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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O XEQUE MATE DE CRONEMBERG...

★★★★★★★★
Título: eXistenZ
Ano: 1999
Gênero: Ação, Suspense, Comédia
Classificação: 16 anos
Direção: David Cronemberg
Elenco: Jennifer Jason Leigh, Jude Law, Willen Dafoe, Iam Holm, Sarah Polley
País: Canadá, Inglaterra
Duração: 97 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma importante projetista de jogos de realidade virtual organica passa a ser perseguida por um grupo de fundamentalistas contrários à biotecnologia utilizada e a deformação da realidade. Durante sua fuga, a única cópia de seu mais recente jogo, chamado eXistenZ, pode ter sido danificado. Para descobrir isso, ela deverá se conectar a ele e jogá-lo para descobrir se algum dano em sua programação tenha ocorrido.

O QUE TENHO A DIZER...
Ao longo de sua carreira, David Cronemberg deixou evidente sua fixação sobre a relação dos homens com a tecnologia numa proporção equivalente ao próprio avanço dela mesma. Isso se tornou praticamente uma obsessão por conta da frequência com que ela é tratada em seus filmes, seja diretamente, como acontece aqui, ou em Videodrome (1983), ou em A Mosca (The Fly, 1986), como também até em outros títulos onde o tema foi abordado indiretamente, como no seu mais recente Cosmopolis (2012).

Portanto, a tecnologia como um assunto corriqueiro e cotidiano não é apenas uma regra como parte de seu estilo, como uma preocupação pandêmica. Raramente, entre um filme com uma abordagem diferenciada ou outra, como Marcas da Violência (A History Of Violence, 2005) ou Senhores do Crime (Eastern Promises, 2007), acaba não havendo espaço para isso, mas não significa que ele tenha esquecido.

eXistenZ surgiu numa época muito propícia e de transição para o novo milênio. Realmente um período onde eram debates mundiais questões sobre a tecnologia, os computadores, a internet, o "boom do milênio", a transformação dos jogos eletrônicos em grandes centros de entretenimento, as realidades virtuais e até que ponto o homem estaria disposto a transformar a tecnologia em uma extensão do seu prazer. Acreditava-se na época que a realidade virtual estava mais próxima do que imaginavam, e algo que também assombrava muita gente por ser um mundo completamente desconhecido. Um tema sempre discutido no cinema, seja em Tron (1982), O Passageiro do Futuro (The Lawnmower Man, 1992), Matrix (1999), O 13º Andar (The 13th Floor, 1999), dentre diversos outros que não me lembro agora.

Das discussões recorrentes nos filmes do diretor canadense, ele sempre pautou de forma um tanto religiosa que o futuro dos homens será buscar novas formas de prazer, ou novas formas de intensificá-lo. Foi o que ele cruelmente fez com Crash (1996), talvez o seu filme mais controverso por ir tão fundo no tema de forma patológica e autodestrutiva.

Cronemberg conseguiu levar para a tela o lado mais insano e perverso do ser humano sobre o prazer sexual, sempre mantendo uma coerência assustadora com a realidade, de forma que os personagens nunca impõem suas vontades aos outros como a doutrinar os inocentes, são eles mesmos quem escolhem se aprofundar neste labirinto fisiológico tão instintivo e primitivo. Seus filmes são complexos, muitas vezes difíceis de serem assistidos, que facilmente tendem a despertar a repulsa, mas ainda sim objetos de discussão coerentes com a contemporaneidade.

eXistenZ é parte disso, e figura entre os clássicos do diretor. Mais visceral e atordoador do que seu colega pop Matrix, lançado no mesmo ano, Cronemberg joga para o público a responsabilidade de uma realidade aumentada e sem limites. A busca de diferentes prazeres através de alternativas responsáveis por fazer os homens perderem o seu próprio controle tal qual uma droga intoxicante qualquer. Não é à toa que no filme todos os equipamentos possuem texturas orgânicas familiares, mas nada convencionais, que se assemelham a protuberâncias ou orifícios humanos. Há também o medo de alguns personagens pela chamada "penetração cirúrgica", já que cientificamente um dos medos natos do homem é a corrupção de seu próprio corpo, ou seja, a invasão de corpos ou objetos estranhos, como um caco de vidro, uma ferpa, uma agulha ou um falo. O estupro propriamente dito. Isso é proposital para que Cronemberg deixasse evidente até que nível o ser humano está disposto a atingir para adquirir novos estímulos além das formas tradicionais de buscar o prazer, que com o tempo perderam a graça (segundo o que ele, talvez, implicitamente propõe).

O diretor não chega a discutir o prazer em suas formas perversas como o masoquismo, a laceração e submissão da forma como fez em Crash, ao contrário disso, ele sugere que o prazer carnal não existirá mais no futuro. No lugar disso, iremos atrás de outras experiências que possam nos satisfazer constantemente de outras formas, como as possibilidades de criar e destruir, mandar e desmandar, ter o controle e o poder de absolutamente tudo. E o único lugar onde podemos ter tanta autonomia é apenas no mundo virtual, considerado pelo diretor um espaço democrático, pois dá oportunidade a todos de serem e experimentarem o que quiserem, algo que se mostrou verdadeiro com o âmbito que a internet tomou no cotidiano das pessoas.

Ao longo do filme os personagens já não sabem mais se o que acontece é parte do jogo ou da realidade, essa situação não apenas é imersiva como confusa por conta da irresponsabilidade de ultrapassar os limites que eles mesmos desconhecem e a possibilidade de serem tão onipotentes. Por isso, de certa forma, o filme também lida com a religiosidade e o poder no questionamento do ser humano ser ou não capaz de se aproximar de seu próprio criador. É por essa razão que um dos objetivos principais do jogo eXistenZ dentro da história do filme é a "morte ao demônio", que se refere ao projetista desenvolvedor daquela realidade virtual. Ou seja, morte ao humano que se passa por deus. Tanto que a referência a isso está no próprio título do filme, onde "isten" significa "deus" em hungaro.

O que é mais interessante de toda a produção é que, mesmo sendo de 1999 e falando de um futuro tecnologico ainda bastante distante, não há aquela sensação de produção datada. Toda a direção de arte é bastante neutra, e Cronemberg foi inteligente o bastante ao falar do futuro e da tecnologia utilizando a nossa própria realidade para isso. É como se ele também quisesse nos mostrar que o nível de fidedignidade com a nossa realidade será tão grande ao ponto de ser impossível distinguir onde está a linha que separa os dois mundos. Além disso, ele também utiliza suas esquisitas angulações de câmera para dar um certo tom de deboche, uma sátira surreal da nossa realidade, como sonhos desconexos, responsáveis também por destacar devaneios que o mundo virtual possa apresentar, como erros, ou "bugs" do sistema, algo similar ao gato preto em Matrix.

Há também um humor negro muito presente dentro deste contexto satírico no intuito de enfatizar absurdos que realmente não fazem parte de nosso cotidiano, como o nojento e ao mesmo tempo engraçado momento em que o personagem de Jude Law monta uma arma orgânica com restos encontrados em um ensopado e a carrega com os dentes de uma prótese que ele tira de sua própria boca e diz: "eu não uso ponte, meus dentes são perfeitos". São esses elementos que diferenciam as realidades sobrepostas e situam o espectador dentro dos diferentes mundos (além do próprio cabelo da personagem principal, que é liso quando no mundo real e frisado nos mundos virtuais, mas isso você pode fingir que não leu).

Se o diretor é ou não um jogador de verdade, não dá pra saber, mas ele soube encaixar elementos muito característicos de jogos que obrigam a interação do jogador com personagens não jogáveis. Um dos momentos mais evidentes disso é quando é citado o looping de ação de um dos personagens "não jogáveis" da história, que entra numa sequência de ação repetida até que o personagem principal dê o comando exato para que o sistema compreenda que uma ação foi realizada e seja dada uma ordem para a próxima etapa. O diretor é tão meticuloso nos detalhes que o filme também é um prato cheio para qualquer gamer nerd de plantão. E acreditem, na época em que o filme foi feito, eram pouquíssimos os jogos de mundo aberto como é proposto no filme, e os que existiam ainda eram muito limitados. Muitos jogos hoje chegaram bem próximos ao sistema proposto no filme de um mundo aberto, interativo e com objetivos a serem alcançados, aumentando a interatividade de ações entre jogadores e o mundo virtual ao ponto de perdermos a completa noção de tempo e espaço, tamanha a imersão. Ou seja, sem querer, Cronemberg conseguiu levar para a tela boa parte daquilo que os jogos se transformaram hoje. Claro que para chegar ao nível de realidade do filme, há muito futuro pela frente ainda, mas a essência interativa dele já existe de certa forma.

Vale muito ser assistido mais de uma vez para que a atenção seja dada a pequenos detalhes antes ignorados. Dezesseis anos depois ainda entramos na atmosfera do filme como entramos nos jogos de hoje, mas Cronemberg vai além e nos leva a uma paranóia crescente desenvolvidas com efetividade até os créditos finais numa realidade sufocante. Só não sabemos qual realidade é essa, e esse é o grande cheque mate de Cronemberg sobre nossas percepções. Será que um dia chegaremos a este ponto?

CONCLUSÃO...
Embora esquisito, surreal e confuso como sempre, eXistenZ é o Cronemberg autoral e brilhante, completamente contrário à convencionalidade. Ousado e um tanto visionário, ele questiona os limites da criação, a religiosidade e o vício pelo poder, a droga prazerosa mais fatal que o ser humano descobriu.

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