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quinta-feira, 4 de setembro de 2014

PLURALIDADE SEM ESTEREÓTIPOS...

★★★★★★★
Título: Deixe a Luz Acesa (Keep The Lights On)
Ano: 2012
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Ira Sachs
Elenco: Thure Lindhardt, Zachary Booth, Julianne Nicholson
País: Estados Unidos
Duração: 100 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um jovem documentarista dinamarquês tem que lidar com as dificuldades de manter sua relação com seu namorado norteamericano, um advogado viciado em drogas e com grandes dificuldades de se reabilitar.

O QUE TENHO A DIZER...
O filme é dirigido pelo norteamericano Ira Sachs, com roteiro escrito por ele mesmo em parceria com o brasileiro carioca Mauricio Zacharias. Embora um diretor desconhecido no circuito comercial, já possui seis longas metragens no currículo. Zacharias foi responsável pelos roteiros de Madame Satã (2002) e O Céu de Suely (2006), dentre os mais conhecidos. Teve sua estréia no Festival de Sundance de 2012, o qual foi bastante elogiado, e ganhou o Festival de Berlim, além de ter concorrido ao Independent Spirit Awards. Foi um filme recorrente em festivais e ainda é em mostras internacionais do circuito GLBT pelo mundo.

Mesmo não dizendo isso em nenhum momento (nem ao menos nos créditos), curiosamente ele é baseado na vida do próprio diretor e sua complicada relação com Bill Clegg, um agente literário que publicou seu próprio livro de memórias, Portrait Of An Addict As A Young Man (2010), relatando as dificuldades que teve com seu vício nas drogas ao longo dos anos. Segundo o próprio diretor, ele ainda possui amizade com Bill, o qual o apoiou incondicionalmente na realização deste filme, o primeiro com referências autobiográficas na carreira do diretor.

A história vai girar em torno de Erik (Thure Lindhardt), um documentarista dinamarquês que vai para Nova York coletar relatos para sua nova produção a respeito do artista Avery Willard, e que passa a maior parte do seu tempo vago no telefone em grupos de conversa gay na intenção de esquecer seu ex-namorado e na possibilidade de conhecer alguma outra pessoa interessante. Entre sexos sem compromisso e encontros fúteis, acaba conhecendo Paul (Zachary Booth, de Damages), um jovem advogado que namora uma garota e tem dificuldades de assumir sua homossexualidade. Esse encontro acaba despertando uma paixão que faz com que Paul assuma sua sexualidade e também revele a Erik seu vício em crack. Erik, a princípio, acredita que Paul tenha controle sobre isso, a relação evolui para um casamento e, com o passar dos anos, aquilo que parecia um mero detalhe se transforma em um grande problema que interfere na sanidade e no relacionamento dos dois até atingir uma situação insustentável.

Embora o filme tenha temática gay e até trate de alguns assuntos recorrentes e que serão bastante familiares para a audiência homossexual masculina, como a poligamia, a falta de comprometimento, a superficialidade sentimental e material existente nos guetos, além da constante sombra da Aids, ele é bastante realista e verdadeiro na retratação das dificuldades sofridas pelos personagens como pessoas e não como exemplos ou pontos de referência, o que felizmente os deixam longe das estigmatizações ou estereotipações comumente vistas em filmes do gênero. Sutilmente o filme até brinca com determinados preconceitos logo no início, quando vemos Erik ao telefone agindo de forma bastante promíscua e depois com o comportamento sofisticado de Paul, para depois a história nos mostrar como é fácil nos enganarmos com as aparências.

Por um lado temos Erik que tem de lidar com sua obsessão por Paul, e por outro temos Paul que precisa aprender a lidar com o seu vício que aumenta todas as vezes que Erik tenta controlá-lo. Como enredo isso parece algo bastante simples, mas desenvolve uma história de dois círculos viciosos que se interceptam formando um elo que nunca poderá ser rompido unilateralmente. Os dois sofrem psicologicamente com esses dilemas, e tudo se desenvolve de forma bastante densa em meio a sexo, drogas, amor, vida, amigos e os argumentos entre tudo isso, fórmula pronta para o melodrama, mas o diretor e roteirista tiveram cuidado em não transformá-lo em um. Ao invés disso, o que vemos entre os anos de 1998 a 2006 na história, divididos em quatro partes, é justamente o que faz as dependências de Erik sobre Paul, e de Paul sobre as drogas, existirem. Essas idas e vindas e a repetitividade das situações ocorrem cada vez com maior intensidade por conta dos desgastes passados e das novas incertezas futuras. Eles se amam, e isso é evidente, mas o amor apenas não é o suficiente, independente dos esforços. O amor também é mostrado na sua forma mais pura e verdadeira, sem clichés românticos ou ideais, com cenas de sexo que poderão parecer explícitas para a audiência que se choca com maior facilidade, mas são muito mais eróticas e sensuais do que obcenas, pois são verdadeiras e representam a transparência da relação entre os dois personagens, e ao invés de serem dispensáveis, se tornam um forte complemento narrativo.

O roteiro de Zacharias também consegue explorar nuances sexuais e observacionais do cenário gay das metrópoles de uma forma bem menos americanizada do que poderia ser caso o roteirista fosse norteamericano, até mesmo pela variedade étnica que vemos e a referência direta à pluralidade social em todos os aspectos, algo que apenas um brasileiro saberia compreender o que isso significa e transpor para um roteiro de uma forma tão bem organizada como ele faz neste filme.

O elenco, mesmo formado por poucos conhecidos atores, talvez seja um dos maiores atrativos. Segundo o diretor, ainda há uma imensa dificuldade nos Estados Unidos em encontrar atores que se disponham a realizar filmes com cenas homossexuais românticas ou eróticas por conta de um conservadorismo recalcado que pesa sobre a indústria. Avy Kaufman foi a responsável pelo elenco. Ela foi a mesma a escalar o elenco de O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005). Mesmo com esta importante bagagem no currículo teve dificuldades em completar o casting. Eles acreditam que tanto os atores quanto seus agentes consideram os papéis nesses projetos um carimbo que os deixariam inelegíveis para futuros grandes papéis. Um grande preconceito que, segundo o diretor, seria bastante minimizado se a produção tivesse sido filmada na Europa e para o público europeu, mas aí a intenção não teria sido a mesma. O casal de atores principais pode ser convicente, mas a interpretação do dinamarquês Thure Lindhardt beira a perfeição nos sistemáticos detalhes que ele embutiu no personagem e que o identificam claramente na história, além de darem uma personalidade única com uma imagem ríspida e bastante masculinizada, mas com atitudes e expressões tão delicadas e sutis que por muitas vezes é impossível não se emocionar.

A linha temporal é dividida em quatro partes, com um espaço de três anos entre uma e outra, sendo esta a única referência de tempo que temos, pois entre uma parte e outra a passagem dos anos é notada apenas na narrativa e em algumas situações. Os cortes da edição são bruscos, há raras cenas de transição durante o filme todo. Então, uma cochilada é suficiente pra deixar muita gente perdida no espaço temporal do filme quando acordar.

Vale dizer que uma pequena parcela do ainda sim baixíssimo orçamento do filme foi pago através de doações realizadas ao Kickstarter por mais de 300 pessoas. E a título de curiosidade, o desconhecido e importante artista citado no filme (Avery Willard) realmente existiu. Ele foi um fotógrafo, cineasta, editor e ativista que, dentre seus trabalhos, está a retratação do cenário gay novaiorquino entre as décadas de 70 e 90 sob o pseudônimo de Bruce King. Uma biografia mais detalhada por ser encontrada AQUI. Durante o desenvolvimento do filme o diretor conseguiu material suficiente que posteriormente se transformou no documentário de curta metragem In Search Of Avery Willard (2012), dirigido por Cary Kehayan.

CONCLUSÃO...
Um filme realista e bastante interessante que, mesmo tendo abordagem homossexual, trata de assuntos bastante corriqueiros e universais na sociedade jovem atual, além de conseguir se abster de estrereótipos para contar uma história com diversas situações paralelas sem soar cliché ou parecer que foi feito para públicos específicos graças a articulação do roteirista brasileiro e da ampla abordagem social do diretor.

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