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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

COMO SE SER RUIM JÁ NÃO BASTASSE...

Título: 50 Tons de Cinza (50 Shades Of Grey)
Ano: 2015
Gênero: Romance
Classificação: 16 anos
Direção: Sam Taylor-Johnson
Elenco: Dakota Johnson, Jamie Dornan
País: Estados Unidos
Duração: 125 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Uma jovem passa a se envolver com um um homem socialmente muito bem posicionado que aos poucos a envolve em um jogo sexual de dominação e submissão.

O QUE TENHO A DIZER...
Que a saga Crepúsculo fizesse sucesso, tudo bem. A maioria do público que o consumiu era de adolescentes com os hormônios saindo pelos poros, desesperados pela pobre tensão erótica que envolvia os dois protagonistas, numa época em que a sexualização começa cada vez mais cedo.

Mas por mais facilidade de acesso que temos hoje a conteúdos adultos, o público ainda demonstra preferir filmes onde a sexualização seja implícita ou menos explícita, que fique sempre naquela linha tênue da proibição, mas sem ultrapassá-la, tal qual os filmes da década de 80/90, como 9 1/2 Semanas de Amor (1986), Insinto Selvagem (1992),  Proposta Indecente (1993), dentre outros. Filmes que lotaram os cinemas convencionais em reflexo de que a sociedade, por mais que demonstre-se puritana, tem sempre no fundo fantasias e aquele desejo contraventor.

É muito mais fácil pararmos em um canal que transmite um filme erótico do que um que exibe um filme pornográfico. O explícito confronta nossa própria moralidade. Filmes mais erotizados que chegam aos cinemas são as raras oportunidades dos indivíduos reduzirem essa culpa moral e assumirem a existência de uma devassidão contida, mas que não é julgada porque é coletiva. Se você vai ao cinema para assistir isso, então nada lhe dá o direito de falar de mim que também vou.

E 50 Tons de Cinza surgiu para provar novamente isso, além de demonstrar que também não há alívio para a mediocridade, e que as pessoas que consumiram Crepúsculo ontem, são as mesmas que consomem a trilogia erótica de Erika Leonard James hoje.

Esta associação poderia soar estranha se não fosse o fato de que, antes de ser famosa, E. L. James escrevia uma fanfiction sobre Crepúsculo através do pseudônimo/nickname de Snowqueens Icedragon. Quando a história começou a tomar um rumo erótico demais, ela abandonou Bella e Edward, e então Grey e Anastasia surgiram.

No fatídico momento em que 50 Tons inesperadamente se tornou o fenômeno literário de 2011, um grito de socorro ecoou. Deixando os conservadores e o puritanismo de lado, o que mais se propagou a respeito foi o fato de uma série anti-feminista, de teores claramente machistas e sexistas não apenas ter sido pobremente escrita por uma mulher como foi consumida avidamente por outras mulheres. A trilogia já vendeu mais de 100 milhões de cópias pelo mundo, e desde seu lançamento foi possível observar o retrocesso dos poucos passos da evolução feminina na sociedade em uma regressão a tempos medievais.

Estar sentado no metrô, no ônibus ou em um café com a capa dos livros de James à mostra agora soa moderno e descolado, mas ainda reina uma certa vergonha e receio fazer o mesmo com capas em punho de títulos como um A Casa dos Budas Ditosos (de João Ubaldo), um Sexus (de Herny Miller), ou um 120 Dias de Sodoma (de Sade). Mais vergonhoso ainda se for educativo e explicitamente sobre o assunto, como o clássico Vamos Falar Sobre Sexo, da outrora sexóloga Martha Suplicy.

Mas já que é pra deixar a intelectualidade de lado, a gente pode ir mais baixo ainda, em literaturas bem baratas e de vocabulários bastante similares, como a série Sabrina, Julia e Bianca, romântica e cafona nos mesmos 50 tons. Pra quem quiser ser mais ousado tem até um livro bem antigo que muito me excitava na adolescência chamadado O Circo do Prazer, talvez o mais próximo de uma literatura verdadeiramente pornográfica, bizarra e pervertida que pude chegar na época. Oops... tem "PRAZER" no título, a sirene da censura, da moralidade e dos valores acabou de gritar. Não pode.

"Quero deixar claro que sou uma feminista. Quem comanda meu escritório é uma mulher. A roteirista e a diretora deste filme são mulheres. Sou pró-igualdade de gênero no pagamento de salários. Agora, não podemos esquecer que mulheres, feministas como eu, também têm fantasias, e conquistamos o direito de tê-las"

A citação acima é da própria autora. Esta é sua forma bastante juvenil e desinformada de defender seu trabalho e seu pensar. Como se "ser feminista" significasse apenas o fato de ser rodeada por mulheres e outras coisas que se tornam muito banais no contexto de observação da escritora, como a mera igualdade de salário. Antes os ideais feministas fossem tão simples assim.

Obviamente que a autora nada sabe sobre isso, pois até mesmo uma feminista bem preguiçosa teria elaborado algo melhor.

Se uma afirmação como essa partisse de escritoras como Simone de Beauvoir e Virginia Wolf, acreditem, elas nunca figurariam entre as escritoras feministas mais influentes da história. Eu imagino a cara de Clarice Lispector numa situação dessas. Ela teria engolido 50 cigarros sem mastigar.

Mas não é necessário ir tão fundo. A gente pode se manter mais na superficialidade pop, como o esforço inútil de Madonna nos anos 90 ao expor Dita, o seu alter-ego dominatrix, e chocar a sociedade com a idéia de que não é um falo que manda, mas uma mulher decidida de suas vontades e desejos. Nem mesmo Rachel Pacheco, a Bruna Surfistinha, que trabalhou como prostituta por vários anos, servindo a fantasia de centenas de homens e mulheres sem espaço para qualquer recato, experimentando tudo do possível e impossível, chegou a ser tão diminuta nesse pensar. Seu livro, O Doce Veneno do Escorpião, que conta suas aventuras e experiências sexuais de forma bastante natural e popular, não chega, nem perto, de ser tão descartável e infame como 50 Tons.

É aí que percebemos quão pequena é a série de Mr. Grey, e como isso demonstra claramente que o sexo, para a maioria das mulheres, ainda é algo desconhecido e inexplorado por elas mesmas, ao ponto de se empolgarem com tão pouco, vendo nesses livros a quintessência da literatura erótica e da "informação sexual", quando tudo nada mais é do que apenas uma variação de dicas e truques publicados em revistas de prateleira com equivocados títulos do tipo: "COMO PROPORCIONAR PRAZER AO SEU HOMEM". Sim, como proporcionar prazer ao homem, ao macho, ao sexo forte e dominador. Tudo sempre feito para ele. Casa limpa, roupa lavada, comida feita e pernas abertas no fim do dia.

Ou seja, é tudo uma visão mais adulta e pornográfica dos mesmos contos de fadas que as mulheres ouvem desde criança e crescem ludibriadas, sem enxergar de fato toda a imposição social e machista que as oprimem por todos os lados, que as fazem crescer na fixação de ser uma obrigação atuarem como personagens frágeis e submissas, cujas vontades são dominadas e direcionadas por um príncipe encantado ou algo que o represente. Mulheres com prazeres subjulgados, numa mutilação psicológica tal qual a mutilação física sofrida pelas pobres coitadas em Mali ou Gambia. Ou seja, o endosso de que o mundo é dos homens e de que o sexo feminino é e deve ser escravizado, tal qual o contrato que Anastasia assina.

Isso tudo definitivamente é nada feminista e de forma alguma expõe os prazeres, vontades e fantasias sexuais das mulheres, como inadvertidamente defendeu a autora.

É óbvio que existem mulheres que gostam da submissão, assim como existem homens que também gostam, mas esses tipos são excessões. O que estranha é o fato de mais de 100 milhões de pessoas terem popularizado uma idéia que na vida real nem sempre culmina ao romantismo, mas sim à violência feminina, ao abuso sexual e finais bastante infelizes que a sociedade moderna sofre em combater porque tempos produtos como esse no mercado o tempo todo.

Claro que Hollywood não iria perder tempo com isso, e a adaptação foi logo encomendada. Dirigido por Sam Taylor-Johnson, fica complicado notar até que ponto os problemas do filme são responsabilidades dela. Primeiro porque ela não havia dirigido nada muito relevante antes além de um longa e um curta metragem que concorreram ao BAFTA em 2009 e 2010. Segundo porque a autora também foi a roteirista, e quis ter total controle sobre a produção do filme, atrapalhando as filmagens e discutindo com a diretora por inúmeras vezes. Os boatos sobre o clima desagradável logo se espalhou pela mídia ao ponto de Taylor-Johnson ter recusado o convite de dirigir as demais continuações.

O filme foi recorde instantaneo de bilheteria, arrecadando mais de US$200 milhões no mundo em seu primeiro final de semana de exibição. Porém, a crítica o desprezou. No IMDb o filme já foi avaliado por mais de 60 mil pessoas e recebe atualmente uma nota média de 4.8. Então qual a razão de algo tão ruim fazer tanto sucesso? Simples: as pessoas querem visualizar o sexo que leram, mas saem frustradas do cinema.

Mostrado pela primeira vez no Festival de Berlim, os críticos não foram discretos. Os diálogos forçados e as cenas sexuais de abordagem sadomasoquista sempre muito limpas e moralizadas arrancaram gargalhadas dos 350 jornalistas que avaliavam a exibição.

Para evitar muito do que o livro chulamente descreve, utilizou-se outro artífice mais adorado pelo público feminino: o romance. Mas os personagens são sem graça. Como se já não bastasse o material, a protagonista também é muito tola, como a maioria das heroínas de filmes do gênero são. Aí temos o Sr. Grey, representado por um ator fraco, inexpressivo, com uma voz irritante e desconjuntada, que não convence nem como príncipe da sucata, e muito menos como o sadomasoquista dominador em questão. Sua personalidade é rasa, com traumas aleatórios pra justificar suas perversões. Tenta manter uma postura austera e muito séria do homem que não gosta de romance, mas gosta de espancar, só que não perde oportunidade de ser contraditório e mostrar que no fundo ainda há um homem muito romântico enquanto Anastasia suspira, geme, ofega, murmura, ruboriza e tenta encarnar a mais perfeita forma da mulher coisificada, a jovem adulta que se comporta como uma ingênua colegial para atingir a libido do público masculino em tiro certeiro.

Enfim, é uma adaptação tão inútil e descartável que não mereceria nem uma resenha. Para quem já assistiu os filmes de Catherine Breillat, que consegue transformar a fantasia pornográfica em arte, presenciar a existência de 50 Tons é como ir ao inferno e voltar. E o mais revoltante de tudo é ouvir pelas ruas as mulheres dizerem coisas do tipo: "se um homem bonito e rico como ele aparecesse na minha frente eu faria qualquer coisa". É claro que a pessoa que diz isso está imersa na fantasia da história, mas e se no caso ele fosse feio ou pobre, aí sim seria abuso sexual, atentado ao pudor, estupro, violência feminina e o diabo a quatro. Na verdade, é tudo isso quando algo de fato acontece, independente de ser feio ou bonito, rico ou pobre. Não digo que os livros ou o filme incitam a violência, eu não acredito nisso, mas eles tem, sim, a responsabilidade na perpetuação da redução do caráter feminino na sociedade da pior maneira.

CONCLUSÃO...
Eu poderia excluir aqui aqueles que dizem que assistiram ao filme ou leram os livros simplesmente como entretenimento barato pra passar o tempo tal como assistir Malhação depois de um estafante dia de trabalho, mas isso virou uma desculpa tão comum e recorrente que as pessoas podem até não ter vergonha de colocar o livro no carrinho de compras ou pagar R$30 no cinema, mas está nítido que elas morrem de vergonha de admitir terem perdido tempo com tanta porcaria. Sabe aquela desculpa de "eu não assisto esse programa, mas vi enquanto mudava de canal"? É bem isso.

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