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sábado, 7 de fevereiro de 2015

"UM HOMEM HONESTO ESTÁ SEMPRE COM PROBLEMAS"

★★★★★★★★★☆
Título: As Confissões de Henry Fool (Henry Fool)
Ano: 1997
Gênero: Drama, Comédia, Suspense, Policial
Classificação: 16 anos
Direção: Hal Hartley
Elenco: Thomas Jay Ryan, James Urbaniak, Parker Posey, Maria Porter
País: Estados Unidos
Duração: 134 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Henry é um homem sem rumo que cruza o caminho de Simon para salvá-lo de uma vida sem perpectivas. Através da literatura, Henry abre a Simon portas para um mundo de percepções que ele nunca havia visto antes. E os dois, cada um de seu modo, serão grandes agentes transformadores de uma sociedade estagnada e inapta a mudanças significantes.

O QUE TENHO A DIZER...
"Um homem honesto está sempre com problemas". Esta é a grande primeira frase de impacto de Henry Fool, e sem dúvida alguma a definição de todo o filme e dos personagens principais. "Lembre-se disso", continua ele.

As Confissões de Henry Fool é a primeira parte de uma inusitada trilogia de Hal Hartley. As outras duas sequências são Fay Grim (2006) e Ned Rifle (2014).

Este filme pode ser qualquer coisa, menos algo preso a um único gênero. A narrativa marcha entre diálogos literários, divagações artísticas, políticas e culturais. Fala sobre relações sociais, amizade, lealdade e o apoio familiar. Consegue ser uma comédia dramática, um suspense poético e uma ode à liberdade de ser, agir e pensar, ao mesmo tempo que é cheio de momentos ora instrospectivos, ora de um incomum entretenimento.

O que faz desta uma pequena grande obra de arte do cinema independente norteamericano são essas suas diferentes nuances nos mais de 120 minutos de uma história incomum, cheia de referências e camadas que se aglomeram cada vez mais durante o desenvolvimento.

O personagem Henry Fool (Thomas Jay Ryan) possui uma característica libertina e até um tanto anarquista. Contrário a regras e convenções ditadas pela sociedade e seus sistemas, nômade e solitário, um pensador do mundo que aparece a Simon Grim (James Urbaniak) como uma salvação e resolve se instalar no porão de sua casa sem pedir licença para finalizar aquilo que ele considera a sua "confissão", o seu "opus".

Simon, por sua vez, é um lixeiro igualmente solitário, um indivíduo desajustado bastante conformado com a total falta de perspectiva de uma vida monótona e repetitiva. Está tão imerso e recluso nesta vida inexpressiva que ele pouco fala. Vive dia e noite com seu uniforme, talvez por não distinguir mais a rotina do trabalho de suas horas de folga, ou talvez porque acredite ser a única forma de demonstrar para a sociedade que ele é um cidadão trabalhador e digno, pois é isso que ela cobra. Ele sustenta sua mãe depressiva e sua irmã, Fay (Parker Posey), uma mulher entre os vinte e trinta anos que faz nada além de lembrar sua mãe dos remédios e pensar em sexo.

Henry também está sob liberdade condicional, já que passou sete anos preso por ter sido flagrado fazendo sexo com uma garota de 13 anos. Ele não conseguiu evitar as insinuações da garota porque, segundo ele mesmo diz, ela sabia brincar com suas fraquezas mais profundas. E por uma tarde de transgressão, foi estigmatizado e rotulado como um pedófilo, caindo em uma conspiração da sociedade que se aproveitou da situação para denegrir o que ele fazia e pensava.

Esta grande revelação do personagem é crucial para colocá-lo em uma posição na hitória não de ameaça, mas de certa dúvida, a de que nem sempre temos o controle sobre nossas vontades, por mais que elas ofendam a realidade que vivemos. Henry não esconde e muito menos ignora seus vícios, mas o seu pensamento é tão coerente e verdadeiro que suas trangressões deixam de ser parte do lado social mais conservador para serem compreendidas como a essência de um homem livre, movido pelas suas vontades, nunca desperdiçando as oportunidades que aparecem a sua frente.

Henry é um personagem catalisador, um agente modificador do ambiente que está. Sua personalidade excêntrica e controversa, junto com seu pensamento verdadeiro e libertário, derivado de observações sobre uma realidade constantemente controlada, coloca aqueles ao seu redor a questionarem suas percepções. É isso o que acontece com Simon, que inspirado e motivado por Henry, passa a escrever poemas que, de igual forma, alteram o comportamento daqueles que os leem, como em um conto de fadas.

Em nenhum momento o espectador tem acesso a qualquer um desses poemas, mas a reação dos personagens após lê-los já é o suficiente para percebermos que a linguagem é tão forte e precisa que conhecer seu conteúdo é desnecessário. Claro que a curiosidade de saber porque a maioria facilmente se choca com o que lê e por que consideram seus poemas imorais e pornográficos é uma constante durante todo o filme, mas ao mesmo tempo dispensável, justamente para dar a impressão de ser algo tão grandioso que não seríamos capaz de sequer imaginar como seja.

Para quem conhece, é impossível não associar Henry e Simon, e Simon e a sociedade, com a repercurssão social que os poemas de Marques de Sade causaram no século XVIII, o qual escreveu a maioria de suas obras enquanto encarcerado por causar comoções sociais em seus textos que explicitavam o imaginário mundano da sociedade da época. Até mesmo a forma libertina de Henry pensar e agir pode ser uma referência ao escritor e filósofo. Mas tudo para por aí, ao contrário de Sade, tanto ele quanto Simon não possuem uma natureza cruel e egoísta, muito menos perversa. Pelo contrário, ambos demonstram que não teriam coragem sequer de violentar um inseto.

Os argumentos fundamentalistas de ambos, seja Henry com sua voz, seja Simon com suas palavras, incomodam a sociedade, movimentando-a fora da ordem convencional, conquistando tanto admiradores quanto a repulsa dos conservadores e doentes sociais.

Tudo é construído de forma bastante poética, em cenas elaboradas como um cenário teatral, mas honestas e naturais devido a ambientação intimista. O diretor consegue criar vários momentos onde literalmente nos desligamos do filme para nos questionar se o que vivenciamos no nosso real cotidiano é algo coerente. Seja no fato de aceitarmos imposições externas que partem de pessoas que nem ao menos conhecemos, ou por aquelas outras que realmente desconhecem completamente qualquer princípio moral e suas funções sociais de fato.

No fundo Henry e Simon são vítimas de uma sociedade de pessoas culturalmente homogeneizadas e modistas. Homens honestos em suas idéias e ideais, mas que colhem o amargo fruto de tudo isso, plantada por uma sociedade cega e incoerente.

Embora a sensação de descrença e impotência sejam muito grandes durante o filme, tudo isso no fim acaba sendo muito bem recompensado. Não por um final feliz e Hollywoodiano como poderia ser, mas por tantas mudanças terem acontecido e serem possíveis de acontecer, tanto aos personagens quanto para quem os assiste.

CONCLUSÃO...
Não é à toa que Henry Fool é considerado uma das poucas e genuínas obras de arte do cinema independente norteamericano, que mistura linguagem literária com a do cinema. Um filme que, através dos diferentes gêneros e temas abordados, consegue aquele raro fenômeno de despertar naqueles que assistem o interesse pela busca daquilo que realmente seja relevante na vida, o questionamento e a introespecção que podem levar a mudanças. Tudo isso por conta do poder das palavras contidas nele, e de como subestimamos nossa própria observação sobre as coisas.

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