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domingo, 23 de março de 2014

PEDAÇOS QUE FALTAM...

★★★★★★★★
Título: Ferrugem e Osso (Rust And Bone)
Ano: 2012
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Jacques Audiard
Elenco: Matthias Schoenaerts, Marion Cotillard, Céline Sallette
País: França, Bélgica
Duração: 120 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Sobre um ex-lutador de box desempregado que de forma inesperada conhece uma treinadora de baleias, com a qual desenvolve uma relação de confiança, porém de uma estranha e confusa dependência.

O QUE TENHO A DIZER...
Dirigido pelo francês Jacques Audiard, o qual já foi bastante premiado por dois filmes anteriores: De Tanto Bater Meu Coração Parou (De Battre Mon Coeru Sést Arrêté, 2005) e O Profeta (Un Prophète, 2009), o qual também concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010. Com este filme o reconhecimento não foi diferente, chegando a competir pela Palma de Ouro no Festival de Cannes, além de ter sido indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e a Melhor Atriz para Marion Coutillard, e foi por pouco que a atriz também não concorreu ao Oscar em 2013, ficando de fora das finalistas por, talvez, a outra francesa Emmanuelle Riva ter sido indicada.

A história do filme gira em torno do ex-lutador de box, Ali (Matthias Schoenaerts), que agora está desempregado e que migra para Antibes, no sul da França, junto com seu filho de 5 anos, com o qual pouco teve contato até decidir assumir a paternidade já que aparentemente a criança era explorada como mula para tráfico de drogas. Sem dinheiro para nada, Ali vai morar de favor na casa de usa irmã Anna (Céline Sallette), e passa a trabalhar provisoriamente como segurança de uma casa noturna, onde conhece a treinadora de baleias assassinas, Stéphanie (Marion Cotillard), ao apartar uma briga entre ela e outra pessoa. De segurança do clube ele passa a realizar trabalhos ilegais, pois pagam bem, como instalar câmeras ocultas para espionar trabalhadores de empresas ou participar de torneios de lutas de rua. Ali é um homem rústico e temperamental, que não sabe lidar muito bem com seu lado mais sentimental e humano até ser novamente procurado por Stéphanie, que teve parte das duas pernas amputadas devido ao grave ataque de uma das baleias que treinava.

O filme é, na verdade, baseado em duas histórias do livro Ferrugem e Osso (Rusty & Bone), de Craig Davidson, mas nas histórias é um homem quem é atacado por uma baleia assassina. O diretor achou interessante mudar o sexo da personagem na história pelo excesso de personagens masculinos em seus filmes anteriores. Essa mudança trouxe outra dimensão na história, já que a condição da personagem e a sua fragilidade são muito mais acentuadas pelas suas próprias características que são descritas durante a história, como ela ser uma mulher sexy, que gosta de atrair a atenção dos homens simplesmente pelo prazer de se sentir desejada, e de repente se encontra em uma situação isolada, diferenciada e dependente, em que todas as possibilidades anteriores a isso se modificaram em um piscar de olhos. Essa fragilidade também intensifica a brutalidade quase ogra do antagonista e a forma como eles aprenderam um com o outro a diminuir esses excessos e encontrar um equilíbrio considerável.

O papel desempenhado pelo ator belga Matthias Schoenaerts não é muito diferente do desempenhado no filme Bullhead (Rundskop, 2011), tanto que o diretor se interessou pelo ator após assistir esse filme. A brutalidade, rustidez e o temperamento explosivo existem tanto neste personagem quanto no anterior, porém em medidas diferentes (até as cabeçadas que ele dá em determinada parte do filme soam como uma referência ao filme anterior). Enquanto em Bullhead o personagem se encontrava em uma sucessão de fatos desastrosos que nunca lhe davam oportunidades para ver a vida por pontos de vista menos duros e que dessem a ele condições de mudanças, em Ferrugem e Osso essas oportunidades aparecem gradualmente. Isso não significa que gradualmente o personagem irá melhorar seu comportamento e relações, mas que ele levará um choque definitivo de realidade que o colocará em uma bifurcação decisiva: ou continuar no mesmo caminho de erros, ou trilhar um outro mais suave e promissor.

O filme foi divulgado como um drama denso e difícil, muito pela interpretação visceral e cheia de nuances de Cotillard, mas a verdade é que é mais um filme sobre a busca por superações e o aprendizado de conviver com as dores que nos formam. O encontro e conflito desses dois personagens tão distintos, porém com o mesmo sentimento de impotência e incompreensão, mostra como a relação entre pessoas muitas vezes acontece de forma inesperada e que as conectam de alguma forma, como pedaços que faltam, como muletas umas às outras para a continuidade de uma longa caminhada. Ali é para Stéphannie as pernas que ela não tem mais, a base e o apoio, enquanto ela é para ele o foco que ele precisa, a racionalidade e o sentimento que lhe faltam.

Esse apoio é nítido em três situações cruciais no filme, a primeira quando ele a leva para o mar pela primeira vez, a segunda quando ela resolve apoiá-lo durante uma das lutas que ele estava prestes a perder, e a terceira quando, em uma das sequencias finais, ela ameaça desligar o telefone. São três momentos que deixam claro o que cada um doa para o outro e o que isso representa um ao outro.

Essa relação estranha entre os dois personagens é delicada e cheia de significados sutis sobre as noções de amizade, companheirismo, respeito e amor, mas nada de forma cliché ou enfática no drama sem compromisso, pelo contrário, cada dificuldade ou conflito encontrado por cada um deles é mostrado de forma objetiva, como um obstáculo a ser superado e nada mais. Essa relação, embora forte, é por vezes distante e fria. A tensão sexual que existe entre eles é, para ela, a concretização de algo que outrora era efêmero, e hoje se tornou um prazer raro. Para ele é apenas mais uma satisfação, tal qual lutar, tal qual era pra ela treinar suas baleias. Cotillard afirmou em uma entrevista que o que ela mais odeia como atriz é realizar cenas de sexo, mas que nesse filme em particular ela estava tão emocionalmente conectada com a personagem que ela se sentiu feliz pela intensa satisfação que a personagem teria com estas oportunidades. E nem por isso as cenas de sexo são abusivas ou desnecessárias, são os únicos momentos de intensa satisfação da personagem e da total compreensão de Ali em ver Stephanie como uma pessoa por inteiro, e não por partes. Como a atriz mesmo afirmou, se essas cenas não estivessem no filme, haveria um sentimento do espectador de que algo estaria faltando.

Claro que ele não foge de algumas mancadas como a cena na sacada do prédio em que Stéphannie relembra os comandos de treino com Katy Perry cantando ao fundo como se tudo fosse uma coreografia de video clipe, ou de repente Ali passar a ter uma relação complicada com seu filho quando, no começo do filme, a impressão que se tem é completamente inversa. Mas no mais, o filme consegue atingir o impacto necessário. Um belo, emotivo e sincero filme, por sinal.


CONCLUSÃO...
Ao contrário do que possam ter promovido, não é um filme pesado ou carregado em tragédias ou dramas. Um belíssimo filme sobre as noções de superação e apoio, além do inesperado encontro de dois personagens que não possuem qualquer afinidade, mas cujos conflitos se encaixam para que o equilíbrio exista e esta superação seja alcançada.

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