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segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O GRANDE SINTOMA DA IMPUNIDADE...

★★★★★★★★★☆
Título: O Ato de Matar (The Act Of Killing)
Ano: 2012
Gênero: Documentário
Classificação: 14 anos
Direção: Joshua Oppenheimer, Christine Cynn, (anônimo).
Elenco: Anwar Congo
País: Dinamarca, Noruega e Reino Unido
Duração: 115 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
O documentário desafia os ex-líderes dos esquadrões de morte anti-comunistas indonésios, que atuaram durante o golpe militar de 65, a reencenarem seus assassinatos em qualquer gênero cinematográfico que eles desejarem, desde cenários clássicos de filmes hollywoodianos a exuberantes números musicais.

O QUE TENHO A DIZER...
Dirigido pelos norteamericanos Joshua Oppenheimer e Christine Cynn, e por um indonésio anônimo, o documentário demorou seis anos para ser finalizado, muito embora, de certa forma, as pesquisas já tenham tido início já em 2001, quando Opphenheimer e Cynn começaram a se aprofundar sobre os crimes indonésios que ocorreram na década de 60.

Esses crimes foram resultado de uma série de ações militares realizadas na Indonésia durante os anos de 1965 e 1966, após uma fracassada tentativa de um golpe militar no governo de Sukarno, o primeiro presidente indonésio que estava no poder desde 1945, responsável pela independência do país contra a Holanda e que defendia ideais comunistas e nacionalistas. A tentativa do golpe teve início com o assassinato de seis Generais, e membros do exército ligados ao grupo comunista, que por sinal era apoiado por Sukarno, foram acusados dos assassinatos. O golpe não teve sucesso, mas serviu como um grande motivo para os grupos separatistas e anti-comunistas, junto com o apoio dos Estados Unidos, a oprimirem e impedir o crescimento de ações comunistas no país. Isso levou a Força Armada a liderar uma campanha opressora e uma caçada impiedosa aos revolucionários, o que levou a morte de mais de 500 mil civis, muito embora estima-se que os números possam chegar a quase 1 milhão até os dias de hoje já que a população indonésia é ainda coagida pelas forças militares e paramilitares, como a Pemuda Pancasila (ou Juventude Pancasila), grupo fundado pelos gangsters que lideravam os esquadrões anti-comunistas de extermínio e ainda em intensa atividade. Esses líderes criminosos nunca foram julgados e vivem em liberdade apoiada pelo próprio governo até os dias de hoje.

A princípio o diretor queria fazer um documentário que focasse apenas as famílias das vítimas e seus relatos, mas durante as entrevistas muitos deles acabaram sendo presos e as filmagens ficaram sem conclusões levando a produção a seguir outro rumo quando ex-líderes de grupos anti-comunistas demonstraram interesse em falar sobre o assunto como forma de promover e manter a memória de uma época que eles consideram importante para o fortalecimento da nação, julgando que as gerações atuais e futuras devem conhecer esta história sangrenta para dar continuidade e impedir que o comunismo se reerga, já que esse controle militar ainda atua de maneira avassaladora.

Os relatos são dados principalmente por Anwar Congo, um dos mais importantes líderes dos esquadrões de extermínio daquela época, responsáveis por um dos mais sangrentos massacres da História moderna contra civis, muitos deles julgados aleatoriamente, apenas para promover o medo e o terrorismo psicológico para oprimir as oposições. Mas Anwar foi apenas um deles. Ele, assim como todos os outros líderes de esquadrões de extermínio, eram pessoas comuns que foram convocados pelas Forças Armadas anti-comunistas, aos quais eram dadas total liberdade de caçar, julgar e matar.

Ao mesmo tempo que o filme é um documentário, também pode ser visto como um ensaio cinematográfico. Pelos executores serem grandes fãs do cinema hollywoodiano, material relatado por eles como a principal fonte de inspiração para os métodos de execução que utilizaram, Oppenheimer então propôs que eles reproduzissem seus crimes dentro dos gêneros cinematográficos preferidos. Anwar, que se auto entitula um gangster, afirma que que as sessões de tortura e assassinato realizadas por ele e seus comparsas eram fortemente baseadas naquelas mostradas nos filmes western ou sobre a máfia. De forma muito natural chega a declarar diversas vezes e sem remorso que eles eram muito mais cruéis, pois buscavam maneiras para superar a crueldade que viam nos filmes.

Anwar e seus amigos expressam para as câmeras suas experiências e relatam seus métodos criminosos através de memórias e sentimentos positivos sobre as execuções acreditando que todo o genocídio cometido foi para manter o rígido controle e a ordem do país. Aos poucos as cenas são reproduzidas em um estúdio e interpretadas pelos próprios executores, com direito a atores de apoio, maquiagem e cenários construídos de acordo com suas vontades. As filmagens acabam tomando forma e até elementos míticos são incorporados nas cenas para dar um tom mais cinematográfico para a história que é construída. Oppenheimer se aproveita disso de maneira muitas vezes sensacionalista mostrando as cenas de torturas e assassinatos como um grande sintoma da impunidade, o que ele consegue fazer muito bem.

Anwar Congo acredita ter matado sozinho aproximadamente mil pessoas, geralmente utilizando arame para estrangular suas vítimas das formas mais engenhosas possíveis. A ferramenta também foi inspirada pelos filmes, pois ele observou que era uma das poucas que aderiam à pele de tal forma que a vítima não teria oportunidade para se defender, tamanha a covardia das atitudes brutais. Com o tempo ele aprimorou a ferramenta com novas técnicas e métodos de execução para que pudessem ser mais rápidas, práticas e menos "sujas".

O diretor também consegue fazer do material em produção uma verdadeira análise psiquiátrica quando inverte os papéis e o ponto de observação entre executores e executados. Anwar, que passou quase cinco décadas se gabando de seus atos anti-comunistas, além de ser a figura paternal mais importante do grupo paramilitar Pemuda Pancasila, resolve atuar no papel de vítima durante as filmagens já que ele diz conhecer o sentimento patriótico de um executor, mas desconhece o sentimento de ser um criminoso comunista em julgamento.

Conforme novas cenas são filmadas, toda a frieza e o passado sangrento de cada um volta a tona como um tsunami. Anwar não consegue levar as filmagens adiante no papel de vítima, chegando a sofrer até um colapso momentâneo no set de filmagem. Mas é ao assistir novamente as cenas em sua casa, junto com seus netos, que toda a verdade sobre sua falta de humanidade e suas cruéis atitudes se revelam a sua frente em um mar de horror interpretado por ele como um grande e infinito pesadelo. Em prantos, ele diz sentir a dor e o medo de suas vítimas, e Oppenheimer o confronta, dizendo que esse sentimento está longe de ser o verdadeiro, já que as vítimas tinham a certeza de morrer, enquanto ele sabia que tudo era apenas uma encenação. Anwar teme que sua alma esteja amaldiçoada e que ele sofra as consequencias disso quando morrer, pois ele acreditava que o que ele fazia era o correto, pois era obrigado a fazer, mas que suas noites mal dormidas e os pesadelos constantes o torturam.

Confrontando seu lado mais obscuro e irracional, o arrependimento tardio de suas sangrentas ações são exorcizados fisicamente entre ânsias e vômitos vazios vindo de uma alma carregada que finalmente não encontra mais forças para conter tanto remorso e, talvez, agora vulnerável o bastante para ser espancada pelas milhares de almas torturadas. Mesmo não sendo julgado e ser um homem livre, sua punição de conviver com isso o mantém preso dentro de um mundo hostil de dor e sofrimento.

As razões para se assistir esse documentário são óbvias, pois ele definitivamente nos coloca face a face com a crueldade e os arrependimentos, mesmo que tardios, bem como em deixar evidente um lado da história abafado e distorcido sobre a imagem divulgada sobre os comunistas ou revolucionários. Com este material é impossível evitar comparativos com momentos históricos no nosso país e de outros países no mesmo período, onde a ditadura militar também perseguiu, torturou e executou milhares de civis com a mesma crueldade e justificativa, dos quais muitos ainda são classificados como desaparecidos. Todas essas ações brutais foram apoiadas pelos Estados Unidos em políticas anti-comunistas que divulgavam aos governos ações de contenção e erradicação de qualquer movimento revolucionário, além de infiltrar e interferir diretamente em políticas sociais de outros países nas décadas de 60 e 70. A opressão sofrida pelos comunistas ou revolucionários ultrapassa uma simples posição política para se tornar claramente um genocídio injustificável. Como dito por um dos próprios comparsas de Anwar, contar e reproduzir a realidade dos fatos é mostrar para as pessoas que a História enganou a todos quando julgaram os comunistas como pessoas perigosas e cruéis, pois não foram eles quem executaram dezenas de milhares de pessoas ao redor do mundo da maneira mais brutal possível, destruindo e trazendo consequencias irreversíveis a milhões de outras pessoas. Também é impossível ignorar que, apesar dos pesares, vivemos em um país onde, hoje em dia, temos a liberdade de pensar e expressar nossas idéias, oposições e insatisfações graças a uma democracia que pode não ser 100% eficaz, mas que para algumas nações essa possibilidade ainda é remota mesmo no século XXI e um ideal que não pode nem ao menos ser expressado.

O filme, de 2012, só foi lançado nos Estados Unidos em 2013, o que o levou a concorrer ao Oscar de Melhor Documentário em 2014. Era o favorito até então, mas por razões até meio óbvias (já que o próprio governo norte-americano é responsável), perdeu para A Um Passo do Estrelato (20 Feet From Stardom, 2013). O material foi aclamado pela crítica mundial, mas é visto pelo governo indonésio como uma ameaça e uma fonte de informação enganosa e deturpada sobre os acontecimentos daquela época. O diretor Oppenheimer foi acusado de ter agido de má fé, informando ao governo e aos envolvidos que o material seria usado para um longa metragem que contaria a história dos grupos anti-comunistas, quando na verdade ele foi utilizado para um documentário histórico contra eles, o que é negado pelo diretor. Chegou até a ser comparado com uma reencenação dos crimes nazistas, o que o diretor afirmou estar longe de ser, já que o nazismo foi erradicado, enquanto na indonésia os criminosos ainda dominam.

Prevendo possíveis retaliações e perseguições dos grupos anti-comunistas, 48 pessoas da equipe de filmagem, incluindo o co-diretor, proibiram seus nomes de serem divulgados. Anwar Congo chegou a relatar em um programa da rede Aljazeera que ele tem alguns arrependimentos devido a negativa reação do governo sobre as declarações finais dadas por ele no filme e que agora estão lhe causando grandes problemas. A repercursão mundial ergueu grandes discussões ao redor do mundo, incluindo a ONU e entre os próprios indonésios sobre possíveis intervenções nas políticas humanas do país, mas que as dificuldades são grandes, já que os Direitos Humanos é tido pelo governo indonésio como uma inútil tentativa de controle externo e que não é permitida para dentro de suas fronteiras. Há uma crescente cobrança da população indonésia hoje em dia para que o caso seja aceito pela corte e os responsáveis julgados, muito embora eles não possam mais ser condenados porque os crimes já prescreveram, mas a cobrança de uma retratação pública sobre os erros e crimes cometidos em 1965 é mais do que uma exigência, é um direito.

CONCLUSÃO...
A Arte de Matar é um documentário chocante não por imagens, mas pelas discussões que ele levanta sobre os limites e o total desrespeito aos valores humanos e democráticos, ainda ignorados de maneira arbitrária, opressiva e justificável apenas por aqueles que veem na liberdade o grande obstáculo e o maior inimigo de seus objetivos e ambições. Uma verdadeira aula obrigatória sobre o lado mais cruel do ser humano e até que ponto ele pode chegar para concentrar o poder nas mãos daqueles que não sabem controla-lo.

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