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segunda-feira, 29 de junho de 2015

GÊNERO E ORIENTAÇÃO...

★★★★★★
Título: Uma Nova Amiga (Une Nouvelle Amie)
Ano: 2014
Gênero: Comédia, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: François Ozon
Elenco: Romain Duris, Anaïs Demoustier, Raphaël Personnaz, Isild Le Besco
País: França
Duração: 108

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma mulher descobre segredos do marido de sua melhor amiga, a qual faleceu recentemente.

O QUE TENHO A DIZER...
É importante começar dizendo que o filme não é um suspense, como tem sido promovido. O trailer erroneamente chega a informar que há um leve hitchockianismo na história, o que está longe de ser verdade. O trailer constrói essa atmosfera um tanto Brian De Palma em Dublê de Corpo (Body Double, 1984) para vender um assunto delicado e bastante subversivo, o que não aconteceria com facilidade se feito de maneira convencional e dentro do que o filme realmente propõe.

A história é sobre Claire (Anaïs Demoustier) que perde sua grande amiga de infância, Laura (Isild Le Besco), deixando seu marido, David (Romain Duris), e uma criança. É difícil para Claire aceitar a morte de Laura, pois foram inseparáveis durante toda sua vida. Rever David a faz relembrar com nostalgia da perda, o que é sempre doloroso, e por isso se mantém distante. Em um belo dia, para compensar seu relapso, resolve fazer uma visita surpresa a David e sua filha. Mas é ela quem fica supreendida ao vê-lo vestido de mulher.

Então o grande segredo do filme é esse, David é um cross dresser. E isso não é uma revelação que realmente estrague qualquer surpresa, porque esse suspense é algo que apenas o material promocional cria sem fundamento.

Em um tempo em que a mídia tem dado muita atenção a personalidades que tem assumido publicamente suas identidades e seus gêneros (como no Brasil, com o cartunista Laerte, ou nos Estados Unidos, com o ex-atleta Bruce Jenner/Caitlyn Jenner), esse filme consegue abordar o tema de forma bastante correta, e ousado por discutir sobre as diferenças entre fetiche, gênero e orientação sem pieguices.

No momento em que Claire descobre "o grande segredo" de David, o mesmo acredita ter apenas o fetiche em se caracterizar de mulher, o que o definiria unicamente como um cross dresser. Porém o desenvolvimento do personagem mostra sua grande realização quando caracterizado e até sua vontade de mudar de cidade para iniciar uma nova vida como Virginia, seu alter ego batizado pela própria Claire. Isso coloca em dúvida se o que o personagem tem realmente é um fetiche ou um conflito de gênero, que é uma pessoa não se sentir como fisicamente o sexo a define. Isso não afeta a sua heterossexualidade, tanto que o personagem mesmo afirma nunca ter tido relações com nenhum homem pois não sente atração pelo mesmo sexo. É quando a discussão sobre a orientação e o fetiche se foca em Claire, que mostra possuir uma certa bissexualidade com uma tendência bastante forte ao lesbianismo e até um certo prazer sexual no cross dressing em momentos muito importantes do filme, como quando passa o batom em seu marido e diz achar sexy, quando está na boate, ou quando efetivamente há um contato mais sexual entre ela e Virgínia.

Essa miscelânea de diferentes situações, sensações, prazeres, fetiches e identidades pode deixar muita gente confusa e incômoda. Mas mais do que o espectador, são os personagens quem ficam por eles também não saberem lidar com tudo isso dentro do contexto sociocultural que estão inseridos, e as informações vão encontrando seus lugares à medida que eles colocam seus preconceitos de lado e se abrem para conhecerem aquilo que até então desconheciam. Descobrem, então, que nada é diferente além dos sentimentos e da essência de cada um, que tudo era simplesmente um bloqueio definido pela própria cultura social ortodoxa e conservadora que impedem as aceitações e a evolução social.

O filme é baseado no livro The New Girlfriend, da inglesa Ruth Rendell, originalmente publicado em 1985. A adaptação francesa, escrita e dirigida por François Ozon, consegue abordar essas complexidades de maneira bastante discreta, sem apelar nas caricaturas, tanto que os próprios personagens se desenvolvem de forma a evitar isso, como na evolução que Virginia tem no seu estilo e comportamento no decorrer da história. Não chega a ter uma sutileza de Almodóvar, sendo uma dramédia que não pende em demasia para nenhum dos lados, faltando uma essência que realmente nos faça apaixonar pela história. Até a fotografia, que nos primeiros minutos chega a ser deslumbrante em enquadramentos perfeitos, deixa a desejar depois disso. Mas ainda sim é um belo material que aborda temas incomuns com bastante articulação e honestidade, e força o espectador a se livrar de preconceitos para compreender a existência dessas diferenças que devem ser respeitadas da mesma forma que respeitamos aquilo que conhecemos.

CONCLUSÃO...
François Ozon foi corajoso ao abordar tantas complexidades sexuais e de identidade de forma até pragmática, mas ao mesmo tempo sofre ao direcionar o filme entre a comédia e o drama, não oferecendo com efetividade nenhum dos dois. Nem por isso chega a ser um filme superficial, mas falta uma essência evolutiva, um crescente que realmente mantenha desperto o interesse por ele ou pelos personagens. Mas as discussões propostas são relevantes e bastante atuais, propondo pontos de vista diferentes do que aqueles que temos do nosso cotidiano.

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