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segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O HUMOR NEGRO (SEM HUMOR) DE SOLONDZ...

★★★★★★★
Título: Wiener-Dog
Ano: 2016
Gênero: Drama, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Todd Solondz
Elenco: Tracy Letts, Julie Delpy, Greta Gerwig, Kieran Culkin, Danny DeVito, Ellen Burstyn
País: Estados Unidos
Duração: 88 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um cachorro é o personagem principal de quatro histórias sobre quatro personagens.

O QUE TENHO A DIZER...
Para quem acompanha a carreira de Solondz desde seu primeiro filme, já conhece o estilo do diretor de trás pra frente. Embora ele aborde sempre os mesmos temas, esses são tão complexos que seus filmes nunca se repetem da mesma forma. Bastante fora do circuito comum, esse norteamericano faz parte do pequenino grupo de diretores autorais e independentes que nadam contra a maré hollywoodiana.

É um pequeno gênio do cinema alternativo, cuja narrativa sempre tende a ser mais artística, introspectiva, que lida com os mais diversos temores humanos e suas complexidades. E como não há nada espetaculoso, acaba sendo ignorado. Como já escrevi em uma outra análise, Solondz brinca com o humor negro todo o tempo para aliviar o peso dos complexos temas dramáticos, dando o balanço exato e necessário para que verdadeiras discussões sobre a vida - muitas vezes pesadas - se transformem em algo comum como um café da manhã.

O diretor nunca teve uma grande evolução ao longo de seus filmes, no sentido de explorar outros espaços e situações. Ele sempre se manteve fiel às discussões humanas, na relação entre eles e como os conflitos se desencadeiam em efeitos borboleta. Ou seja, pequenos atos que dão origem a grandes ou trágicas conclusões.

Pois é. A impressão que se tem quando se fala dele é que seus filmes sejam tão densos ao ponto do insuportável. Mas não. Há uma delicadeza nata, uma naturalidade que muitas vezes nos impede de ver além do óbvio pela forma simplista como ele condensa tudo. Suas histórias e personagens demandam atenção e cuidado, pois realmente são criados e lapidados com muito detalhe. Quando algum de seus filmes acaba, a sensação que se tem a princípio é de uma breve catatonia, e então o tapa na cara é sentido com certo retardo.

Em Wiener-Dog isso não seria diferente, principalmente depois de dois grandes filmes que foram Dark Horse (2011) e A Vida Durante A Guerra (Life During Wartime, 2009). Nessa antologia o personagem principal é um cão Basset (ou Dashshund), que irá vagar por quatro histórias muito distintas. Com excessão das duas primeiras, as duas últimas não parecem ter uma conexão direta, e de fato não sabemos se o cachorro é o mesmo, que passou de dono em dono, ou se são cachorros distintos. Talvez esse seja o ponto negativo de uma narrativa que teria sido muito mais impactante e coesa se a conexão fosse mais óbvia como é nas duas primeiras partes, justamente por conta da conclusão que o filme tem, o qual foi responsável por algumas vaias recebidas no festival de Sundance.

O cachorro nada mais é na história do que um substituto daquilo que os personagens tem ausência, seja amor, companheirismo, ou de um simples adorno de mesa, e como são moldados por seus donos para conceder essas satisfações. A amargura, a displicência, a infelicidade e, acima de tudo, a solidão, são as discussões corriqueiras de Solondz e nessas histórias, havendo até tempo para um final feliz na única delas que foge da tragédia das demais, que por um breve momento nos faz sorrir e acreditar que o mundo nos reserva coisas inesperadas em meio a tanta negatividade e agressividade do ambiente que vivemos.

A primeira história já começa na crueldade Solondz de ser, sobre um casal rico e infeliz, que superou a doença terminal do filho único. O pai (Tracy Letts) explica ao filho o motivo de deixar o cachorro preso, e assim domesticá-lo para que ele passe a agir como um humano, mesmo que ele, em sua natureza, ainda tenha que ser levado para fora para fazer suas necessidades. É o contraditório e o antinatural. Acontece que a inocência do garoto o impede de compreender certas distinções, levando algumas das explicações na total literalidade infantil ao ponto de quase matar o animal ao dar a ele um pequeno pedaço de uma barra de cereais. A falta de tato dos pais se intensifica nas vezes em que a mãe (Julie Delpy) tenta intervir no relacionamento do seu filho com o cão. A forma como ela assim faz pode parecer até absurda e engraçada na atmosfera tragicômica criada, mas é a essência da crueldade propriamente dita, uma afronta à imatura intelectualidade do garoto. A domesticalização humana. 

O cachorro, por fim, vai parar nas mãos de Dawn Wiener (Greta Gerwig), a devastadora personagem do seu segundo longa, a qual era constantemente assediada na escola, apelidada de Salsichona (o "wiener-dog" do título, ou "cachorro salsicha"), e que agora, já adulta, trabalha como auxiliar veterinária. Irônico como apenas Solondz poderia ser.

Na visão do diretor, agora adulta, é como se a personagem tivesse personificado todo o trauma infantil e se transformado naquilo que as pessoas fizeram-na acreditar ser por toda a vida. Não é à toa que, ao ver o cachorro prestes a ser sacrificado, o seu lado ingênuo, o mesmo de quando era criança, despertam. Ela foge da clínica com o animal, se identifica com a solidão dele, e o batiza de Sujinho (ou algo assim), por conta da aparência que ele tinha quando chegou em suas mãos. É Dawn reproduzindo no animal o que fizeram com ela na infância, tal qual ela fazia com sua irmã mais nova em seu próprio longa. Somos nós reproduzindo a crueldade alheia naqueles que consideramos mais fracos.

Duas semanas depois ela reencontra Brandon (Kieran Culkin), um antigo colega de escola que a molestou e por quem acabou apaixonada, já que aquilo foi para ela a primeira experiência sexual que teve. Ao reencontrá-la ele a chama pelo apelido nada carinhoso de infância, mas ela já está tão condicionada ao tratamento que não mais se importa com isso. Ela virou aquilo.

A principio ele a trata com o mesmo desprezo de antes, enquanto ela outra vez se humilha para tentar ganhar sua atenção. É Solondz sendo provocativo outra vez, como querendo dizer que os anos passam, as pessoas se esquecem do passado, mas a essência continua a mesma, como aquela máxima que diz "quem bate esquece, quem apanha nunca esquece". A dureza do diretor, junto ao seu tom de humor trazem aquele sabor um tanto amargo quando Brandon, brincando com o animal, diz que os cachorros o adoram. Dawn nem se atenta ao fato de que ela era apaixonada por um rapaz que a tratava como um cachorro e que a xingava de cachorro. Ele também nem se atenta ao fato de que ela corria atrás dele como tal. Uma atitude passivo agressiva inconsciente dele, mas nós, espectadores, aqueles que já conhecem o passado de Dawn em Bem-Vindo À Casa de Bonecas (Welcome To Dollhouse, 1995), entenderá a referência e engolirá a seco.

Detalhar sobre essa história em específico é uma obrigação, pois Dawn é a única personagem que tem uma continuidade neste filme, e da qual temos conhecimento de sua bagagem atormentada, de uma infância desajustada e indesejada, de um filme cruel e ao mesmo tempo humano que foi esquecido com o tempo. Deve ser por isso que Solondz resgatou essa personagem que é a referência principal desse longa, talvez para finalmente libertá-la da eternidade trágica que o cinema lhe concedeu, e 20 anos depois concluir uma série de infortúnios de maneira muito honesta, mesmo que breve, seja para ela ou para os espectadores que a conhecem. Uma conclusão sincera e delicada em sua forma, mostrando que depois da tempestade vem a calmaria. Uma história curta, mas cheia de referências diretas e indiretas para aqueles que assistiram seu filme. Uma pena Heather Mattarazzo ter recusado reviver a personagem, mas Greta Gerwig consegue impersonar, mesmo que à sua forma, a essência cativante de Dawn.

A terceira e quarta história se assemelham pela solidão que os personagens se encontram, mesmo que por diferentes motivos. Temos um professor da faculdade de cinema, que é um roteirista fracassado no qual seus alunos o desprezam pela sua sua peculiar falta de talento e didática. É uma breve participação de Danny DeVito, mas tão consistente e marcante que a vida de seu personagem se torna dolorosa além da tela. E enquanto ele brilha com sua expressividade dramática, Ellen Burstin brilha intensamente na última história por justamente fazer o contrário, estar contida do início ao fim, enclausurada numa amargura que a vida lhe colocou.

E seguindo essa narrativa slice-of-life, os pedaços da vida desses personagens tem, em sua linha guia, uma cronologia óbvia ao longo das quatro curtas histórias: da infância, ao fim da vida; da perda da inocência, até a redenção sobre as consequências que isso traz, ao mesmo tempo que tudo isso mostra ser um ciclo do qual as gerações não estarão imunes. Solondz se referencia o tempo todo, como analisar sua própria trajetória. É um filme com teores existencialistas, como são todos seus filmes, mas que nunca perde o foco da realidade, nos fazendo encontrar os pontos positivos nos momentos mais negativos, e assim aprendermos algo com eles.

CONCLUSÃO...
Como dito, para aqueles que conhecem o trabalho de Solondz, Wiener-Dog é mais um ponto de vista excruciante da diversidade humana e dos problemas que nos atormentam. Não é tão brilhante quanto seus filmes anteriores, mas ainda consegue ter seu impacto, e por que não, sua beleza.

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