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domingo, 28 de junho de 2015

O QUE ACONTECEU?

★★★★★★★★
Título: What Happened, Miss Simone?
Ano: 2015
Gênero: Documentário, Biografia
Classificação: 12 anos
Direção: Liz Garbus
País: Estados Unidos
Duração: 101 min.

SOBRE O QUE É O DOCUMENTÁRIO?
Nina Simone sempre teve uma história conturbada de fama, sucesso, polêmicas, ativismo, decadência, retiro e ressurgimento. Foi a voz de um povo, e usou seu sucesso para isso, até que ele se voltou contra ela.

O QUE TENHO A DIZER...
Definitivamente, para compreender a arte de Nina Simone é necessário conhecer sua história. E é isso que este documentário lançado na Netflix no dia 26 de Junho faz com êxito, de forma bastante surpreendente e emocionante.

O arquivo videográfico é vasto, ao ponto de utilizarem Miss Simone como a própria narradora de sua história através de entrevistas antológicas resgatadas, inseridas em imagens que registraram todas suas mais importantes fases, incluindo sua infância. E os depoimentos de sua filha, de seu ex-marido (através de registros, já que faleceu em 2012), bem como de seus amigos ainda vivos, servem para complementar aquilo que apenas especulava-se sobre sua persona. Se Nina não tivesse morrido, era bem possível acreditar que o documentário havia sido produzido com sua consulta, de tão latente que é sua presença. A artista é a grande estrela de todo o documentário, não pelo óbvio motivo de ser um material sobre ela, mas porque sua biografia é montada de maneira intimista, por pontos de vista pessoais que esclarecem uma personalidade complexa e temperamental, mas ainda coerente dentro de suas experiências e percepções, responsáveis por toda sua sólida expressão artística.

"Eu escolhi refletir o tempo e as situações em que me encontro. Para mim, essa é minha obrigação. E nesse momento crucial da nossa vida, quando tudo é tão desesperador, quando todo dia é uma batalha pela sobrevivência, não tem como não se envolver."

Ao contrário de ser um material que questione sua personalidade ou as diferentes condutas contraventoras que teve durante as décadas de 60 e 70, o documentário apenas afirma o posicionamento que ela teve sobre a arte e sua importância na sociedade, e como isso foi importante e ao mesmo tempo autodestrutivo para sua carreira e vida pessoal. O palco para Nina era o lugar onde ela não tinha medo, e para ela, por definição, "não ter medo é se sentir livre". Essa falta de medo, o excesso de liberdade, era sentido nas notas e nos dedos que voavam sobre o piano com precisão clássica, mas sem sê-lo.

Nina foi ter uma percepção muito tardia das diferenças raciais e o abuso sofrido pelos negros por ter crescido em uma comunidade onde não se falava sobre isso. Seu questionamento sobre as diferenças raciais e sociais só foi acontecer depois dos 20 anos de idade, quando foi recusada por um conservatório na Filadélfia sem nenhum motivo óbvio, já que sua audição para uma vaga havia sido elogiada, e isso a fez acreditar que a razão principal era sua cor. Posteriormente a isso ela se mudou para Nova York, onde pagou seus estudos ganhando US$90 por noite em um bar. O dono do estabelecimento obrigou que ela também cantasse caso quisesse manter o emprego, algo que ela também nunca tinha feito até então. Por conta deste trabalho, adotou seu nome artístico, e não demorou para que a voz de contralto, junto com o tom clássico introduzido nas músicas que performava, chamasse a atenção de clientes que se tornaram uma base sólida de fãs.

A partir de então sua carreira teve uma ascenção muito rápida, principalmente depois do casamento com Andrew Straud, que também foi seu empresário. O rápido sucesso a deixou financeiramente estável em um curto espaço de tempo, o que contribuiu para que não sofresse tantas consequências negativas por ser negra e mulher na década de 60.

Mas então, o que aconteceu, Miss Simone?

A constante pressão sofrida por seu marido e empresário começaram a fazer Nina perder as razões e motivos de ser uma artista. Os discos eram gravados em cima de repertórios montados pela própria gravadora, e seu trabalho começou a tomar um rumo comercial demais do que aquilo que ela almejava. A estafa se transformou em depressão, fazendo-a perder o interesse e consequentemente a razão de fazer música. Também sofria violência doméstica, abafada por ela mesma. Sempre acreditava que depois da última surra tudo seria diferente, e pensava assim por amor ao seu marido. Mas nada mudava, ao ponto de ela mesma acreditar que gostava disso.

Foi com o movimento dos direitos civis, de 1964 até 1974, que a grande reviravolta em sua carreira aconteceu. A falta de objetivos a fez encontrar nele não apenas algo que pudesse fazer parte, mas co também abriu seus olhos para o mundo e para o que as pessoas de sua raça passavam. Ela canalizou todos seus esforços nisso, como que para compensar o vazio que a consumiu no passar dos anos.

"Como ser artista e não refletir uma época? Para mim, os negros são as criaturas mais lindas do mundo. Então, minha função é torná-los mais curiosos sobre suas origens, suas identidades e se orgulharem disso. É por isso que tento fazer minhas canções as mais fortes possível, principalmente para fazer os negros terem curiosidade em si mesmos."

Seus repertórios sempre foram cheios de referências ao amor, à cultura afro americana e cantigas espirituais ou folclóricas que ouvia quando criança, herdadas de seus antepassados. No decorrer de sua carreira temas feministas também entraram no repertório, e foi com o engajamento no ativismo social que as raízes africanas se aprofundaram para confrontar aqueles que se opunham aos direitos civis igualitários, e trazer o interesse de seu próprio povo à sua cultura.

"Eu sempre acreditei que abalava as pessoas, mas agora quero investir mais nisso. Quero fazer de modo mais deliberado e frio. Quero abalar tanto as pessoas que quando saírem de onde eu tiver apresentado, eu só quero que elas estejam em pedaços. Quero entrar nesse covil das pessoas elegantes, com suas idéias velhas, presunçosas, e enlouquecê-las."

Após o assassinato do ativista Medgar Wiley Evers e do atentado à bomba em Birmingham, que matou quatro crianças negras, Nina respondeu a isso com a música Mississipi Goddamn, lançada em 1964. A música teve péssima repercussão na mídia, sendo boicotada pelas principais rádios norte-americanas que enviavam os LPs quebrados ao endereço da artista em resposta ao "péssimo gosto", já que a mesma ironizava pesadamente a forma como os negros eram tratados no Mississipi, um dos últimos estados a adotar leis igualitárias no Estados Unidos. A música veio a ser um grito libertário do movimento, bem como To Be Young, Gifted and Black, feita em homenagem a sua amiga e ativista Lorraine Hansberry, se transformou em um hino. E nada a impediu de participar de diversos encontros, incluindo sua participação na marcha de Selma a Montgomery, liderada por Luther King, em 1965.

Miss Simone fez de sua música uma arma, e da sua influência e imagem ferramentas para expressar ideais e reforçar a cultura negra. Do palco ela fez um palanque e descobriu que sua voz podia representar o grito de seu povo. Ao contrário do que o movimento pacífico liderado por Luther King promovia, ela acreditava que atos violentos deveriam ser combatidos da mesma forma, além de ser a favor de um estado separatista. O documentário, bem como os registros, mostram isso muito bem e de forma bastante clara.

"Era arrebatador participar daquele movimento naquela época porque eu era necessária. Eu podia cantar para ajudar meu povo, e esse virou o esteio da minha vida. Nem piano clássico, nem música classica ou mesmo música popular, mas a música dos direitos civis. Pude conhecer Martin Luther King, Malcom X, Andrew Young, e artistas, atores, atrizes, poetas, escritores, pessoas como eu que se sentiam compelidas a tomar uma posição como a minha."

Não demorou muito para que a cantora passasse a ser boicotada. E mesmo vendendo muitos álbuns, ninguém mais queria contratar seus shows no medo deles se tornarem discursos sociopolíticos. O público não queria isso, até mesmo porque Nina possuia muitos fãs brancos. A indústria fonográfica tentou manipular a situação como podia, aliviando o tema nos repertórios, embora em alguns álbuns eles ainda se mantiveram fortes, como em High Priestess Of Soul (1967), Silk & Soul (1967), Nuff Said! (1968) e Black Gold (1970), mas essas informações não estão no filme, o que é uma pena para quem não conhece suas músicas.

Cansada dos maus tratos sofridos pelo marido, da violência que seu povo sofria nas ruas diariamente, do seu constante desgosto frente a política de seu país, e após a morte de diversos líderes ativistas e amigos, incluindo o próprio Luther King, Nina se exilou em Barbados, onde, convencida por Miriam Makeba, se mudou para a Libéria e lá viveu em reclusão por 8 anos.

Uma pena que o documentário tomou uma narrativa que leva a crer que toda sua trajetória tenha sido baseada apenas no ativismo sobre os direitos civis, quando Simone também se tornou uma figura feminista bastante forte. Nina também confrontou o Governo norte americano ao se recusar a pagar os impostos em protesto à guerra do Vietnã, gravando o álbum Emergency Ward! (1972) em resposta a isso. Seu auto exílio em Barbados foi para evitar os processos e a eventual prisão por conta do boicote aos impostos. O período em que viveu nesse país, o caso que teve com o primeiro ministro Errol Barrow e sua amizade com Miriam Makeba também nem foram citados, como se a artista tivesse feito uma ponte direta dos Estados Unidos para a Libéria. Ao contrário do que o filme dá a entender, Nina continuou fazendo pequenos shows pela Europa durante o tempo que morou na Suíça e na França, ao invés de simplesmente desaparecer do cenário. Essa superficialidade nos últimos 15 minutos sobre sua última década de vida infelizmente só faz com que o documentário termine em uma narrativa linear, aliviando e omitindo atitudes da artista como que poupar tempo e a audiência de uma personalidade tão forte como a dela, que chegou a dar um tiro em um empresário da indústria fonográfica pelo roubo de milhões de dólares em royalties de suas músicas. "Tentei matá-lo, mas errei", como ela mesma chegou a afirmar.

Sabe-se que Nina Simone fez diversas e memoráveis apresentações pelo mundo depois que iniciou seu tratamento contra a depressão e bipolaridade, e isso não apenas trouxe consequências positivas no controle dos disturbios como também foi uma das fases mais libertadoras da artista, quando a raiva já estava controlada e a música voltou a ser um prazer. Até mesmo sua receptividade com o público chamou a atenção de diversas pessoas que tinham conhecimento de seus rompantes nervosos e intolerância, e de um humor que aos poucos retornou à sua forma antes de todo o caos ter início. Não teria sido nada mal se o documentário tivesse mostrado um pouco mais disso.

Considerada uma das maiores e mais polêmicas artistas do mundo, Nina é mais do que uma diva do Jazz, ou do Soul, até porque ela nunca se limitou a esses estilos, mas uma mulher que acreditou na sua voz e que seu trabalho tinha relevância social. Para ela, a função do artista é ter uma causa que acredite, e trabalhar por ela. Quando sua filha diz que sua mãe é uma das maiores performers que o mundo já conheceu, ela não mente sobre isso. O dom que Nina tinha em transformar a sua voz em um instrumento de emoções é algo que impacta até mesmo quem não conhece sua história ou suas músicas. A facilidade nata em atingir os sentimentos mais finos ao ponto de imergir o ouvinte em sua música sem ele perceber é o que faz qualquer pessoa parar para ouví-la, onde quer que esteja tocando. 

Desde suas canções românticas, de apelo feminista, até as ativistas que explicitavam as diferenças e dificuldades raciais, como quando canta Mississipi Godamn no Festival de Musica de Westbury três dias depois da morte de Luther King, com a voz desbotada, engasgada pela dor da morte do "Rei do Amor" (como ela o chamava), são todas performances memoráveis e inesquecíveis de uma artista que, mais do que o racismo ou o machismo, ela sofreu por cantar alto demais aquilo que as pessoas evitavam ouvir.

CONCLUSÃO...
Talvez o único material sobre a artista a colocá-la literalmente no centro da história, tendo ela mesma como a própria narradora em uma articulação muito bem feita entre o vasto arquivo de imagem e som. Episódios que ligam melhor as histórias, principalmente no período em que deixou os Estados Unidos para se exilar em Barbados antes de buscar a reclusão na Libéria, também foram fatos importantes na trajetória, mas que não foram sequer citados, o que dá uma impressão bastante superficial de sua vida durante os anos que viveu na África. Isso deixa a narrativa mais linear e fácil, mas ao mesmo tempo poupa o espectador de maiores detalhes. Mesmo assim consegue ser um material consistente e emocionante sobre uma das maiores vozes da história, e uma excelente introdução à sua história para aqueles que pouco (ou nada) sabiam sobre ela.

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