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domingo, 16 de junho de 2019

A OUTRA MULHER MARAVILHA...

★★★★★★★
Título: Capitã Marvel (Captain Marvel)
Ano: 2019
Gênero: Ação, Super-Herói
Classificação: 12 anos
Direção: Anna Boden, Ryan Fleck
Elenco: Brie Larson, Samuel L. Jackson, Jude Law
País: Estados Unidos, Austrália
Duração: 123 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Carol Denvers sofreu um acidente no espaço e foi recrutada por uma civilização extraterrestre, agora ela volta para a Terra para descobrir suas origens e que sua terra natal está correndo um iminente perigo.

O QUE TENHO A DIZER...
Capitã Marvel surge com um certo atraso não apenas no Universo Cinematográfico da Marvel, mas no cinema em geral, sempre relutante em adaptar histórias em quadrinhos com protagonistas femininas desde quando o gênero emergiu, no início de 2000.

Não que filmes com heroínas ou filmes de ação com protagonistas mulheres não existissem, mas na História do Cinema, a quantidade de produções com esse enfoque sempre foi infinitamente inferior, e mais oprimido ainda nas adaptações de quadrinhos.

Hollywood sempre deu muito mais ênfase no chamado "cinema testosterona", no intuito de manter incólume a idéia de que mulheres são frágeis e incapazes de protagonizar filmes bate-e-arrebenta como os homens, e da mesma forma são caracterizadas a maioria das coadjuvantes em cena nesses filmes: frágeis, vítimas que precisam de um braço forte para a abraçá-las e defendê-las. Pode? Pode. Mas esse excesso ditou uma regra que deve ser quebrada.

De Ripley a Sarah Connor, de Thelma a Louise, exemplos existem, mas são poucos, e se tornaram icônicos justamente por serem raros. Mas nas últimas décadas tivemos produções muito interessantes que provaram que o cinema "estrogênio" é tão forte quanto, como a saga de vingança de Beatrix Kiddo em Kill Bill (2003), de Quentin Tarantino, com um elenco predominantemente feminino. Podemos citar até a pancadaria gratuita e bem produzida que Steven Soderbergh fez com Haywire (2011), transformando a ex-lutadora de MMA, Gina Carano, numa referência direta a produções antes estreladas por Chuck Norris por um lado, e Cynthia Rothrock por outro, nos anos 80 e 90.

Mas no Universo dos quadrinhos tudo começou na contra-mão, e as infames adaptações de Mulher-Gato (2004) e Elektra (2005) soaram muito mais como um descaso quase proposital do que qualquer outra coisa. Como um autoboicote dos próprios estúdios, para dar a deliberada impressão ao público que heroínas baseada em quadrinhos não oferecem boas histórias, e por isso não valia a pena investir nelas. E a essas atrizes nunca mais foram lhe dadas oportunidades de continuarem no gênero, ao contrário dos homens.

De lá pra cá quase 15 anos se passaram e, no meio desse tempo, mulheres da indústria começaram a questionar a ausência de protagonismo nas tais adaptações, fora outras revindicações legítimas de igualdade numa indústria que historicamente sempre foi desigual em relação a gêneros e raças.

Foi então que a indústria resolveu abraçar esta pauta feminista para seu benefício comercial, e Mulher Maravilha (2017) se tornou o carro chefe dessa nova e atrasada safra, onde a heroína roubou a cena em Batman V Superman (2016). O mesmo havia feito Margot Robbie em Esquadrão Suicida (2016), que embora cheio de defeitos e equívocos, além de um elenco predominantemente masculino, fez de Harley Quinn (Margot Robbie) a verdadeira protagonista, mesmo que o sexismo construído sobre a personagem no filme tenha sido mais presente que sua caricatura. Porém, Robbie consegue driblar esse senso e inverter a situação com classe, e é ela quem protagonizará seu próprio filme agora, ao lado de outras personagens tão fortes quanto do Universo DC.

Em sequência veio Charlize Theron na adaptação de Atômica (Atomic Blonde, 2017), baseado na novela gráfica The Coldest City, apanhando, levantando e batendo, deixando outra vez claro que não existe sexo frágil. E por fim, mas não último, a rendição da Marvel a Capitã Marvel, que finalmente não apenas viu a luz do dia, mas também é a personagem chave para a conclusão de uma era e início de outra nesse Universo criado pelo selo.

A mídia taxou o filme como uma grande representação feminista nos cinemas tal qual Mulher Maravilha. Essa discussão, feita de maneira mais incisiva do que sobre a outra heroína, ocorreu talvez porque a popularidade que a Marvel tem nos cinemas é maior.

Não deixa de ser. Mas feito de maneira bastante discreta e discutida nas entrelinhas do roteiro, que evita explorar o passado da personagem de maneira mais consistente justamente para não erguer bandeiras explícitas e despertar a ira dos conservadores que veem no feminismo uma ameaça ao histórico patriarcado.

A história da personagem é nada além de um retrato muito comum das mulheres na sociedade pelo mundo, que sofrem opressões sociais por todos os lados, até dentro de suas próprias famílias.

Carol Denvers, quando jovem, sonhava em seguir carreira acadêmica, sendo impedida por seu pai, que dava preferência as decisões de seu filho homem. Carol engressou na Universidade sem conhecimento do seu pai e posteriormente se alistou na Força Aérea Americana escondida, só revelando o segredo quando abandonou sua casa para viver na academia aérea, o que gerou desconforto e repúdio de seu pai. Esse desprezo que sofre é o grande motivador de Denvers em querer ser a melhor, acreditando que algum dia seu pai se orgulharia disso e essa barreira machista que existia entre a relação dos dois fosse quebrada algum dia. A necessidade de aprovação dos filhos por seus pais, uma pauta constante nas histórias fantásticas da Marvel.

Essa história pregressa é usada no filme apenas em rápidos flashbacks para justificar sua personalidade de maneira simbólica e resumida, também sobre seu comportamento impositivo e decisões pessoais que emergem ao redor da própria trama. Mas como dito, bastante superficial para não inflamar o ego machista da platéia.

Embora expressa, essa introdução é essencial para compreendermos todo o processo da construção de sua personalidade ao longo dos anos, mas o roteiro desconstruído, ora mostrando o presente, ora o passado, deixa a desejar porque não explora essa fase tão importante da vida da personagem, ficando um tanto vago em esclarecer ao espectador porque Denvers tem posições bastante firmes sobre suas decisões, ou até mesmo seu humor sarcástico ser tão contundente, num oposto ao humor jocoso de Tony Stark, por exemplo.

Para um filme que pretende mostrar a origem da heroína, o roteiro o faz apenas para Denvers como heroína, mas não para Denvers como pessoa e mulher, deixando de construir uma narrativa linear sobre seu passado, deixando de dar uma exclusiva atenção a todas as barreiras e dificuldades que teve de enfrentar na adolescência, que teria sido importante.

Sempre criticada durante seu treinamento no espaço pelo excesso emocional e sentimental por ser humana, ela é a todo momento instruída e motivada a suprimí-los para ser mais poderosa e capaz. E essa crítica é posta a prova e pauta do início ao fim do filme. Isso nada mais é que um paralelo que o roteiro constrói sobre a cultura popular da fragilidade feminina, e que, pelo equivocado senso machista, o lado mais emocional e sentimental das mulheres tende a colocar em risco o sucesso de uma missão.

Esse é o grande conflito interno que Denvers se depara ao longo da trama, que se resolve de maneira muito simples e simbólica e, de fato, desconstrói esse mito popular secular alimentado para inferiorizar a figura feminina. Ser emotivo e sentimental não é um defeito, mas grandes qualidades inerentes do ser humano, oprimidos pelos fracos que não sabem lidar com essas complexidades e usá-las para se tornarem mais fortes.

E é isso que Capitã Marvel significa, se tornando uma resposta contundente de que o sendo comum da fragilidade é apenas uma construção social.

No mais, o filme segue como se deve dentro da proposta da ação. Um tanto lento em sua primeira metade para quem espera aquele ritmo alucinante de outros filmes da Marvel, mas que depois recompensa o público com o festival de efeitos especiais que todo mundo gosta. Recheado de diálogos inteligentes e de um humor refinado tal qual o encontrado em Pantera Negra, o resultado é satisfatório. Para um filme que tem a intenção de contar uma origem, poderia ter sido mais consistente nos quesitos abordados acima.

Enquanto Mulher Maravilha apresenta a força feminina sem sucumbir ao clichê, Capitã Marvel pega o clichê e tira dele o melhor proveito.
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