os mais fracos amenizem os mais fortes, e cada um deles tenham momentos para se desenvolverem sozinhos, dando o equilibrio que essencialmente traz essa sinergia entre todos. E mesmo quando é óbvia a formação dos pares, como é entre Alex e Dave, Jane e Brad e entre Penny e Max, há momentos de sobra para todos se misturarem, até mesmo aqueles que pouco fazem isso, como no episódio em que Alex e Brad se esforçam para desenvolver um assunto sozinhos.

Há diversos fatores que fazem essa química entre eles ser tão forte, a começar pela fraternidade incondicional entre eles e a moral sempre existente de que, não importa as diferenças existentes, todos se respeitam em suas virtudes e defeitos, o que abre espaço, inclusive, para questionamentos sociais. Como o fato de Max ser gay, mas completamente rude e fora de qualquer estereótipo, sendo inclusive o mais machão e machista de toda a turma, e Brad, mesmo heterossexual e casado com Jane, ser o mais afeminado deles, ou Dave ser o mais romântico e sentimental, além de Jane revelar posteriormente sua bissexualidade. Isso demonstra que, apesar de serem caricatos, eles não são estereotipados, como acontece no episódio em que Alex tenta provar (e prova) que não é uma loira burra, ou Penny, que mesmo sendo conhecida como a "cabeçuda" e mais aérea da turma, é a mais bem sucedida profissionalmente.

Portanto, Happy Endings pode não ter história ou fazer sentido algum, mas tem excelentes momentos hilários e memoráveis, de fazer qualquer um apertar o botão do controle sem parar para ver uma mesma cena outra e outra vez. E acreditem, haverão muitos momentos para se fazer isso em quase todos os episódios. Acima de tudo, é um humor simples, despretencioso, feito para dar risada sem compromisso, onde todos episódios acabam bem, como o seu título promete.

De fato é um excelente seriado para relaxar antes de dormir, mas não por ser banal, mas porque seu humor faz bem e nos prepara para a melhor parte do fim de um dia.

CONCLUSÃO...
Com um humor satírico e surrealista parecido com o de Scrubs, e com uma sinergia do elenco similar ao de Friends, esse seriado consegue não precisar de história para ser cativante e construir um humor único, cheio de referências e situações memoráveis, com piadas muito mais inteligentes do que aparenta na superficialidade. Há humor para todos os gostos, desde aqueles que gostam de algo mais previsível e comum, até aqueles que gostam de algo mais indireto e implícito. Não importa, o que importa é que, para aqueles que não conhecem, já passou da hora de conhecer, apreciar, e chorar por ser apenas três temporadas e torcer para que um dia eles voltem, já que Caspe informou que, embora ela tenha sido cancelada, a idéia de dar continuidade prevalece.
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