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segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

A IGREJA VERSUS O JORNALISMO INVESTIGATIVO...

★★★★★★★★★☆
Título: Spotlight - Segredos Revelados (Spotlight)
Ano: 2015
Gênero: Drama, Investigação, Biografia
Classificação: 14 anos
Direção: Tom McCarthy
Elenco: Michael Keaton, Mark Ruffalo, Rachel McAdams, Liev Schreiber, John Slattery, Stanley Tucci
País: Estados Unidos
Duração: 128 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um grupo de jornalistas investigativos do jornal Boston Globe é interceptado por informações que levam a um grandioso esquema de abuso sexual dentro da Igreja Católica.

O QUE TENHO A DIZER...
Em 2002 o jornal The Boston Globe publicou uma matéria bombástica sobre os casos de abuso sexual infantil ocorridos na arquidiocese de Boston, no Estados Unidos, repercutindo mundialmente, tirando até mesmo a Irlanda e outros países do silêncio.

A história começou quando houve uma pequena publicação em uma coluna do jornal sobre alguns casos envolvendo cinco padres católicos locais em 2001. Impulsionado pelo novo editor chefe, Martin Borton, o assunto acabou indo parar nas mãos de uma equipe dentro do jornal conhecida como Spotlight, um grupo específico responsável por matérias investigativas de grande foco e de alta confidencialidade, onde cada matéria pode demorar de um a dois anos para ser publicada, tamanha a minusciosa busca de informações e confirmação de fontes. Isso acabou trazendo para a mesa editorial uma série de outros casos correlacionados envolvendo vítimas das quais muitas haviam cometido suicídio, e as que estavam vivas apresentavam severos traumas psicológicos.

As investigações levaram a descobrir que o que acontecia não eram casos isolados, mas um padrão recorrente e de conhecimento do próprio Vaticano, comprovados pelo psiquiatra e ex-monge beneditino, Richard Sipe, que trabalhou de 1965 a 1970 no Instituto Psiquiátrico de Seaton, lugar mantido pela própria Igreja Católica. Foi lá que ele se deparou com seus primeiros casos de abuso e, a partir dalí e por conta própria, montou uma equipe que estudou isso por trinta anos, naquilo que ele considerou como um "fenômeno psiquiátrico" por conta dos padrões de ocorrência que partiam desde o comportamento sexual dos assediadores dentro da Congregação Católica, até nos padrões de escolha das vítimas, que geralmente são crianças e adolescentes com disturbios psicológicos já estabelecidos, ou com problemas familiares, como pais divorciados ou orfandade. Os estudos de Sipe chegaram a uma estatística de que 6 a 7% da comunidade mundial de padres e bispos da Igreja Católica são pedófilos, o que leva a um número exorbitante que foge da idéia comum de que os casos são apenas algumas "maçãs podres", como é dito varias vezes no filme. Sipe também conseguiu comprovar que os casos de pedofilia não ocorrem necessariamente entre padres homossexuais, e que o assédio envolvendo crianças do sexo feminino é muito maior do que se acreditava.

As investigações da Spotlight levaram a descobertas assustadoras com, no mínimo, trinta anos de recorrência envolvendo mais de 70 representantes locais (o que corrobora com as estatísticas traçadas por Sipe), além de centenas de vítimas. A maioria dos casos judiciais nunca foram julgados publicamente, ou simplesmente foram encerrados por conta de acordos de confidencialidade entre as vítimas e a igreja, o que ajudou a abafar possíveis escândalos e manter a situação controlada.

Descobriu-se mais, que também havia alí um forte esquema de corrupção envolvendo a instituição católica, a mídia e o setor judiciário, tanto por parte da promotoria quanto da defesa. O próprio Boston Globe chegou a ignorar o assunto na década de 90, quando recebeu materiais e denúnicas a respeito, fato que o filme também não esconde, o que até surpreende, já que poderiam simplesmente ter omitido essa situação para favorecer o heroísmo das intenções.

E é sobre tudo isso que este excelente filme biográfico e investigativo, dirigido por Tom McArthy e escrito por ele em parceria com Josh Singer, irá tratar. Mas o mais interessante é que houve um grande cuidado na abordagem do tema e uma sólida pesquisa para sua produção, e seu desenvolvimento é feito pelo ponto de vista da equipe editorial do jornal, onde presenciamos de forma bastante realista todo o processo de prospecção, além das dificuldades e obstáculos encontrados por cada um deles até a publicação que, inclusive, precisou ser temporariamente engavetada e sem prazo de retomada por conta dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. 

É um daqueles poucos filmes biográficos que realmente se embasam em fatos reais para construir sua história, tanto que todos os personagens interpretados com integridade pelo elenco são reais, incluindo suas identidades. Tudo é muito ponderado e bem feito, desde a direção que evita momentos clichés de abuso dramático até o roteiro que constói gradativamente um clima de tensão e interesse nos bastidores, que mostra de forma sucinta a importância do jornalismo investigativo como um serviço de informação social, principalmente em casos como esse, de um esquema criminoso gigantesco e abafado de causar repulsa, revolta e indignação. E acredite, quanto mais o filme caminha, mas chocados ficamos com seus acontecimentos e a conspiração existente em torno do assunto.

Não é à toa que tem sido considerado o melhor filme de 2015 e um dos melhores do gênero, pois consegue ser interessante e até com um certo nível de suspense sem necessidade alguma de ser apelativo. Nem há momentos de conflitos entre corpo editorial e chefes, como é de praxe nesses temas, onde criam-se dificuldades aleatórias para no fim os jornalistas empenhados provarem que estavam corretos. Só há um ou outro momento em que a efetividade e publicação da matéria é questionada, mas tudo é contornado rapidamente e as dificuldades encontradas são mais por fatores externos do que internos.

Que os casos de abuso sexual envolvendo a Igreja Católica tenha recorrência histórica e não seja mais segredo para ninguém, é notório. Hollywood mesmo já abordou esse tema, como no sutil e ponderadíssimo Dúvida (Doubt, 2008). Mas aqui a situação é levada para outro patamar, aquele de que ainda ignoramos os fatos e nos mantemos cegos frente àqueles que direcionam a fé, nos deixando sem a capacidade de enxergar os sinais com clareza de que nada é realmente aquilo que parece ser, numa perversidade que foge completamente da proporção que imaginamos. Transformando a Igreja em um reduto de crimes encobertos por eles mesmos, como uma irmandante, além de deterem poderes que se sobrepõem a qualquer outra instituição.

Claro que o filme acaba sem um grande conflito direto entre a Igreja e o jornal, deixando aquela vontade de querer saber mais, ou quais as consequências catastróficas que a publicação trouxe aos fiéis e ao Vaticano, mas ao mesmo tempo isso teria fugido do foco de contar a história pelo ponto de vista daqueles que se empenharam em peitar uma das instituições religiosas mais influentes do mundo. A única coisa que se sabe é que houve a resignação do arcebispo Bernard Francis Law, com alguns pedidos de desculpas públicas aqui e alí para amenizar a situação, mas que em 2004 foi readmitido pelo Papa João Paulo II como arcebispo da Basílica de Santa Maria Maggiore, em Roma. Ou seja, tudo voltou a ser como era. E se talvez catorze anos depois o mundo tenha se esquecido desse fato (o que não é de se espantar), esse filme é uma grande oportunidade de nos relembrar de tudo novamente e não deixar dúvidas de que para ser representante da fé não é necessário batina, mas integridade.

Apesar do favoritismo público em meio a críticas boas e medianas que acabam sobrepondo e direcionando a opinião das pessoas mais influenciáveis, e embora seja um filme com todo o perfil possível para a temporada de premiações, a verdade é que a inteção da história e dos acontecimentos já é relevante por sí só. Sua execução funciona e é esclarecedora. Algumas coisas não dá para serem explicadas, como a indicação de Rachel McAdams ao Oscar de Coadjuvante, ou da preferência de Mark Ruffalo quando Michael Keaton fez um trabalho igualmente memorável, mas tudo é esquecível em uma história que, como li em um comentário, se transforma em um dos piores filmes de terror dos últimos tempos.

CONCLUSÃO...
Um relevante e ponderado filme sobre os bastidores e a importância do jornalismo investigativo na sociedade que carece de instituições íntegras, ao mesmo tempo que nos relembra de um dos maiores escândalos sexuais e religiosos da história, além de evidenciar em como a igreja católica não apenas é omissa como condescendente dos crimes envolvendo seus representantes.

sábado, 23 de janeiro de 2016

POLÍTICA, DONALD TRUMP E CINEMA SÃO ASSIM...

★★★★☆
Título: Especialista Em Crise (Our Brand Is Crisis)
Ano: 2015
Gênero: Comédia, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: David Gordon Green
Elenco: Sandra Bullock, Joaquim de Almeida, Billy Bob Thorton, Ann Dowd, Zoe Kazan
País: Estados Unidos
Duração: 107 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma estrategista eleitoral norteamericana é contratada para auxiliar na reeleição de um controverso presidente boliviano, ao mesmo tempo que compete com um rival de longa data, que trabalha para o candidato da oposição.

O QUE TENHO A DIZER...
Este filme é baseado no documentário homônimo de Rachel Boyton, lançado em 2005. Enquanto o documentário narrava a campanha presidencial boliviana de 2002, em que concorriam à presidência Gonzalo Lozada e Evo Morales, a história aqui será bem mais fictícia, levando os senãos da história para outros rumos e substituindo alguns personagens por outros.

Os presidentes no roteiro de Peter Straughan não são reais, embora sejam referências a eles, bem como a personagem vivida por Sandra Bullock seja uma referência a Robert "Bob" Shrum, o famoso consultor que prestou serviço a importantes candidatos no Estados Unidos, incluindo Al Gore e John Kerry. Ao longo de sua carreira, Shrum foi estrategista de oito candidatos, e sua fama se deve por nenhum deles ter chegado à presidência, embora sua participação tenha sido bastante relevante no cenário político.

O filme é dirigido por David Gordon Green, mais conhecido pelas comédias escrachadas, linguarudas e politicamente incorretas, como Segurando as Pontas (Pineappel Express, 2008) e o subestimado Sua Alteza? (Your Highness, 2011), que foi muito mal interpretado pela crítica que o destruiu, talvez porque deram muito mais atenção ao teor chulo e pornográfico do que ao satírico, que muito se assemelha ao que Mel Brooks fez no passado, mas obviamente de forma mais branda porque os tempos eram outros.

Uma escolha um pouco inusitada, já que Green é um diretor liberal demais para, talvez, conseguir carregar nas costas um filme político e, na medida do possível, bastante correto. Portanto é notável como ele está comedido, um tanto preso em exigências. 

O filme foi escolhido à dedo por Bullock (que também assina a produção) para tentar manter sua safra de boas escolhas que culminaram com o Oscar de Melhor Atriz por Um Sonho Possível (The Blind Side, 2009) e uma posterior indicação por Gravidade (Gravity, 2013). Aliás, George Clooney, parceiro neste último, estava cotado para estrelar este filme também, mas acabou ficando apenas na produção.

Mas o resultado foi completamente o oposto daquele que se esperava. A seletiva escolha de Bullock não foi acertiva dessa vez. O filme foi massacrado pela crítica e público. Um verdadeiro fiasco. Isso não é uma novidade na carreira de Bullock, que por duas décadas foi estigmatizada como um atriz de comédias, chegando a ver sua carreira à beira do abismo. Depois de dar a volta por cima com alguns dramas e provar seu talento versátil à duras penas, voltou agora a dar preferência para estilos mistos, como acontece aqui, já que está comprovado que ela consegue ser engraçada e dramática ao mesmo tempo, e vice-versa. E o público comum adora.

Mas por que será que tudo foi tão mal das pernas assim? Ele é tão ruim ou até pior que o horroroso Maluca Paixão (All About Steve, 2009) ou o absurdo Velocidade Máxima 2 (Speed 2, 1997), ambos estrelados por ela?

Para ser sincero, tudo já não começa bem ao apresentar Jane "Calamidade" Bodine (Sandra Bullock) como uma estrategista política em reclusão há seis anos porque perdeu a última batalha presidencial para seu rival, Pat Candy (Billy Bob Thorton). E seu apelido "calamidade" já explica muita coisa. Ela parou de fumar, parou de beber e vive calmamente em uma cabana fazendo cinzeiros de argila depois de uma temporada em um hospital psiquiátrico. Clássicos e batidos conflitos que se transformam em motivos para fazer um personagem superar um trauma do passado. Então já conseguimos prever que a trajetória da personagem será cheia de obstáculos, mas ela irá se bem suceder no fim. Alguém já viu algo parecido? Sim?

Imaginei.

O candidato à presidência, Castillo (Joaquim de Almeida), é mostrado de forma patética em um programa de televisão, não sabendo dar respostas diretas ou nem mesmo tendo respostas para perguntas mais complexas, o que justifica logo de cara seus 8% de preferência nas pesquisas. Castillo é um político bronco, elitista e antipático que tenta se reeleger (como ele foi eleito no passado sendo assim, não se sabe). Ele tem dificuldade de se aproximar do povo em uma época complicada de crise econômica e segregação social na Bolívia, e isso também é argumento óbvio para que a missão da protagonista seja ainda mais complicada.

Quando Jane chega no país, entre tentativas de humor físico com um tombo ao sair do avião, comentários um pouco preconceituosos de seu assistente sobre o povo boliviano, trombadas, um desnecessário cilindro de oxigênio, náuseas e uma vomitada na lata de lixo, a situação do filme piora porque tudo parece apelativo, além de Sandra Bullock repetir pela enésima vez aquele estereótipo de mulher comum e desajustada, vítima de si mesma e de seus próprios contrangimentos. Um tipo que virou sua marca registrada em Miss Simpatia (Miss Congeniality, 2000), mas que depois de tantas vezes repetido, incluindo seu penúltimo filme, As Bem Armadas (The Heat, 2013), a situação já ficou esgotada e cansativa, realmente um retrocesso.

Por alguma razão, esse filme pra mim parecia ser para Sandra Bullock o que Erin Brockovich (2000) foi para Julia Roberts, talvez pela determinação da protagonista e pelo parecido estilo de filmagem. Mas Gordon Green deveria ter seguido os mesmos passos de Steven Soderbergh para fazer desse filme algo melhor apresentável e menos bagunçado. Deveria ter sido mais sutil, e feito adaptações que amenizassem esse deboche que ele carrega consigo, mas que não se encaixam aqui porque tudo é muito comercial e didático, produzido dentro de uma formuleta para chamar atenção com excessos e previsibilidade, implorando para o público rir ou se emocionar, mas sem conseguir nenhum dos dois com efetividade, nem mesmo quando as cenas são invadidas por uma trilha sonora que nada acrescenta até mesmo nos poucos momentos que elas funcionariam sozinhas, apenas no diálogo.

Tirar sarro da política é interessante, mas está muito longe de ser um Segredos do Poder (Primary Collors, 1998), de Mike Nichols, embora tivesse tudo para ser tão interessante quanto porque, apesar dos defeitos, seu tema é atualíssimo. Fica estranho ver tudo de forma tão retorcida, sem eira e nem beira, como se tudo fosse uma grande piada em um grande circo. Desnecessário porque a política em sí já é uma piada pronta, não há necessidade de deixá-la over the top, como dizem os norteamericanos. Sem dúvida faltou uma finesse maior, diálogos mais polidos e menos caricatura. A ironia já seria suficiente para o tom cômico, como acontece, por exemplo, com o personagem de Billy Bob Thorton, que sempre se apresenta e inicia um diálogo amigável e decente, mas sempre sai de cena com uma frase elegantemente desconfortável, deixando óbvio que a rivalidade que ele cultiva é carnal e sexista. Sim, ele consegue ser brilhantemente nojento e provocativo como o filme não consegue ser.

Em um primeiro momento o roteiro tenta levar todo esse assunto para um tom pastiche e satírico, aquele que Gordon Green gosta, mas que de uma hora pra outra deixa de ser assim como se o diretor tivesse cansado de brincar com os carrinhos.

Também era desnecessário levar o tema para a Bolívia para tratar de um assunto em que o próprio Estados Unidos vive no momento. Lugar em que mesmo que o candidato seja antipático e as pessoas tenham medo dele, é aquele que consegue ser o mais popular. O que Jane faz com Castillo no filme é o que Donald Trump tem feito em sua campanha, se aproveitando do medo e da insegurança generalizada para construir seu sucesso. Trump tem se beneficiado do mesmo com as contantes ameaças terroristas, do inchaço imigratório e da revolta coletiva para divulgar sua estratégia política preconceituosa, xenofóbica, violenta e conservadora, e assim conquistar aquela maioria ignorante que esperava por alguém com colhões para representá-los. A crise, como bem diz Jane Bodine entre citações de Shan Tzu, Maquiavel e Warren Baty, tem sido sua marca, aquilo que ele está vendendo muito bem como o bem sucedido marketeiro que é. Tomara que seja apenas marketing, apenas uma imagem enganosa para garantir sua eleição, e que na prática as coisas sejam diferentes, tal qual acontece com Pedro Castillo na história.

Talvez esse discurso que a protagonista faz seja um excelente resumo do cenário político atual, e como a política nada mais é do que uma propaganda idealizada, enganosa e direcionada para o público que quer comprá-la sem questionar. Vence a embalagem mais adequada, e aquela direcionada pelas pesquisas de satisfação.

Analisado por esse ponto de vista e pelos poucos momentos em que o roteiro realmente questiona isso, o filme demonstra ter conteúdo e relevância, mas escorrega pelos dedos do diretor e do roteirista, que não quiseram ser mais duros e crus como a realidade para, talvez, conseguirem vender seu produto sem criar polêmicas. Mas nada disso ajudou. Se o filme tivesse um rumo mais realista e interessante, sem floreios ou excesso de tramas paralelas irrelevantes, dando foco unicamente ao jogo de interesses e falsas promessas que é a política, o filme teria fracassado comercialmente de cabeça erguida.

CONCLUSÃO...
Tem conteúdo relevante, mas escorregou pelos dedos do diretor e do roteirista. Poderia ter sido um filme muito mais interessante e uma importante referência ao cenário eleitoral norteamericano atual, mas se perde nas falsas intenções e na intenção de não ser polêmico para ser melhor aceito. Isso só provou que amenizar temas para ser mais vendável nem sempre funciona ou vale a pena. Mas política, propaganda e cinema são assim.

sábado, 9 de janeiro de 2016

TIME QUE GANHA NÃO SE MEXE, MAS CANSA...

★★★★★
Título: Joy - O Nome do Sucesso (Joy)
Ano: 2015
Gênero: Drama, Comédia
Classificação: 12 anos
Direção: David O. Russell
Elenco: Jennifer Lawrence, Bradley Cooper, Robert De Niro, Diane Ladd, Isabella Rossellini
País: Estados Unidos
Duração: 124 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Levemente baseado na história real de Joy Mangano, uma mulher que saiu da total miséria para se tornar uma empresária de sucesso.

O QUE TENHO A DIZER...
Quando o diretor David O. Russel trabalhou com a atriz Jennifer Lawrence pela primeira vez, ela ainda não era uma estrela de primeira grandeza em Hollywood. Foi com seu filme, O Lado Bom Da Vida (Silver Linings Playbook, 2012), que ela foi catapultada para o sucesso, pois ele lhe rendeu uma segunda indicação ao Oscar que, consequentemente, veio a ser sua primeira estatueta com apenas 23 anos.

Claro que não foi unicamente isso. Lawrence já vinha caminhando em uma sucessão de boas escolhas, mas foi com Russell que ela se estabeleceu em definitivo, e o mesmo aconteceu com o ator Bradley Cooper.

Portanto, não é à toa que este é o terceiro filme em que Russell, Lawrence e Cooper trabalham juntos novamente (e o quarto em que Lawrence e Cooper atuam juntos). Tudo isso porque, da mesma forma como foi em Trapaça (American Hustle, 2013), o filme anterior do trio, aqui vale novamente a máxima que "time que ganha não se mexe".

Russel está tão seguro disso que a fórmula já está ficando óbvia e cansada, mas ele ainda não percebeu.

Dessa vez ele contará a história de Joy (Jennifer Lawrence), uma jovem que praticamente carrega toda a responsabilidade de sua família e de sua casa hipotecada nas próprias costas (Lawrence fez algo parecido em Inverno D'Alma). Endividada e sem dinheiro para sequer pagar a conta de telefone, um dia ela acorda com a brilhante idéia de inventar um esfregão de chão após ter cortado sua mão com um copo quebrado na hora de limpar a sujeira. Com a ajuda de seu pai (Robert De Niro), de sua nova madrasta empresária (Isabella Rossellini) e de sua irmã invejosa (Dascha Polanco), ela consegue um gordo financiamento para produzir o primeiro lote de sua invenção. Depois de tudo pronto, ela não consegue vender sequer um deles. E depois de uma cascata de desastres, infortúnios e humilhações, ela consegue convencer um diretor de uma empresa a colocar seu mais novo produto em um famoso programa de televendas. E é a partir daí que a história de superação e sucesso realmente começa.

A grosso modo a história parece simples demais ou sem grandes atrativos para um filme com um elenco que conta até mesmo com De Niro (a terceira parceria dos dois também). Só que Russell, tal qual os televendedores no próprio filme, sabe vender seu produto e agregar valor a ele com uma produção de época novamente classuda (mas não tão exuberante como seu filme anterior) e exageros fictícios na história para render cenas que apelam no sentimentalismo ou na motivação, fora o elenco já citado.

Então, no fim das contas, o que se tem é um filme (no mínimo) divertido e empolgante, e o resto é aceitável, porque é tudo muito correto como ele sabe que tem que ser, até nos erros.

Por conta disso, não deixa de ser apelativo, daqueles que pedem pelo amor de deus para receber indicações a prêmios, principalmente para Lawrence. Tanto é assim que ele é cheio de cenas solo da atriz, aquelas típicas cenas para se passar no telão do Oscar. Temos Lawrence chorando com convicção, Lawrence discutindo com ênfase, Lawrence se surpreendendo com emoção, Lawrence quebrando tudo no cenário em frente a filha, Lawrence virando o jogo e saindo de cena desfilando. Enfim, vários momentos que atiram para todo o lado para chamar a atenção de jurados pelo mundo. E essa obviedade na intenção incomoda muito porque tentam fazer disso algo mais interessante do que a própria história, a qual, por si só, é cheia de problemas de continuidade e personagens mal explorados ou desenvolvidos. Os eventos acontecem todos um em cima do outro, sem intervalos que representem transições temporais convincentes, além de conflitos entre personagens que são jogados aleatoriamente na história para acentuar curvas dramáticas.

Tudo isso é feito justamente para dar dinamismo e densidade em uma história que é fraca, mas que foi desenvolvida mesmo assim com o único intuito de manter Lawrence em evidência. Desnecessário, com certeza. Todos já sabemos que ela é talentosa porque é natural e espontânea. Há um momento no filme em que sua personagem se desmonta toda para aparecer no programa de televisão, e então ela justifica dizendo que é daquele jeito que ela é no dia comum: vestindo camisa, calça e cabelo amarrado de qualquer jeito. E na realidade, Lawrence é bem isso, sendo essa a razão de seus papéis terem sempre esse apelo mais despojado, de gente comum, e não algo estrategicamente montado, até mesmo quando tentam, como acontece aqui.

Não é ruim, mas também não consegue agregar alguma coisa porque só floreando muito para levar a história de uma mulher que inventou um esfregão de chão parecer algo interessante no cinema. O que paradoxalmente é até bastante engraçado porque, mesmo no desinteresse que o título ou tema possam despertar em um primeiro momento, ele consegue ser até melhor que o esperado. Só é inevitável notar tantos truques, exageros e situações marcadamente forçadas e previsíveis, um filme literalmente fabricado para atrair uma atenção fácil e garantir seu lugar nas premiações de alguma forma, principalmente em um ano bastante fraco como foi 2015.

CONCLUSÃO...
A empreitada de Russell para transformar o longa em mais um forçado show particular de Lawrence. O bom é que ela é tão espontânea que toda essa presunção acaba caindo por terra e fazendo o filme se transformar em algo bonitinho, motivador e aceitável. Com certeza a parceria de Lawrence com Cooper tem se tornado uma coisa meio Doris Day e Rock Hudson deste século, mas é necessário que Russell deixe de usar isso como uma fórmula fácil, caso contrário o resultado será sempre essa água com açúcar que virou.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

VALE CADA MINUTO...

★★★★★★★★★☆
Título: O Regresso (The Revenant)
Ano: 2015
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Alejandro Gonzáles Iñárritu
Elenco: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Domhnall Gleeson, Will Pouter, Forrest Goodluck
País: Estados Unidos
Duração: 156 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um caçador de peles é atacado por um urso. Gravemente ferido e debilitado, é deixado à morte por seus colegas. Motivado pelo sentimento de vingança, trava uma batalha com a própria natureza em luta pela sobrevivência.

O QUE TENHO A DIZER...
Quando Gravidade (Gravity, 2013) foi lançado, o mexicano Alfonso Cuarón trouxe de volta para o cinema os longos planos sequência (cenas sem cortes) de 5 a 10 minutos. Foi necessário um mexicano fazer isso para a técnica novamente virar tendência em Hollywood, assim como foi necessário outro mexicano, o amigo Alejandro Gonzales Iñárritu, para ultrapassar essa barreira com Birdman (2014), ao realizar um longa aparentemente feito em uma única sequência.

Não que ninguém tivesse feito isso antes. Hitchcock mesmo fez isso com Festim Diabólico (1948), mesmo com todas as limitações tecnológicas da época. A verdade é que o filme tem cortes, sim. Mas são imperceptíveis tal qual o clássico citado.

Birdman surpreendeu e agradou toda a crítica, que o considerou ousado. O que ele realmente é. Tanto que será referência futura assim como Festim Diabólico é até hoje.

Talvez um tanto inflado com o resultado do seu filme anterior, Iñárritu aproveitou o nirvana para mergulhar em um projeto no qual novamente escolhe o caminho mais difícil. Na intenção de que tudo parecesse realista o bastante, realizou cenas e filmagens da maneira mais crua e com o mínimo de equipamentos possível. As filmagens foram realizadas cronologicamente em um total de 80 dias dentro de em um período de 9 meses porque a mirabolante idéia da vez foi utilizar uma estética de filmagem que utilizasse apenas a luz natural em locações reais.

Obviamente que isso deixou a equipe técnica de cabelo em pé porque dependiam da boa vontade da natureza para que tudo desse certo em um cenário onde havia tudo para dar errado. Um único momento em que o tempo não contribuísse, era o suficiente para o dia de trabalho ser perdido. O caso mais grave foi na reta final de filmagem, em que o gelo das locações canadenses derreteu, impossibilitando a continuidade. Toda a equipe teve que se mudar para o sul da Argentina para encontrar situação climática similar, o que felizmente conseguiram em cima da hora, já que o verão se aproximava.

Esse constante de situações inesperadas e estressantes gerou grandes divergências no set, intensificados pelo temperamentalismo e exigência de Iñárritu ao ponto de várias pessoas deixarem o projeto no meio do caminho, ou serem demitidas pelo próprio diretor, como aconteceu com um dos produtores. Houve até discussões entre ele e o ator Tom Hardy por conta da falta de segurança que o ator sentia na realização de algumas cenas.

Excentricidades à parte, no fim tudo valeu a pena porque o resultado é realmente impressionante e o filme é definitivamente de cair os queixos por aí.

A história se passa no começo do século XIX, narrando a história de Hugh Glass (Leonardo DiCaprio), um caçador de peles que, após ser brutalmente atacado por um urso marrom, é abandonado por seus colegas e deixado para a morte nas florestas gélidas do norte dos Estados Unidos. Ferido, sem suplementos ou armas, e em meio a uma guerra entre brancos e índios da tribo Arikara por conta de domínios territoriais e inclusive pelo direito a exploração de pele, Glass faz uma peregrinação de sobrevivência por mais de 300km com o único intuito de vingar a morte de seu único filho, fruto de uma relação entre ele e uma índia Pawnee no passado, o qual foi assassinado friamente por Fitzgerald (Tom Hardy), um de seus colegas de caça.

A experiência realista que Iñárritu cria consegue ir muito além de qualquer outro filme de sobrevivência solitária que foi lançado nos últimos anos. Primeiro porque, com excessão de algumas informações fictícias, grande parte do filme é baseado em fatos verídicos. Segundo porque as filmagens com iluminação natural dão uma densidade fotográfica um tanto inédita, um material bruto sem maquiagem visual que chega a surpreender naturalmente com as paisagens sem tratamento digital. Terceiro porque grande parte do que vemos é o que foi filmado de fato, principalmente a respeito dos atores. DiCaprio não é poupado das dificuldades em tempo algum, seja nu em meio a neve, mergulhando nos rios congelados ou comendo figado cru de um búfalo, ele se deixa levar pelo extremo naquilo que pode ser o seu melhor papel porque ele se despe de toda e qualquer zona de conforto. E por último, o diretor ainda mantém os planos sequência por boa parte da história, o que era necessário para se aproveitar o máximo do pouco tempo disponível diariamente para filmagem, mas que certamente intensificam ainda mais o realismo pelas situações se desenvolverem sem cortes ou truques óbvios, como o momento do brutal ataque do urso marrom (uma das sequências mais impressionantes e das poucas que faz excelente uso da computação gráfica a favor da experiência realista), ou quando Glass foge a cavalo enquanto é perseguido por nativos americanos, uma das melhores e mais bem construídas sequências de perseguição do filme que não dura nem 30 segundos, mas tudo é tão meticulosamente ensaiado, numa coerografia perfeita tanto por parte do elenco como da condução da câmera, que a pontualidade capta todos os momentos necessários sem exagero dramático.

Aliás, mesmo sendo um drama espiritual, como o próprio diretor o classificou, além de uma batalha épica entre o homem e a natureza, Iñárritu não apela em momento algum para o drama comum. Ele é muito objetivo e sucinto, até mesmo em situações que qualquer diretor facilmente cairia no apelo fácil, como no momento em que Hawk (Forrest Goodluck) é atacado por Fitzgerald. Esqueça qualquer melodrama similar ao que Robert Zemeckis construiu em Náufrago (Cast Away, 2000) porque Iñárritu acerta ao fugir completamente dos clichés que Hollywood criou ao longo dos anos no gênero. Não há nem mesmo invasão da trilha sonora para sugerir maior impacto sentimental porque tudo isso é desnecessário. O desenvolvimento das situações já é visceral por si só, a realidade existente nas cenas já tem densidade suficiente para sentirmos os ossos congelarem, a carne dilascerar, a fome bater e o desespero nos consumir.

Fazia tempo que eu não via algo baseado em fatos reais com tanto realismo e seriedade. Há violência explícita, tensão e cenas fortes, mas tudo tem coerência e contexto. Só que frente a tantas qualidades em uma situação cujo principal vilão é a própria natureza e sua força devastadora, transformar uma história de sobrevivência em um filme de vingança, como é o que acontece, por algumas vezes não parece fazer sentido. Mas a história real de Glass é contada dessa forma, só não é esclarecido se a verdadeira razão pela sua busca de vingança foi por Fitzgerald tê-lo deixado para a morte, ou se foi por ter roubado seus pertences enquanto debilitado e inconsciente (e não por ter matado seu filho, como acontece no filme). E aproveitando disso, Iñárritu até explora essas outras possibilidades, inclusive há até uma tentativa de "desvilanizar" o personagem de Hardy para que suas atitudes sejam mais consequência de traumas psicológicos do que por uma maldade deliberada, o que é até convincente também por conta do trabalho que Hardy desenvolve.

Com certeza é um filme longo e cansativo nos seus mais de 150 minutos. Cansativo não por ser monótono, mas por perdermos a esperança pelo personagem diversas vezes porque sempre algo pior irá acontecer, inclusive quando acharmos que não há como a situação piorar. E o comprometimento de DiCaprio no papel é estarrecedor. Até mesmo eu, que particularmente nunca fui fã de seus trabalhos, não conseguia vê-lo como um ator em cena, mas como Hugh Glass de verdade, tamanha sua imersão no personagem e no filme.

Assim como em Perdido Em Marte (The Martian, 2015), outro filme de sobrevivência lançado há pouco tempo, são em filmes como esse que percebemos como nós, meros humanos da vida fácil, não teríamos a mínima noção de como sobreviver a uma situação extrema de sobrevivência. E é até bom que filmes assim estejam na moda para que possamos perceber como somos frágeis e despreparados para o inesperado.

CONCLUSÃO...
Se Iñárritu tinha a intenção de se superar depois de Birdman, ele conseguiu. O Regresso não apenas é um dos maiores filmes de 2015 como deve figurar entre os melhores do gênero. É outro filme do diretor que se tornará referência. Um filme que, acima de tudo, é visualmente deslumbrante e que vale cada minuto assistido, mesmo que haja um intervalo de descanso.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

IGNORÂNCIA É O MAIOR DEFEITO...

★★★★★★
Título: Os Oito Odiados (The Hateful Eight)
Ano: 2015
Gênero: Suspense, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Quentin Tarantino
Elenco: Samuel L. Jackson, Kurt Russell, Jennifer Jason Leigh, Walton Goggins, Demian Bichir, Tim Roth, Michael Madsen, Bruce Dern
País: Estados Unidos
Duração: 167 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Oito pessoas desconhecidas se protegem em um abrigo durante uma nevasca que poderá durar dias, mas as desconfianças entre eles aumentam conforme seus interesses particulares são ameaçados.

O QUE TENHO A DIZER...
Eu sou fã de Tarantino. Mas não sou aquele fã que ficou fã porque Pulp Fiction (1994) é cult e referência do cinema pop moderno. Fiquei fã depois que essa onda passou e saquei que, de fato, ele é (talvez) o único diretor atualmente capaz de transformar a cultura pop e inútil em algo consistente e relevante no cinema. Tá... também temos Guy Ritchie em uma menor escala, que pode ser a versão mais britânica e descomprometida de Tarantino. Mas a diferença entre um e outro é que todos os filmes de Tarantino são atraentes de alguma maneira e tecnicamente muito bem acabados. Pode ter uma ou outra pessoa que goste menos ou até odeie algum título, mas é inegavel que sua meticulosidade em detalhes seja o que se destaque dos demais cineastas de sua geração porque aquele cabeção é uma biblioteca ambulante de referências que nem mesmo o mais consumista dos consumistas conseguiria identificar de onde vem tanta coisa.

Vale também dizer que, tecnicamente, este não é seu oitavo filme, mas o nono. Muita gente errando as contas ao se esquecer que ele dividiu com Robert Rodriguez a direção em Grindhouse para a sessão Prova de Morte (Death Proof, 2007), assim como também muita gente não conta que seu primeiro filme foi O Aniversário do Meu Melhor Amigo (My Best Friend's Birthday, 1987), e não Cães de Aluguel (Reservoir Dogs 1992). Mas para ficar bonito no poster, fantasiosamente este é seu oitavo filme mesmo, aquela coisa autoral, dirigido e escrito por ele e unicamente ele.

Curiosamente a história do filme se passa no mesmo período e universo que se passou seu filme anterior, Django (2012), sendo enfático ao afirmar que não é uma continuação, embora o complemente. Aqui ele novamente traz à tona o estilo Western (faroeste), porque ele é fã do gênero e o referencia em tudo que é possível, até mesmo quando tem nada a ver. O que se tornou sua marca registrada ao longo dos anos, praticamente uma marca d'agua em seu trabalho.

Inspirado nos seriados de faroeste pastiche dos anos 60, como Bonanza (1959-1973), e dos vilões que sempre apareciam neles para capturar o herói e fazer de todos reféns, a idéia de Tarantino foi simples: e se ele pegasse apenas esses bandidos e os colocassem juntos em um mesmo lugar, nada de mocinhos, nada de heróis, apenas os mais abomináveis deles encarcerados por um azar do destino, como uma terrível nevasca tal qual no filme O Enigma de Outro Mundo (The Thing, 1982), onde ninguém confia em ninguém e todos são uma ameaça?

E a idéia que parecia simples e teatral demais se engrandeceu daquela forma tarantinesca de sempre, desenvolvendo a linha narrativa a partir dos próprios personagens, e não a partir de uma história pré concebida. Ou seja, Tarantino nunca irá contar, por exemplo, uma história sobre um assalto a banco. Ele primeiro irá apresentar um personagem que encontrará outros personagens, o qual contará para todos como o assalto ocorreu de forma que cada um deles ficará na dúvida se aquilo de fato aconteceu daquela maneira. Igual história de pescador: verdadeira, mas exagerada. É isso que ele sempre faz, e que volta a fazer aqui.

Portanto, partindo-se do princípio de que "se a coisa está ruim, vamos piorá-la", é exatamente isso que vemos em cada um dos oito personagens. E o "odiados" do título não é à toa. Eles realmente são isso. Os exemplos da escória da humanidade está em cada um deles, desde a alegoria corrupta à racista, do chefe de quadrilha ao assassino frio e calculista. O niilismo é grande. Não chega a ter um pessimismo tão forte e contundente como em Onde Os Fracos Não Tem Vez (No Country For Old Men, 2007) por conta do humor negro e sarcástico presente, mas por outro lado consegue mostrar que é realmente a ignorância a mãe maior de todos os defeitos, ao qual estaremos condicionados eternamente. Não há espaço para heroismo, embora haja breves momentos de redenção ou até uma singela mudança comportamental, mas nada disso salvará qualquer um deles do fatídico destino.

Quando pensamos que um personagem finalmente terá um momento de luz e bondade, ele se revela um abominável monstro da neve. E isso tudo, na realidade, é a forma que Tarantino tem de, como disse um crítico, soltar mais uma vez o grito de raiva sobre o grandioso problema racial que ainda existe entre os norteamericanos. Um filme que também afirma em Dó Maior de que todos nós nunca superamos a escravidão, nos fazendo pensar se a única maneira para isso será através da crua brutalidade. Não é à toa que este filme complementa Django de alguma forma, pois revela que mesmo apesar de tanto esforço e mudanças, tudo continua quase da mesma forma até hoje. 

Por vezes, o teor sociopolítico chega a ter escalas próximas ao do filme A Floresta Petrificada (The Petrified Forest, 1942), quando este foi uma forte metáfora à Grande Depressão que ocorreu nos EUA logo após a Primeira Guerra. A ambientação inóspita e teatral, o encarceramento, o crescente conflito entre os personagens e seus graus de confiança também tem o mesmo peso. Obviamente o texto de Tarantino não consegue ser tão sério e sutil como o clássico filme de Archie Mayo, até porque, como dito, Tarantino não é clássico. Mas é bastante providencial que a A Floresta está para a Grande Depressão tanto quanto Odiados está para a Guerra Civil.

Que Tarantino sempre exagerou no sangue, transformando a violência em um absurdo cômico, isso é fato. Então a neve chega, a tensão aumenta, as armas são sacadas, o sangue esparramado e as cabeças estouradas. E um pouco diferente do humor sarcástico de seus filmes anteriores, aqui consegue ser mais desconfortável, corrosivo como ácido, construído por vezes na intenção proposital de constranger. Sem dúvida é impossível conter as gargalhadas quando Major Warren (Samuel L. Jackson) conclui a forma como ele tratou o filho do General Smithers (Bruce Dern), pois é de um sadismo tão surreal e justificado que elas saem não porque é engraçado, mas porque nos incomoda, nos desafia e atinge diretamente nossos piores defeitos. Gargalhamos automaticamente não para alivar o peso da situação, mas para aliviar a consequência da ignorância, da vergonha, do ponto em que ambos personagens precisaram chegar para um demonstrar sua razão e o outro seu arrependimento. São gargalhadas de fuga tal qual o sulismo gótico de Killer Joe (2011), quando Matthew McConaughey obriga Gina Gerson a fazer sexo oral em uma coxa de frango.

Brilhante também é a personagem de Jennifer Jason Leigh, que aparentemente parece estar lá apenas para figurar e para todo momento ser humilhada, chacotada e tratada como um animal qualquer. Uma personagem patética do início ao fim que representa, nada mais, nada menos, que todas as pessoas do mundo igualmente patéticas como ela. Talvez a personagem conceitualmente mais forte de todo o elenco no sentido de representação de uma sociedade lamentável, aquela que só abre a boca para dizer o que não presta e mesmo assim é ouvida por muitos. Kurt Russel também oferece uma das suas melhores performances em um anti-herói tão interessante quanto o de Jackson, mas que, dentro de todo o universo pessimista em que está inserido, se torna o elo mais fraco da história.

Não há nada diferente do que Tarantino já fez em seus filmes anteriores, mas o que sempre chama atenção e ainda oferece esse tom de novidade ao ponto de cada novo filme ser um evento é que, para que todo esse universo que ele cria tome forma, os personagens são muito bem construídos, e ele nunca tem preguiça em desenvolvê-los. A riqueza de detalhes é sempre tão grande que ele realmente pinta a característica e a personalidade ao ponto de primeiro nos interessarmos por eles, para depois ouvirmos o que eles têm a contar. Particularmente acho isso brilhante, porque é difícil atrair o interesse do espectador por esse lado no cinema porque demanda tempo e paciência. Por isso que seus personagens são sempre visualmente muito bem caracterizados, até mesmo quando há aquela cafonice de detalhes que simbolizam a marca da maldade, como o tampão de olho de Elle Driver em Kill Bill (2003), ou o refinado sadismo de Landa em Bastardos Inglórios (2009), técnicas clássicas da ficção para fazer um personagem se tornar memóravel tal qual uma marca registrada, ficando fácil associar sua personalidade à característica.

Mas isso tudo, ao mesmo tempo que é uma grande virtude, também é um grande defeito. Tarantino perde muito tempo até chegar ao finalmente de alguma coisa, desenvolvendo tudo de formas que apenas faz sentido na cabeça dele, mas que para o resto das pessoas não faz a mínima diferença ou tem a menor importância, como a longa tomada dos cinco minutos iniciais para enfatizar a trilha original de Ennio Morricone. Cinco minutos com a câmera em cima da neve e de uma imagem de Jesus crucificado até a carruagem passar. Ok... em um minuto pude imaginar dezenas de significados que aquela imagem poderia ter para o filme (ou até não ter), e o resto foi bocejo. No fim, a maior conclusão que se tira disso é que ele não vai ter pressa alguma durante os 160 minutos divididos em seis prolongados capítulos, onde o penúltimo vai servir mais como um interlúdio do que algo realmente necessário para a história.

O capítulo cinco (entitulado Os Quatro Passageiros) podia muito bem não ter existido, não apenas para aliviar o tempo do filme, mas também para não estragar todo o suspense e a ambientação que ele demora horas para construir e convencer o espectador. Podia muito bem ter sido substituído por uma breve explicação por parte de algum outro personagem, já que somos praticamente esclarecidos de tudo muito antes devido à perspicaz observação do personagem de Samuel L. Jackson. Isso faz o capítulo se destoar do resto e empobrecer todo o desenvolvimento quando personagens indeterminados como Minnie e Sweet Dave faziam muito mais sentido no imaginário do espectador do que no do próprio diretor. São nessas horas que Tarantino erra, revelando o que não precisava ser revelado, e falando demais quando poderia ter ficado quieto. Até mesmo sua narração repentinamente entra na história de maneira desnecessária, como se ele percebesse que alguém está perdendo o interesse, servindo mais para recapitular quem cochilou em algum momento do que nos dar a impressão de que o que vemos é um livro interpretado, uma quase representação teatral de seu texto.

É notável a forma como Tarantino tem conseguido desenvolver a crítica social nos seus últimos filmes sem fazer com que as pessoas percam o interesse por ele. Afinal de contas, assim como qualquer artista pop, a função é disseminar uma idéia da maneira mais abrangente possível, por mais que ela seja difícil de ser compreendida. Por essas e outras que seus esforços são louváveis, mas sua pretenção por vezes atrapalha o resultado. Odiados poderia ter sido um de seus melhores filmes por conta de seus personagens alegóricos, das situações metafóricas, do peso crítico embutido, da atualidade e seriedade de sua temática, mas se perde na falta de objetividade e peca pelo excesso. Ainda assim, por algumas e outras razões, merece ser assistido, principalmente porque ele sabe dominar técnicas, rendendo momentos prazerosos como o plano sequencia de dois minutos em que Daisy (Jennifer Jason Leigh) observa seus inimigos beberem o café enquanto toca violão, momentos em que sabemos que Tarantino não erra e que percebemos porque gostamos dele até mesmo quando não concordamos com seus exageros.

CONCLUSÃO...
Poderia ter sido um dos melhores filmes do diretor se não fosse seu excesso de confiança e da costumeira falta de objetividade. Não chega a ser esquecível, mas não tem o mesmo apelo de seus filmes anteriores, embora o teor sociopolítico seja louvável da mesma forma como foi em Bastardos e Django. E entre alguns momentos canseira e outros, há aqueles que realmente valem a pena serem vistos, mas que ficam foram do contexto se vistos isoladamente, o que nos obriga nos arrastar por muita coisa desnecessária e redundante.
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