Translate

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

STEPHEN KING OUTRA VEZ...

★★★★★★★★☆
Título: 1922
Ano: 2017
Gênero: Horror, Suspense, Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Zak Hilditch
Elenco: Thomas Jane, Molly Parker, Dylan Shmid, Neal McDonough
País: Estados Unidos
Duração: 102 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um fazendeiro arquiteta um plano macabro de assassinar sua mulher, convencendo o próprio filho a fazer parte disso.

O QUE TENHO A DIZER...
Que 2017 é o ano das atuais gerações (re)descobrirem Stephen King, isso já está mais do que claro. E depois da Netflix produzir a (péssima) série O Nevoeiro (The Mist, 2017), mas em contraponto também produzir o interessante Jogo Perigoso (Gerald's Game, 2017), o público foi pego de surpresa com essa nova e fresquinha adaptação, que também leva o selo do serviço.

Stephen King rende bons filmes quando bem adaptado, mas o difícil é encontrar quem o faça com categoria, pois suas obras são cheias de nuances, referências e metáforas embrenhadas em toda sua cabeça fantástica e macabra. Eclético e variado, por mais que alguns temas sejam recorrentes em suas obras, se distanciam umas das outras pelas diferentes abordagens, pela narrativa, pelas referências e analogias distintas. Enfim, é um autor que possui qualidades até mesmo nos menores contos, ou nos livros menos conhecidos.

1922 chega para provar que suas melhores adaptações são aquelas sem pretensões de impressionar ou serem grandes blockbusters. Baseado em uma história publicada na coletânea Escuridão Total Sem Estrelas (Full Dark, No Stars, 2010), a adaptação é uma produção pequena e contida, dirigida, escrita e produzida pelo desconhecido australiano Zak Hilditch, um filme considerado pelo pelo próprio autor uma das melhores adaptações de suas obras em 2017.

Não é por menos. A produção é recheada de qualidades que faltam em muitos de seus outros títulos já adaptados, extraindo da história todos os elementos e características do autor de uma forma bastante homogênea, linear e densa, diferente, por exemplo, de Jogo Perigoso, que tropeça várias vezes, mas sem cair.

Aqui a história gira em torno de Wilfred (Thomas Jane) e Arlette (Molly Parker), e da dificuldade de ambos em levar adiante uma relação infeliz e indesejada, já que cada um deles possuem objetivos e vontades diferentes, mas continuaram juntos apenas para criarem e educarem o único filho, a verdadeira razão de terem se casado.

Enquanto Arlette quer vender os 100 acres herdados de seu falecido pai e abandonar a vida rural que tanto detesta, Wilfred deseja agregar a herança de sua mulher à fazenda que já possuem, e assim terem um território generoso e produtivo que garantirá o futuro de seu filho e de futuros netos. Arlette recusa a proposta e ameaça seu marido com o divórcio e também em levar seu filho com ela para a cidade caso ele persista na idéia de permanecer na fazenda. Desesperado, Wil quer tanto manter a fazenda como seu filho por perto, o qual também não tem vontades de se mudar para a cidade principalmente porque está apaixonado por sua vizinha. Sem encontrar alternativas, Wil começa a voltar seu filho contra sua própria mãe, e assim cultivar nele o ódio necessário para que ele o ajude em um cruel e diabólico plano de assassiná-la.

A década de 20 nos Estados Unidos foi marcada por um extenso crescimento industrial que avançava com bastante força e rapidez para o oeste e sul do país, ainda consequências da Guerra Civil (Secessão) e da Primeira Guerra Mundial, marcando a ascensão americana como grande potência não apenas bélica, mas política e econômica até a Grande Depressão devastar o país em 29 e perdurar pela década de 30. Na parte central, no interior do estado de Nebraska, onde a história se passa, a chegada de fazendeiros corporativistas e de indústrias alimentícias marcava o fim da vida pacata e autosuficiente dos fazendeiros e da vida rural simples e comum, mostrando a todos que o futuro finalmente havia chegado e, junto com ele, o progressismo comercial e suas consequências.

A princípio, e de maneira bastante superficial, pode parecer que o enredo se trate apenas de um jogo macabro de interesses e oportunismos, porém é aí que a mente brilhante de King começa a tomar forma, porque podemos enxergar nos personagens o conflito que o avanço tecnológico e industrial trouxe para aquela época. Não é à toa que Arlette quer abandonar a vida rural para ir atrás de um futuro promissor, no sonho de ter sua própria boutique, numa época que a moda começava a abandonar sua rigidez e a modestamente mostrar uma personalidade mais ousada e consumista (como no momento em que são citadas as calças jeans, por serem mais confortáveis às mulheres em "longas viagens"), enquanto Wil pretende a todo custo manter sua tradição enraizada no mesmo lugar, longe de coisas que possam corromper seu bucolismo (como no momento que sente ter inveja de seu vizinho pelas coisas que possui). E o filho, no meio de tudo, ligado a meros valores ingênuos que serão interrompidos com a cruel realidade em algum momento, tão rápido e fácil quanto dar a partida em um carro.

A resistência de Wil em migrar para a cidade é de igual intensidade a Arlette em permanecer com ele, algo que, quando visto por essa metáfora, se reflete na brutal cena de seu assassinato, na dificuldade de Wil em matá-la e na resistência dela em morrer, como a querer mostrar que o futuro pode ser postergado, mas é inevitável, e o lado mais forte sempre vence. Tanto que Wil é constantemente obrigado a ceder a necessidades mais cosmopolitas, aos poucos deixando suas origens e cortando (literalmente) suas raízes e ferramentas de trabalho, chegando a um triste fim, preso em um quarto de hotel, refém de suas próprias escolhas.

O diretor e roteirista tem êxito a transpor para a tela essas delicadas referências responsáveis por dar razões subliminares aos conflitos sem parecerem que foram simplesmente jogados na história sem qualquer razão. E a partir dessas sólidas fundações, o horror, o sofrimento psicológico e a punição passam a ser construídos. E Tomas Jane, numa caricatura um tanto similar a de Duke Mantee, imortalizado por Humphrey Bogart no clássico A Floresta Petrificada (1936), embarca numa jornada quase cíclica de consequências e culpas, e como o peso de um homicídio gradativamente retorce a consciência e consome a alma de quem o comete.

Ao contrário de nos depararmos com um protagonista tendo atitudes heróicas, como aconteceu com o próprio Jane na adaptação de Frank Darabont de O Nevoeiro (2007), aqui presenciamos totalmente o inverso: o nascimento de um genuíno vilão concebido pela sua própria ambição, do qual somos incapazes de encontrar qualquer simpatia até mesmo nos momentos de honesto e tardio arrependimento, e dessa forma, toda a atmosfera sombria se desenvolve como delírios de Edgard Alan Poe, autor também bastante referenciado, já que o conto de King também é visto por muitos como uma releitura de O Coração Revelador (The Tell-Tale Heart, 1843), por possuir os mesmos elementos góticos.

Hilditch conduz tão bem a narrativa e seus pormenores que a sensação de assistir a adaptação de um conto é nítida. Não pelo seu tempo ou aparente simplicidade, mas pela forma condensada como é construído, focado em um pequeno número de personagens, em espaços sucintos, sem obviedades desnecessárias ou qualquer outro elemento que desvie a atenção do espectador. E embora a fotografia seja belíssima até mesmo nos momentos mais indigestos, a saturação da imagem não favorece a sensação de época que o longa poderia ter tido. E por alguns momentos o filme se estende demais em situações que poderiam ter sido mais curtas, e assim ter dado oportunidade para os personagens nos darem maiores motivos para entendermos melhor suas intenções.

De qualquer forma, como um todo, é sem dúvida uma das melhores adaptações de King até hoje, que obviamente poderá não agradar aqueles que preferem os filmes baseados em suas histórias de terror mais físicas e óbvias. Não causa medo e nem sustos baratos, mas há material de sobra para ser apreciado como um genuíno conto macabro que progride de maneira bastante correta em sua proposta, além de bastante ousado numa época em que os filmes mais comerciais tem abusado de clichés levianamente para se manterem confortáveis e igualmente sem surpresas.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

TOSQUICE BEM FEITA...

★★★★★★☆
Título: A Babá (The Babysitter)
Ano: 2017
Gênero: Comédia, Terror, Suspense
Classificação: 14 anos
Direção: McG
Elenco: Samara Weaving, Judah Lewis, Bella Thorne, Hana Mae Lee, Robie Amell
País: Estados Unidos
Duração: 85 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um garoto descobre que a babá por quem é perdidamente apaixonado não é exatamente tudo aquilo que imaginava.

O QUE TENHO A DIZER...
Não, este não é um remake do pseudo-clássico fetichista de 95, com Alicia Silverstone. E, ainda bem, está longe disso.

Mas, pra quem ver o título, provavelmente não vai se interessar. Quem ler a sinopse, talvez menos ainda. E se mesmo assim a pessoa insistir, a vontade será parar logo nos primeiros minutos. 

Mas persista. Persista porque haverá um determinado momento que algum diálogo ou alguma situação irá puxar sua atenção como a querer dizer que toda a tosquice presente é atraente.

Entupido de clichés e estereótipos, o propósito é exatamente esse, brincando com um tema sério e transformando o assédio moral (bullying) em argumento para um terror escrachado com final feliz. 

Por incrível que pareça, esse filme um tanto inusitado fez parte da blacklist de 2014, lista sobre os melhores roteiros que não foram produzidos, publicada anualmente. E como já é de tradição produzir aquilo que ninguém quer, coube à Netflix pegá-lo da prateleira empoeirada e colar seu selinho. 

Classificado como uma comédia gore, também tem diversos elementos do terror slasher, gênero de carreira duvidosa, cheia de altos e baixos, muito produzido nos anos 80 até saturar e desaparecer, voltar a virar moda nos anos 90 e decair novamente com sua nova saturação no começo de 2000. 

Hoje em dia este tipo de filme gera mais risadas do que qualquer outra coisa, causando zero espanto ou surpresa, o contrário do que a própria sequência de abertura de Pânico (Scream, 1996) um dia fez, revolucionando a maneira de se introduzir filmes no cinema mais atual. E embora A Babá se inspire em todos os títulos que incansavelmente reproduziram as mesmas fórmulas ao longo das décadas, ao mesmo tempo ele se destaca por não ser apenas uma repetição do mesmo tema. 

Que depois de Pânico nenhum filme do gênero foi levado mais a sério, isso é sabido de frente pra trás, já que o saudoso diretor Wes Craven, junto com o roteirista Kevin Williamson, transformaram a franquia em uma grande bíblia dos clichés com as tais "regras" que doutrinavam o comportamento dos filmes de terror adolescente e sua incrível previsibilidade. Sabiamente eles utilizaram a metainformação a favor do entretenimento e inovaram um estilo que estava estagnado enquanto o desconstruíam sem medo, causando a indignação e o ódio de muitos produtores. Era como Mister M revelar segredos mágicos, revoltando aqueles que viviam do negócio. Logo, quem conhece essa franquia, nunca mais conseguiu assistir um slasher movie da mesma forma, e nem o próprio cinema conseguiu fazê-lo da mesma forma.

Mas aqui a intenção não é fazer algo diferente, mas fazer o mesmo do mesmo. E mesmo SEM qualquer referência direta ao clássico de Wes Craven ou de qualquer outro diretor, o roteiro não tem vergonha alguma de explorar tudo aquilo que Pânico algum dia já satirizou, como o protagonista sempre buscar alternativas muito mais complicadas para se safar de um grupo de adolescentes integrantes de uma seita que sacrifica nerds para superarem suas fraquezas e conquistarem objetivos pessoais através das forças ocultas. 

Aqui a regra não tem metainformação, não tem a vontade de desconstruir gêneros, não tem vontade de inovar ou sequer fazer lago diferente, e esse excessivo uso do óbvio, em uma linguagem fácil e acessível, mas sem ser totalmente estúpida, tem um volume tão alto que se torna engraçado.

Poderia ser um filme péssimo em todos os sentidos porque o aglomerado de coisas que poderiam dar errado é muito grande. Mas ao contrário, ele diverte sem pretensão alguma. Talvez, a grande fórmula aqui seja não ter fórmulas e nem menos pretensão, mas qualidade no pouco necessário, como o do elenco, formado basicamente por novatos aspirantes a novas estrelas de Hollywood, atores que não carregam apenas rostinhos bonitos, mas também possuem talento e conseguem acertar em cheio nas interpretações debochadas, como acontece com Bella Thorne ou Samara Weaving, que hipnotiza com aqueles enormes olhos, maiores até mesmo que os de Emma Stone.

A linguagem dinâmica e às vezes um tanto cartoonizada, cheia de grafismos, efeitos e situações às vezes surreais, são características do diretor McG (lê-se "mékgee"), assim como é na maioria daqueles que começaram a carreira por trás das câmeras fazendo vídeo clipes, como ele. McG foi bastante criticado quando estreou nos cinemas com As Panteras (Charlie's Angels, 2000), sendo taxado de vazio, valorizando excesso visual para esconder falta de talento. A verdade é que não é bem assim. Ele é um diretor competente e diferente, carregado de linguagem pop e atual, o problema é que seu estilo não se encaixa em qualquer tipo de produção, e assim como As Panteras (principalmente sua sequência) se torna um material divertidíssimo para quem quiser apenas se divertir com aquilo que vê sem a necessidade de pensar, aqui ele consegue fazer até melhor porque mesmo sendo um filme cheio de cenas violentas e explícitas, é essa facilidade que o diretor tem de trabalhar com imagens e linguagens populares que faz tudo soar como uma verdadeira zombaria: escrachado, mas sem cair no pastelão. Seu grande acerto é nunca exagerar no tempo de uma cena, ou tentar fazer uma situação chegar ao ponto de ser um extensão de piada. Extensão de piada é aquilo que vem depois do gatilho da risada, geralmente acompanhada de uma moralzinha irritante ou uma explicação para garantir quem não tenha entendido de entender. Aqui isso não acontece, e é por isso que as cenas, por muitas vezes, são hilárias, principalmente durante as cenas de sofrência e agonia da cheerleader Allison (Bella Thorne), das sequencias de mortes bizarras, ou até mesmo da constante insistência do protagonista correr e fugir, mas sempre parar nos mesmos lugares, exatamente como Pânico um dia disse que é assim como acontece em todo filme de terror. E nessa edição bem precisa, o filme crava perfeitos 85 minutos, sem ser curto demais ou longo o bastante.

A Babá não é um filme brilhante e seu final poderia ter sido muito mais interessante se tudo parecesse fruto da imaginação do protagonista, como em vários momentos a evolução da história dá a entender, mas infelizmente acaba em uma mesmice que, mesmo em um filme cheio de mesmices que funcionam, este é um dos poucos que se tivesse saído do trivial, teria dado um melhor sentido para tudo. O que até parece que originalmente poderia ter sido, mas que de última hora resolveram mudar de idéia na velha intenção de vitimizar vilões em momentos de redenção, e assim a bela protagonista não parecer tão feia dentro dos valores morais hollywoodianos.

domingo, 8 de outubro de 2017

TENSO...

★★★★★★★★☆☆
Título: O Convite (The Invitation)
Ano: 2015
Gênero: Suspense, Horror, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Karyn Kusama
Elenco: Logan Marshall-Green, Tammy Blanchard, Michiel Huisman, Emayatzi Corinealdi, Michelle Krusiec, Mike Doyle, Jordi Vilasuso,
País: Estados Unidos
Duração: 100 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um homem acredita que sua ex-mulher e seu novo marido tenham outras intenções com seus convidados além de simplesmente celebrar um encontro no qual foi convidado.

O QUE TENHO A DIZER...
Conversando com um amigo, chegamos à óbvia conclusão de como extremistas são perigosos à sociedade, e como o poder de influência deles sobre outras pessoas é preocupante.

Pessoas sofrem de perdas, faltas, dores e ausências. De compreenderem e serem compreendidas. Sofrem de descrença também, e não falo de religião, mas da descrença de si e de suas capacidades.

Sentem sintomas de um vazio que não se sabe onde está e como preenchê-lo, substituindo a racionalidade por coisas mais fáceis e simples, que possam, de alguma forma, darem explicações a seus sofrimentos de maneira instantânea, principalmente numa sociedade moderna e escrava da tecnologia, dos retwites, das curtidas no Facebook, das correntes de Whatsapp, etc. Todas geralmente mal informadas, absolutamente ausentes de fontes seguras. Mas o fato é que, desde que se conecte de imediato com aquilo que é esperado, ou explique banalmente aquilo que desconhecem, não importando a veracidade, o falso se torna verdadeiro em um estalar de dedos para quem quer acreditar em qualquer coisa.

É a constante busca da compensação de frustrações, e são pessoas assim os grandes alvos daqueles que necessitam da fragilidade alheia para fortalecerem idéias distorcidas de um mundo que demanda tempo, paciência e determinação para ser compreendido, elementos há muito abandonados por uma sociedade que tem se construído simplória demais para pensar com sua própria cabeça e andar com suas próprias pernas.

E é exatamente sobre isso que esse filme tenta argumentar dentro de seu roteiro que constrói uma atmosfera densa e difícil desde seu início. A construção dúbia das situações coloca em teste alguns personagens, além de brincar com o psicológico do espectador, que ora se sente desafiado, ora apreensivo, ora aterrorizado, e quando acreditamos que o clímax é atingido, o final aparentemente simples, direcionado propositalmente a uma resolução cliché do gênero, acaba se estendendo um pouquinho mais para concluir todo o filme de maneira inesperada e, quiçá, chocante.

É impossível não associar este filme a outros que fazem uso do mesmo enredo: um jantar como ponto de partida para as tramas se desenvolverem, como no clássico Festim Diabólico (Rope, 1948), de Hitchcock; na releitura do mesmo em Cova Rasa (Shallow Grave, 1994), de Danny Boyle; no cinema mais alternativo do movimento Dogma 95 do Velho Mundo, como Festa de Família (Festen, 1998), de Thomas Vinterberg; ou até mesmo na literatura, no clássico dos clássicos do estilo "jantar infernal" em O Caso dos 10 Negrinhos (And Then There Were None, 1939), de Agatha Christie.

Nota-se que aqui a diretora Karyn Kusama, juntamente com os roteiristas Phil Hay e Matt Manfredi, fazem uma junção inteligente dos diferentes elementos presentes nesses filmes individualmente. Propositalmente ou não, tudo funciona como se deve, e o impacto dos diferentes momentos de tensão, e de momentos emocionalmente densos, consegue atingir em cheio tal qual os títulos mencionados, mas à sua própria maneira.

O drama aqui não chega a ser tão abrangente e realista como em Festa de Família, tampouco tem as boas doses de humor negro do filme de Hitchcock ou de Boyle, mas possui um arco, uma construção, bastante forte, que se torna convincente pela competência dos atores, principalmente de Logan Marshal-Green e seu "quê" Tom Hardy de ser, e Tammy Blanchard, que constrói uma personagem enigmática e fria, bizarra e comedida, propositalmente incômoda em todas as cenas. Um elenco de personagens bem construídos, desde aquele que aparenta ser menos relevante até aqueles que são as verdadeiras engrenagens de todas as desastrosas consequências. Personagens estes que, como dito, tentam preencher seus vazios e compensar suas frustrações através de extremos ditados pelo desespero de não conseguirem lidar com seus fardos particulares, deixando expostas suas vulnerabilidades para aqueles que querem se apropriar delas.

Claro que revelar diretamente qualquer detalhe da história seja como abrir um forno fora de hora. Ela não se aprofunda em detalhes da dor comum dos personagens de Marshal-Green e Blanchard, e nem de como tudo aconteceu de fato. Mas o fato em si já se justifica como um grande motivo para demonstrar que, apesar das dificuldades de superarem o ocorrido, ambos lidam com as situações de maneiras bastante diferentes, e é isso que será explorado ao longo de todo o desenvolvimento.

Kusama, que até este longa não tinha lá um currículo muito interessante, sem dúvida conseguiu se redimir de desastres como Æon Flux (2005) e Garota Infernal (Jennifer's Body, 2009), ambos ruins não por incompetência, mas por roteiros sofríveis, o que não é o caso dessa vez. Pelo contrário, ela consegue fazer desse suspense algo intenso e assustador, tanto em seu tema, como também nas reviravoltas que o filme oferece, pegando o espectador desprevenido até mesmo quando já se espera alguma coisa.

Um filme independente que mostra como o total controle criativo da diretora e dos roteiristas fez absoluta diferença em seu resultado, e mesmo dentro de um gênero um tanto fictício, nos faz pensar que não há ninguém capaz de nos fazer encontrar soluções para nossos dilemas além de nós mesmos.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

COMPETENTE, MAS NÃO MARCANTE...

★★★★★★☆☆☆☆
Título: Jogo Perigoso (Gerald's Game)
Ano: 2017
Gênero: Suspense, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Mike Flanagan
Elenco: Carla Gugino, Bruce Greenwood, Henry Thomas
País: Estados Unidos
Duração: 103 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Aqueles dias que pareciam ser os momentos ideais para romantismo e realização de fantasias sexuais se transforma em um grande pesadelo de confrontos e sobrevivência.

O QUE TENHO A DIZER...
Realmente Stephen King é como jeans: pode passar despercebido, mas de tempos em tempos volta à moda.

Depois das adaptações de A Torre Negra (The Black Tower, 2017), o remake de It (2017) e da (péssima) adaptação de O Nevoeiro (The Mist, 2017) como uma série para o Netflix, o serviço agora carimba seu selo outra vez em Jogo Perigoso, adaptação do livro homônimo do autor, publicado originalmente em 1992.

E como falei na análise sobre a série O Nevoeiro, King é um autor que faz uso de metáforas sociais e/ou políticas para construir suas obras de horror e fantasia. Aqui não seria diferente, e a obra original constrói sua história em cima de algumas das perversões mais comuns e recorrentes no sexo masculino, como o incesto, a pedofilia e a cultura do estupro, desde o sadismo do fetiche à sua realização (ou a tentativa dele). Etapas que consequentemente levam à concretização da violência e também o feminicídio. Violências que, além de físicas, são psicológicas e perturbadoras às suas vítimas.

Temas recorrentes nas obras de King, direta ou indiretamente, Jogo Perigoso era para ser uma história que acompanhasse o livro Eclipse Total (Dolores Claiborne, 1992), brilhantemente adaptado para o cinema em 1995, e que conta a história de Dolores, uma mulher que planeja o assassinato do marido violento e incestuoso justamente no dia do eclipse solar de 1963. E é o citado eclipse que conectaria a história de Dolores com a história de Jesse, duas mulheres em crise, cujas reviravoltas em suas vidas ocorrem exatamente no momento do espetáculo astronômico. Respectivamente, uma tendo seu momento de resolução e libertação, e a outra, seu momento de negação e aprisionamento. Porém, ambos acabaram sendo lançados separadamente, sobrando apenas o eclipse como uma referência de que as duas histórias ocorrem dentro de um mesmo universo e situação.

Jesse (Carla Gugino), a protagonista da história, é casada com um importante advogado. Ambos resolvem passar alguns dias sós em sua casa de veraneio para tentarem renovar um casamento estagnado e uma vida sexual fria, acomodada com o tempo. Porém, os momentos que eram para ser de perfeito romance e fantasias inofensivas, se torna um verdadeiro pesadelo quando Gerald (Bruce Greenwood) começa a expor um comportamento violento e oprimido, e enquanto Jesse tenta se defender, seu marido sofre um ataque cardíaco e morre. Algemada na cama e sem maneiras de pedir socorro, Jesse embarca em uma situação histérica, desencadeando alucinações conflitantes vindas de diferentes partes de sua personalidade, trazendo à tona traumas passados esquecidos e que justificam todas as dúvidas e questionamentos tanto por parte da personagem quanto por parte do espectador.

Dirigido por Mark Flanagan, diretor que tem construído uma interessante trajetória em filmes como Absentia (2011), O Espelho (Oculus, 2013) e Ouija (2016), aqui o enredo tem tudo aquilo que faz parte de seu estilo, principalmente no conflito entre a realidade e o sobrenatural. E assim como o excelente filme Quarto 1408, de 2007, livremente adaptado de um conto de King por Mikael Håfström, a história também se passa dentro de um quarto, em uma narrativa lenta, igualmente progressiva e que leva a protagonista a confrontar seus mais profundos medos, moral sempre presente nas obras do autor.

A vulnerabilidade de Jesse a obriga tomar decisões radicais que a empoderam como pessoa, como vítima, e como mulher. É então que as metáforas se personificam no filme: o marido tomando a forma da violência; a personalidade da protagonista se fragmentando em dúvidas e respostas; o cachorro que simbolicamente se alimenta vagarosamente das dores da personagem; uma figura misteriosa que representa todas as diversas perversidades oriundas da personalidade masculina dominante; as algemas que mantém Jesse aprisionada a um passado traumatizante; uma corporação que evita o fato se transformar em um escândalo midiático, como a querer novamente calar a personagem e transformar mais um episódio traumatizante de sua vida em algo pueril. Dentre outras...

Infelizmente, apesar de tantas nuances e situações de interpretações livres e mistas, o filme, como um todo, merece atenção, mas sofre por não ter um ritmo coerente, principalmente nos momentos de flashback em que revisitamos o passado de Jesse quando criança. Diferente da maneira extremamente bem construída de Eclipse Total (filme que também se utiliza de flashbacks para desenvolver o arco dramático), aqui a conexão entre o presente e o passado não são feitas da maneira fluida como foi no filme de Taylor Hackford. Os cortes bruscos e a repentina mudança de situações quebra as alucinações e devaneios da personagem junto com toda a atmosfera apreensiva que é muito bem construída em diversas sequências, ao ponto do espectador se encontrar ofegante em várias delas, mas nunca levado a um ápice narrativo de fato. A total ausência de trilha sonora também se torna um tanto incômoda, pois há vários momentos em que ela poderia agir como um excelente elemento para fortalecer os momentos que se enfraquecem sem precisar se sobrepor, e o ritmo oscilar de maneira positiva.

O roteiro também não entra em detalhes sobre a personalidade de Gerald, que no livro tende a ser dominante e agressivo na sua vida profissional, o que justificaria de maneira coerente suas fantasias. E, talvez, para facilitar a narrativa, as alucinações de Jesse e as vozes que ela ouve de uma personalidade que se fragmenta, gira em torno de outras figuras no livro além das diferentes versões dela mesma e de seu marido. Embora no filme haja apenas essas duas figuras, as mesmas acabam atuando como uma junção das demais que foram omitidas. E para aqueles que conhecem as principais obras de King, também é impossível não reparar nas referências diretas existentes a Cujo, Saco de Ossos, ou até Rose Madder.

Na construção, o que mais chama a atenção é o fato dos papéis sexistas se inverterem entre os atores, finalmente. Em um filme qualquer, Carla Gugino dificilmente estaria de camisola, mas sim de lingerie. Mas ao contrário, é Bruce Greenwood quem fica o filme todo de roupa íntima, ator que, aos 61 anos, acabou se tornando o verdadeiro DILF (procure no Google) de muitos comentários por aí. Interessante em uma indústria que tende a sexualizar apenas as mulheres, e algo bastante relevante em um filme cujo tema feminista esteja bastante presente. 

Para um livro que, ao mesmo tempo que é um dos preferidos dos fãs de King, na mesma proporção também é considerado um dos seus livros menos inspirados, o filme tem sido bastante elogiado por aqueles que conhecem a obra original, principalmente porque seus elementos chaves foram mantidos, bem como muitos diálogos. Um roteiro fiel à história, sem mudanças principalmente em sua conclusão, coisas que King sempre reprovou nas adaptações cinematográficas de suas obras. Uma conclusão que, diga-se de passagem, se transforma em uma explicação um pouco mais didática de toda a história para aqueles que provavelmente tiveram dificuldade de compreender suas referências e associações até então, algo que no livro pode vir a calhar depois de 400 páginas, mas que no filme acaba não evitando a sensação de excesso, muito embora a cena final tenha um simbolismo importante ao mostrar que os homens só se sentem poderosos e vitoriosos através da violência e do abuso, e sem isso, se tornam tão pequenos quanto próprio desprezo que esses tipos merecem.

Jogo Perigoso trata de assuntos bastante interessantes que, mesmo se tratando de uma adaptação de uma obra de 1992, por incrível que pareça, estão mais atuais do que nunca. Como um suspense com pitadas de horror, como bem é o estilo de King, consegue ter seus momentos de tensão e até outros bastante indigestos, mas não deixa de ser um filme para os fãs do livro. E para aqueles que não conhecem a obra original, provavelmente ficará difícil compartilharem da mesma opinião. Um filme competente, mas não marcante como poderia.

Add to Flipboard Magazine.