Translate

sábado, 7 de janeiro de 2017

O INSTINTO SELVAGEM DE VERHOEVEN...

★★★★★★★★★☆
Título: Ela (Elle)
Ano: 2016
Gênero: Suspense, Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Paul Verhoeven
Elenco: Isabelle Hupert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling, Christian Berkel
País: França, Alemanha, Bélgica
Duração: 130 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma mulher independente e bem sucedida se envolve em um jogo perigoso ao tenta descobrir a identidade do homem que a violentou em sua própria casa.

O QUE TENHO A DIZER...
Há um momento em que a protagonista Michelle LeBlanc (Isabelle Huppert) chama a situação em que ela passa como "doentia e perversa". É o resumo daquilo que o filme é de fato, que começa com uma cena sexual que não é vista, onde ouve-se apenas barulhos e gemidos. Quando tudo acaba, o diretor nos revela um estuprador indo embora, deixando Michelle para trás, em choque, sangrando ao chão. É dessa forma um tanto impressionante que Paul Verhoeven abre seu novo longa, nos dando a exata sensação da linha tênue que separa o prazer da violência porque, entre gemidos e sussurros, o espectador a princípio se excita, mas quando a imagem aparece de fato, ele se choca e se constrange, pois o que acontecia era um puro ato de violência, e não algo consentido. Uma abertura simples e brilhante, se analisarmos pelo ponto de vista psicológico.

Fazia tempo que Verhoeven não entregava algo tão interessante e ao mesmo tempo perturbador ao público. Também fazia tempo, talvez desde os anos 90, que ele não fazia algo tão bom, mesmo que A Espiã (Zwartboek, 2006) seja respeitável. Em uma carreira com altos e baixos entre a ficção científica e uma leve obsessão por thrillers sexuais, o diretor holandês já foi um dos mais cobiçados de Hollywood no final dos anos 80 e começo dos anos 90 em filmes como Robocop (1987), O Vingador do Futuro (Total Recall, 1990) e o seu mais memorável trabalho, o amado/odiado Instinto Selvagem (Basic Instinct, 1990).

Elle pode não ter a cruzada de pernas fatal de Sharon Stone, mas sem dúvida rouba seu posto de filme mais controverso da sua filmografia, pois é um misto de diversos assuntos feministas atuais que incluem a violência doméstica, o empoderamento feminino, sua independência e, inclusive, sua liberdade sexual, do seu corpo e do seu sexo. Numa época em que os valores femininos estão sendo postos a teste, principalmente na cultura popular após o lançamento de obras eróticas infames como a série 50 Tons de Cinza, que criaram e promoveram às mulheres púdicas e aos homens machistas uma ilusão submissa e fetichista deturpada ao ponto de fazer qualquer mulher que diga "eu adoro esse livro" simplesmente favorecer de maneira insidiosa o seu próprio abuso e até mesmo sua própria violência.

Assim como a brilhante abertura, todo o resto do filme perdura nessa corda bamba entre o prazer e a violência, até que ponto a fantasia e o fetiche são aceitáveis, e até qual limite devemos ir para satisfazer aquilo que originalmente entitula seu filme mais conhecido: o instinto básico.

Verhoeven não evita nos chocar com o explícito, e é com isso que ele nos faz pensar sobre essas questões de maneira bastante crua. E o mais interessante disso tudo é que, com essas ferramentas, ele consegue criar um dos suspenses eróticos mais refinados a serem lançados em circuito comercial das últimas décadas. Talvez pelo cenário francês, onde tudo pareça ser bastante civilizado e refinado em meio à língua mais romântica do mundo, talvez por lidar com personagens bem sucedidos e que nos remetem aos luxos e desfrutes da alta sociedade. Se o cenário fosse o oposto, essa sensação poderia não ter o mesmo requinte, mas a agonia, o medo, o misto da paranóia com a obsessão e a explícita violência não precisam de gênero, cor e muito menos classe social. Independente do cenário, esse é um dos pontos fortes do roteiro, baseado no livro Oh... (2012), do francês Phillipe Djian. Até porque a história não lida apenas com isso ou fale somente sobre isso, pelo contrário, Michelle está em uma espiral desenfreada de infortúnios familiares, profissionais, sociais e pessoais. E o melhor de tudo, não há um momento sequer de redenção da personagem.

Michelle é uma personagem bastante complexa e muito bem desenvolvida no contexto do filme, que teve (e ainda tem) que lidar com um massivo assédio moral por conta da deturpada publicação de uma foto em jornais e emissoras de TV quando era adolescente, que ela classifica posteriormente como uma imagem erótica e louca em um momento errado. Em outras palavras, a redução do caráter de uma pessoa pelo seu gênero.

Lidar com o ódio e a rejeição durante décadas a deixaram ser como é: uma mulher ambiciosa, exigente, que reprime sua sensibilidade e emoções, que consegue ignorar abusos e passar por cima de desaforos com tranquilidade, mas ainda sim um tanto vingativa e perversa. No geral, seu comportamento feminista, independente e até libertário é bastante parecido com o da protagonista do chileno Gloria (2013), mas há um lado mais sombrio em Michelle, um semblante de que a qualquer momento possa cometer uma grande insanidade, tal qual seu pai no passado. É por isso que, sem titubear, ela passa por cima de qualquer pessoa, sem remorsos ou arrependimentos, e Isabelle Hupert consegue vagar por toda essa complexidade com uma maestria ímpar, nos deixando confusos quando sua personagem está feliz ou simplesmente sendo ardilosa, quando está triste ou simplesmente sendo irônica ou sarcástica.

O momento em que vive não poderia ser mais moderno, já que ela, em sua meia idade, é a Diretora Executiva de uma importante produtora de jogos eletrônicos, um setor conhecidamente dominado por homens jovens. Separada de seu marido porque este a violentou fisicamente, agora mora sozinha em uma mansão. Sua vida se resume a trabalhar; tentar resolver seus problemas com seu filho; lidar com a pressão social de um pai criminoso na cadeia; ter um caso com um homem no qual já perdeu o interesse; e a criticar o noivado de sua mãe com um garoto de programa, enquanto ela mesma flerta com o marido jovem de sua vizinha católica e submissa.

Assim como sua própria mãe a define, Michelle é uma vadia. Ela não tem medo de ser uma. Também não tem medo de ser desagradável ou mortalmente sincera. E por mais que em alguns momentos possamos pedir pelo amor de deus para que ela, ao menos, peça desculpas ao menos uma vez, isso nunca acontece. Ao contrário, ela comete algo mais provocativo ainda. E esse comportamento da personagem é exatamente para deixar claro que ela é a única dona de si e de suas próprias verdades, e violar isso é um crime, no qual ela mesma decidirá o que fazer, até mesmo sobre seu próprio estupro. Por isso que a razão de ela não ter um momento sequer de redenção seja tão prazeroso, pois isso é o que a fortalece como personagem.

Sua pessoal caça ao seu estuprador a leva para uma jornada desafiadora e na já dita espiral de infortúnios. O misto de paranóia e obsessão a deixam presa numa memória repetitiva, e como numa Síndrome de Stocolmo, por um lado ela quer fazer sua justiça, mas por outro fica obcecada por aquela figura anônima. Trocar as fechaduras de casa ou comprar sprays de pimenta são apenas artifícios para sua autonegação, porque no fundo ela está dividida entre o temor de um novo ataque e a excitante espera dele. O anonimato, o fator inesperado, são elementos que começam a crescer dentro de si como uma fantasia. Mas é quando ela é atacada pela segunda vez que percebe que a fantasia pode ser prazerosa, mas a realidade não tem o mesmo sabor. É como fantasiar ser submetida a Christian Gray por ele ser rico e bonito nos livros, até a realidade transformar qualquer pessoa como ele em um monstro perverso e doentio.

A violência que Michelle sofre tem vários sifnificados. Por um momento, pela estranha fixação sobre a situação incomum sofrida numa incapacidade de se subestimar por conta disso, como também numa forma de querer se punir por suas pequenas perversidades em um segundo momento, ou até mesmo tentar aflorar sentimentos e sensações que ela não consegue mais. É no segundo momento que, embora possa não parecer, ela volta a ter domínio da situação. De violentada submetida, ela passa a ser a dominadora subversiva. Na verdade, poderá haver diferentes interpretações para quem assistir. O interessante é que essas interpretações sejam além do que a própria imagem ou as situações pareçam definir, porque o roteiro oferece muito mais do que isso, e Verhoeven consegue transmitir o mesmo, deixando argumentos longe de qualquer superficialidade.

Quando Michelle questiona ao violentador o motivo de tudo, a resposta dele é simples, tanto para ela quanto para ele, pois ele mesmo fará a mesma pergunta posteriormente. E mesmo que ele não tenha resposta, e que ambos pudessem ter outras alternativas, o espectador saberá que o fim foi necessário, pois define a natureza de ambos.

Verhoeven acerta em todos os pontos e oferece um produto final bem feito em todos os aspectos, como se tivesse cozinhado e montado o mais fino prato por horas e sem qualquer pressa. Apesar de lidar com temas fortes e atuais, há uma certa sobriedade em tudo, já que algumas subtramas acabam levando a um humor contido para dar tempo do espectador respirar e digerir, o que é ótimo quando não feito de maneira banal ou exagerada. De exagerado mesmo é apenas a constante provocação do diretor, algo que sempre fez parte de seus trabalhos, mas nunca tão efetivo como é neste filme.

CONCLUSÃO...
Elle entra na lista dos melhores de 2016, e o melhor do gênero a surgir nas últimas décadas. É Verhoeven dando a volta por cima e fazendo seu melhor trabalho depois de sequentes fiascos. Ousado e chocante, nem por isso deixa de ter sua sutileza em um trabalho que reune as principais características do diretor.

Nenhum comentário:

Add to Flipboard Magazine.