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terça-feira, 12 de agosto de 2014

PARAÍSO DA FÉ E DA CARNE...

★★★★★★★★
Título: Paraíso: Fé (Paradies: Glaube)
Ano: 2012
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Ulrich Seidl
Elenco: Maria Hofstatter, Nabil Saleh
País: Áustria, Alemanha, França
Duração: 115 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Anna Maria é uma devota cristã que realiza seus trabalhos diários em casa e fora dele, bem como peregrinações levado consigo uma imagem de Virgem Maria e a palavra divina, julgando e condenando as decisões e os prazeres alheios, e pagando suas penitências para que possa continuar realizando o seus próprios pecados.

O QUE TENHO A DIZER...
 (Glaube, 2012) é a segunda parte da trilogia Paraíso (Paradies), do austríaco Ulrich Seidl, com roteiro escrito por ele e pela sua mulher Veronika Franz.

Enquanto na primeira parte da trilogia, Amor (Liebe, 2012), foi possível ver as experiências sexuais caóticas e não muito agradáveis de Teresa em sua viagem na costa paradisíaca do Quenia, nessa segunda parte veremos a história de sua irmã, Anna Maria, uma católica devota que, durante suas férias, passará seu tempo fazendo aquilo que mais gosta: seja cantando músicas sacras; seja em suas reuniões com seu grupo particular de orações; seja peregrinando pelos bairros pobres de Viena com uma imagem de 30cm de Virgem Maria, batendo de porta em porta na casa de estrangeiros pagãos para pregar a palavra divina; ou seja quando, confrontada pela descrença ou por atos pecaminosos testemunhados, ela se martiriza com penitências ortodoxas para evitar sucumbir às tentações que eles despertam, e não porque as ofendem.

Como muito bem dito por Nick Pinkerton, o prólogo de Amor talvez seja a maior definição sobre o que é a trilogia Paraíso e a condição humana que cerca seus personagens quando vemos os deficientes mentais se batendo desordenadamente uns aos outros com os carros elétricos no parque de diversões, onde as câmeras capturam objetivamente os choques e as reações de cada um deles, nos mostrando metaforicamente como nos chocamos violentamente uns contra os outros sem qualquer compreensão dos motivos e razões de fazermos isso. Se em Amor temos uma personagem se chocando com pessoas, culturas e a ausência de sentimentos sem muita consciência das razões de fazer isso, em  temos outra personagem se chocando contra ela mesma e com diferentes crenças e interpretações, com uma visão bastante intransigente que a aliena sobre as realidades e os motivos de agir dessa forma.

A história acontece em paralelo com a viagem de Teresa ao Quenia. Logo na primeira cena vemos Anna Maria se autoflagelar com uma chibata diante do crucifixo de um quarto tratado com esmero tal qual uma sagrada capela, ao mesmo tempo que também é sua sala particular para suas torturas, autopunições e castigos, já que, trancado em um armário, Anna esconde os mais diversos e bizarros instrumentos utilizados de maneira meticulosa para diferentes penitências. Assim ela acredita provar, através de sua carne e sangue, que sua devoção é maior do que suas mais íntimas vontades carnais e seus mais profundos desejos mundanos. Um presídio dentro de sua própria casa, a representação de sua doente psiquê e de como o mundo deveria ser, além de uma necessidade sagrada de estar dentro dele.

Novamente Siedl não poupa em ser chocante e constrangedor e nesse filme o seu estilo realista se mantém, mas de forma mais fria e distante. No primeiro filme tínhamos um leve e quase imperceptível humor dramático que a própria personagem carregava consigo, aqui não há espaço para isso. Há apenas um drama carnal que cresce progressivamente conforme Anna se confronta mais e mais com seus temores e o diretor consegue ser bruto e chocante tanto em cenas explícitas quanto naquelas implícitas, de tão forte como ele utiliza os ícones e a maneira que são representados nas cenas.

Em um determinado momento a personagem acredita estar sendo testada por Deus, pois ao invés de sentir mudanças relativas aos seus incansáveis esforços religiosos, ela só recebe em troca o descaso libertino ou o inadvertido retorno de seu marido paraplégico, um muçulmano que estava ausente há dois anos (talvez) pela intolerância ao fanatismo religioso de Anna.

Seidl usa esse conflito entre religião e sexo frequentemente para dar vazão a demais simbolismos que levam a outras relevantes discussões, bem como a hipocrisia que os acompanha, como o fato de Anna encontrar em seus rituais diários uma válvula de escape para seus medos particulares, em um fanatismo religioso que, como já dito, leva a personagem a alienar-se sobre as realidades e os próprios pecados cometidos. Mesmo quando consciente disso, ela acredita que sua purificação virá através da penitência. Esse círculo vicioso lhe dá o direito de agir livremente, assim como faz quando invade a casa das pessoas durante suas peregrinações. Sua presença chega a ser tão invasiva e brutal que é impossível não considerá-la como um estupro, sugerindo o sadismo subliminar da personagem, tal qual suas punições e autoflagelamento, métodos nos quais ela sente estar mais próxima da figura divina, quando na verdade é o prazer sadomasoquista que compensa a ausência dos prazeres sexuais em si.

A integral devoção de Anna à imagem de Jesus Cristo também deixa de ser uma fé quando vista dentro deste conceito, e passa a ser a representação da sua imagem particular daquilo que considera a figura masculina ideal dotada de um senso de justiça arbitrário, tal qual suas arbitrariedades sobre as coisas do dia a dia e pessoas que ela mal conhece.

Há também espaço para outras discussões, como o conflito caótico com seu marido, que também simboliza as questões sociais da intensa imigração de estrangeiros para a Austria, já que mais de 15% da população é imigrante, o que tem gerado ondas de intolerância e xenofobia, assim como uma preocupação também latente de um novo crescimento do anti-semitismo.

O filme foi recebido positivamente, onde muitos o consideraram um grande complemento à primeira parte da trilogia e uma excelente obra, porém difícil e perturbadora. Seus grandes problemas são em não defini-lo realmente como um acontecimento paralelo aos dois outros títulos e também nessa relação pouco esclarecida entre ela e seu marido.

De qualquer forma, o enorme número de simbolismos disponibilizados pelo diretor oferece possibilidade e liberdade para as mais diveras interpretações, o que também caracteriza o longa como bastante controverso e, ao mesmo tempo, um exercício de observação e associação com a realidade que vivemos. Talvez toda essa massiva simbologia utilizada não tenham sido tão intencionais como parecem, mas se encaixam perfeitamente dentro dos contextos tanto do filme como uma unidade, tanto como parte de um mesmo conceito.

CONCLUSÃO...
Muito mais denso e perturbador que a primeira parte da trilogia, sem dúvida é um exercício de observação e associação com a realidade que vivemos devido aos inúmeros simbolismos utilizados e/ou que possamos identificar.

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