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segunda-feira, 7 de novembro de 2016

DA POLÊMICA À SUA RELEVÂNCIA...

★★★★★★★★★
Título: Aquarius
Ano: 2016
Gênero: Drama, Suspense
Classificação: 16 anos
Direção: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Sonia Braga, Zoraide Coleto, Pedro Queiroz, Maeve Jinkings
País: Brasil, França
Duração: 142 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Aquarius é o nome do condomínio que fica na orla de Boa Viagem, em Recife, onde Clara (Sonia Braga) vive há mais de 35 anos, mas agora se vê em uma disputa com uma grande empreiteira que pretende comprar seu apartamento, o último a ser desocupado, e assim construírem um novo edifício.

O QUE TENHO A DIZER...
A história, dividida em três capítulos, começa com Clara nos seus 30 anos, em 1980. Empolgada para mostrar a seus amigos/parentes um "novo som", uma "nova música". Ela coloca a fita K7 no aparelho do carro para tocar Another One Bites The Dust, do Queen, um dos grandes hits daquele ano, mas que, exatamente naquele momento, ainda era desconhecido por aqui. Isso mostra o engajamento de Clara com a música, sendo desta paixão que irá se firmar como uma reconhecida escritora/jornalista.

Ela volta para seu apartamento, onde um grande número de outros amigos e parentes a aguardam para comemorar um aniversário. Pelo número de crianças que se divertem no quintal, chegamos a pensar que a festa é para alguma delas, mas não. A comemoração é para Tia Lúcia, que completa 70 anos, a qual ganhará um discurso emocionante, onde é citado brevemente suas conquistas profissionais, de como sua participação familiar é importante, e de ter sido perseguida na ditadura por conta de suas inclinações políticas. Tia Lúcia divaga entre memórias, agradece com emoção e brinca dizendo que falaram de tudo, só pularam a época da Revolução Sexual, provavelmente quando conheceu seu falecido amante, quem realmente amou.

Aproveitando o discurso, o marido de Clara fala como os últimos meses foram difíceis, principalmente até ela superar sua doença, o que a deixou "com o cabelinho de Elis Regina", como ele diz. Isso deixa óbvio que a protagonista sobreviveu um câncer, e também que o cabelo que usa não é porque ela segue uma moda, uma tendência, mas por resultado do tratamento.

A importância dessa primeira parte é mostrar ao espectador toda a sólida base familiar que construiu a personalidade igualmente calorosa e liberal de Clara. Tia Lúcia ter citado abertamente a Revolução Sexual, sem haver constrangimento de nenhuma parte, apenas reforça isso. É algo que não mudará com o tempo, embora o ambiente à volta da protagonista se modifique: seu cabelo volte a ser comprido (como devia ser antes da doença); a planta de seu apartamento seja modernizada; os filhos que cresceram, casaram e pouco a visitam; e da vida um tanto solitária que tem, mas que ao invés de lhe trazer incômodo, traz autoconfiança e sossego.

A independência, o vanguardismo, o senso de moral e justiça de Clara são resultados de sua educação, da sua percepção da vida. É na segunda parte que experimentaremos um pouco de seu agradável e muito bem conquistado cotidiano, até que a Bonfim Empreendimentos surja para tentar atrapalhar (ou modificar) tudo isso, trazendo com ela a desconfiança, a apreensão, o conflito, a quebra da pacata e cômoda vida que Clara conquistou com muito custo. E então o medo surge. De que tudo aquilo construído por toda a sua vida seja, literalmente, desmoronado e que nada sobre daquilo além da poeira, tal como também quer dizer aquele sucesso do Queen que ouviu em 1980.

Como Marcelo Hessel escreveu em sua crítica para O Omelete, o horror toma forma do arranha-céu ao lado, o qual a personagem chega a olhar com espanto da rua, e que depois assombra com a branca rede de segurança que despenca pela janela de Clara no meio da noite como um fantasma. A ameaça da mudança forçada trazida pela especulação imobiliária, da ganância empresarial que se funde com a ambição política, a tentativa de interrupção e intromissão da vida alheia, o enraizamento de uma cultura religiosa intrusiva e invasiva. O início do assédio moral, social e psíquico. Tudo isso são os vilões sociais que Kleber constrói e difunde, elementos que a todo momento tentam moldar o indivíduo e transformá-lo parte de uma massa uniforme.

Primeiramente há um cuidado estético fenomenal, a começar pela fotografia e o desenho de produção impecáveis. Quando o filme começa, a impressão que se tem é de realmente assistir uma película dos anos 80. O figurino, a maquiagem, os cabelos, até mesmo a imagem propositalmente saturada e envelhecida nos dão a nítida impressão de, talvez, estar assistindo um filme errado. E então, esteticamente tudo muda, e depois de uns vinte minutos de introdução da história Sonia Braga surge na janela de seu apartamento, radiante depois de 20 anos sem ser protagonista de um filme nacional. Perfeitamente enquadrada, dominante nos longos cabelos pretos, sua marca registrada de décadas e a marca registrada da cultura cinematográfica brasileira.

É emocionante vê-la. Essa exposição proposital no momento em que entra no filme tem absolutamente tudo a ver com a proposta de Kleber Mendonça sobre as diferenças entre a memória, o saudosismo e a nostalgia. Para o espectador, ver Sonia pode soar nostálgico, mas para Kleber, colocá-la em cena é atualizar uma memória, é ser saudosista com com seus trabalhos anteriores para valorizá-la neste presente. A construção e, ao mesmo tempo, o resultado que Aquarius é de tudo isso. E é dessa forma como Clara vive sua vida. Há o saudosismo, mas sem vazão à nostalgia. A construção dia após dia de algo que possa ser preservado no futuro. Não é ser a favor ou não da tecnologia, ou do MP3, mas é ter a garantia de que aquilo tenha uma história, uma razão para existir e acontecer, como o LP de John Lennon que ela mostra. Qual o legado a ser deixado por tudo isso?

Mas ainda sim a nostalgia é sentida, mesmo que perdida em algum espaço, encoberta em algum momento. É a função da música na vida de Clara. A nostalgia é seu momento íntimo, o link da sua relação com o passado, aquilo que a faz reviver as sensações. A história que aquela lembrança fonográfica lhe trás, assim como a história que acompanha a cômoda de Tia Lúcia, mas que apenas e somente Tia Lúcia conhecia. É o olhar de Clara à namorada de seu sobrinho, o (talvez) vislumbre da adolescência que um dia teve.

Não há imediatismo na história. Kleber não tem pressa em construí-la e nos imergir. Ele quer que tenhamos conhecimento de quem são as pessoas daquele filme, quer que conheçamos suas histórias, nem que seja a mais coadjuvante delas, como a advogada de Clara, que é apresentada como "advogada e amiga". O ênfase dado em "amiga" poderia ter ficado de fora, não faria diferença numa observação superficial. Mas dentro do contexto do filme, existe uma importância para Clara fazer isso, pois sua amiga faz parte da sua vida. Os vínculos possuem histórias, e isso tudo é explorado desde o mais simples objeto até o protagonismo da personagem. Não existe ponto sem nó, tudo é milimetricamente construído para um propósito específico. Linear e simples, mas que demonstra a devoção da protagonista pelo tempo e por tudo aquilo que ele oferece.

É quando já estamos bastante íntimos da personagem e de seu cotidiano que aquele pedaço de vida tem uma reviravolta. A ambientação leve dá lugar a uma tensão no ar, e o suspense passa a tomar conta na dúvida do que é que vai acontecer, qual é a próxima ameaça social na qual Clara estará sujeita por simplesmente querer ser respeitada e ter sua vontade preservada, como seria de seu direito.

Sim, há uma crítica social e política no contexto. Só enxerga quem quiser ver. Para aqueles que não se importarem com isso, de qualquer forma perceberão como o roteiro reproduz mesmo assim o cotidiano e seus problemas. Podem não acontecer diretamente, mas nos afetam de alguma forma porque permeam nosso redor: da vizinhança que se altera, das casas que se modificam, de terrenos que se multiplicam, edifícios que substituem a memória do que tínhamos; pessoas que crescem e não mais reconhecemos; atitudes que se empobrecem; o sentimento de incompetência, impotência e vulnerabilidade vinda do abuso do poder.

A polêmica na qual o filme se envolveu parte de um grande equívoco que ironicamente e sem querer acabou tendo total contexto com o filme, já que ele também nos questiona até onde vai a subordinação das pessoas pelo poder. A situação polêmica do filme reproduz exatamente a desinformação, a desvirtuação e a transferência de culpas que atualmente a sociedade brasileira tem vivido, consequência da polarização de idéias.

Pode até haver uma metáfora em resultado de uma mera coincidência. Mera coincidência porque sua produção foi iniciada antes da forte crise política de 2015/16. A mais importante associação que possa ser feita entre o filme com o cenário político vivido é o incessante assédio sofrido pela protagonista por todos os lados, desde a pressão do engenheiro até a escada social toda defecada. Por ser uma mulher sexagenária, taxada como louca, pressionada pela empreiteira e pelos ex-vizinhos que reinvidicam suas porcentagens do imóvel que não pode ser recebido enquanto ela não desocupar o apartamento. Não que tudo isso seja uma coincidência específica com o momento político, mas é uma recorrência do que é visto acontecer com as mulheres independentes e sociopoliticamente ativas na sociedade machista. São pressionadas, minimizadas e ridicularizadas até sua total desmoralização.

É o que acontece com Clara quando pergunta a seus filhos se eles já sentiram as pessoas considerá-los loucos mesmo sabendo que não estão loucos, mas acabando se sentindo loucos de tanto que os outros os taxam de loucos. Parece redundante, mas é o sentimento desmoralizante, o pânico crescente resultante da desumanização que estamos sujeitos a sofrer. É o que acontece no cenário social e político brasileiro, é o que está acontecendo no cenário social e político norteamericano, é o que acontece na sociedade e na política, no passado ou no presente. Além de podermos associar a substituição do condomínio de Clara por outro presumidamente mais "seguro" e "confiável", corporativista, agregador do poder. É a venda de que o novo é sempre melhor, a coisificação do objeto, a agregação do valor a algo banal apenas para preservar um status, uma qualidade de vida ilusória. É o que acontece na sua cidade, no seu bairro, no condomínio vizinho. É o que está acontecendo no país, seja o nosso, seja o dos outros.

Mais do que uma coincidência com fatos políticos, é uma coincidência social que se repete aqui e em qualquer lugar do mundo. Kleber Mendonça pode nem ter escrito o roteiro pensando propositalmente nesses detalhes, mas por conta desses padrões repetitivos. Um visionarismo condicionado neles, inconsciente.

O fato da direita conservadora brasileira ter criticado negativamente o filme por conta do ativismo político do diretor e do elenco em Cannes, inventando associações esquerdistas ao filme, é de um despropósito inquestionável. As ofensas dirigidas gratuitamente a Sonia Braga é uma ofensa direta a um patrimônio da cultura nacional, ao que ela representa como pessoa, como profissional e figura pública. Como dito, é o irônico equívoco consequente da desinformação, da opinião deturpada de pessoas que sequer o assistiram e mesmo assim o taxaram de diversas coisas, como "filme comunista" ou "filme socialista", sendo que, em absoluto, é nada disso. É até vergonhoso ler comentários que se prestam a dizer qualquer coisa sobre ele, menos do que ele realmente seja.

E sem dúvida houve uma perseguição política ao filme, não pelo que ele explora, mas para retaliar as pessoas envolvidas nele que se manifestaram contra o governo substituto: O Ministro da Cultura se pronunciou contra o diretor; a classificação etária de 18 anos foi dada para fortalecer o boicote (posteriormente reduzida para 16 anos); mesmo com a excelente receptividade da crítica estrangeira, ele não foi selecionado para representar o Brasil no Oscar e, em consequência de tudo isso, sumiu tão rápido como se destacou. Emudeceram um dos filmes mais originais e relevante que surgiram nos últimos anos, sem qualquer razão. Um filme que se coloca no mesmo patamar de qualidade e multi-interpretação de Que Horas Ela Volta? (2015).

A sorte que temos é que nada no cinema morre, só tende a ser fortificado com o tempo. E repetindo o que li recentemente sobre ele, ignorando qualquer controvérsia política envolvendo o filme, o que sobra é uma história fantástica, com um intenso final libertador a Clara, que pode não resolver seu problema, mas como ela mesma afirma, só de dar um mínimo de dor de cabeça já satisfaz.

Mesmo sendo uma co-produção da Globo Filmes, é em produção como essa que notamos a presença, importância e empenho do diretor, é algo que podemos assistir e afirmar com categoria o que é um cinema de classe, com relevância e qualidade, mais espontâneo e natural. É o "estilo Sonia Braga" que se destaca e deveria ser referência a qualquer um. Sônia mesmo já afirmou humildemente que não é uma atriz, mas uma ferramenta do diretor, pois não consegue interpretar roteiros, mas faz o que ele manda. Ela compreende o contexto e improvisa em cima daquilo na medida do possível. É daí que vem sua espontaneidade e ver em Clara uma pessoa comum de verdade, defendida com honestidade e caráter, o exemplo daquele brasileiro antes de se esquecer quem realmente é.

CONCLUSÃO...
A discussão social do filme e da posição que os indivíduos se colocam em uma sociedade é forte. A discussão política é implícita, discreta. Exerga quem quer, e é metafórica para quem quiser que seja, sendo assim um filme bastante subjetivo, podendo ser visto da forma que lhe melhor agradar. Um filme que, acima de tudo, nos mostra que moral, ética e educação vem de bases familiares, e através delas que deixamos nosso legado, valores acima de qualquer cifrão ou de qualquer universidade estrangeira. É ser Clara.

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