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segunda-feira, 17 de março de 2014

PARA SENTIR A DOR, O PESO E O CHEIRO...

★★★★★★★★★☆
Título: 12 Anos de Escravidão (12 Years A Slave)
Ano: 2013
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Steve McQueen
Elenco: Chiwetel Ejiofor, Benedict Cumberbatch, Michael Fassbender, Sarah Paulson, Paul Giamati, Lupita Nyong'O, Brad Pitt
País: Estados Unidos
Duração: 236 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um violinista negro e livre que, no início do século XIX, foi traficado como escravo de Washington para o sul dos Estados Unidos.

O QUE TENHO A DIZER...
O terceiro filme dirigido por Steve McQueen, o mesmo diretor de Fome (Hunger, 2008) e do controverso e aclamado Shame (2011), dois filmes em que o diretor chega sempre aos extremos e tira os expectadores das zonas de conforto, todos também estrelados pelo ator Michael Fassbender. Claro que com esse título ele não faria diferente, mas agora se baseia no livro homônimo escrito por Salomon Northup, publicado originalmente em 1853 e que conta sua história e tragetória de doze anos como um escravo no estado de Louisiana, nos Estados Unidos, mesmo sendo ele um homem livre.

Depois do sucesso de crítica e público da saga de vingança chamada Django Livre (Django Unchained, 2012), a mídia o taxou como o único filme Hollywoodiano que tratou sobre a brutalidade da escravidão norteamericana de forma crua e próxima da realidade, mesmo tendo os exageros cinematográficos do diretor e sua perspicaz ironia. O próprio Tarantino chegou a alegar o mesmo, dizendo que seu filme fez mais que isso, ele chamou a atenção para reerguer o questionamento de até onde o orgulho e a ganância dos norteamericanos foi capaz de chegar por não apenas maltratar, torturar e matar os negros, mas também a população nativa indígena, e ambos sofrendo consequencias disso até os dias de hoje.

Mas enquanto Django foi uma ficção de ação e romance, com pitadas de drama histórico, era um tanto óbvio e previsível que Hollywood necessitasse abordar novamente o tema, mas de forma mais dramática e apelativa.

Não há como negar que, embora 12 Anos seja um belo e pesado drama histórico sobre um período desumano e cruel que foca a vida de apenas um exemplo dentre milhões de vítimas que existiram, ele foi feito para cumprir seus propósitos de sensibilizar seus espectadores, também reerguer as mesmas discussões e figurar entre os grandes festivais de cinema e premiações. Tanto que a obra a ser adaptada foi escolhida a dedo pela produtora de Brad Pitt, a Plan B. O filme não apenas pegou carona no caminho aberto por Django, como também foi lançado em uma época política muito propícia nos Estados Unidos, quando o único presidente negro da história do país sofre uma queda de popularidade constante. Pode parecer absurdo, mas é o cinema Hollywodiano dançando conforme a política do país.

Embora o livro tenha sido um best seller no período em que foi lançado, com uma tiragem de 30 mil cópias, ele caiu no esquecimento histórico e público por mais de um século, sendo redescoberto na década de 60 por dois historiadores de Louisiana que pesquisaram e traçaram novamente toda a jornada vivida por Solomon. Toda essa pesquisa se transformou em uma nova edição do livro, lançada em 1968, contendo anotações históricas resgatadas de acordo com a narrativa em primeira pessoa de Solomon Northup em sua obra. O próprio diretor afirmou em várias entrevistas que o que mais o chocou foi por nunca ter tido conhecimento da existência do livro até 2008, época em que ele estava engajado na idéia de contar uma história sobre a escravidão norteamericana, mas não conseguia desenvolver um projeto que realmente o interessasse. Foi então que sua mulher encontrou e apresentou a ele uma cópia do livro, que imediatamente chamou sua atenção por ser para os Estados Unidos o equivalente ao que é O Diário de Anne Frank para os alemães, porém lançado 97 anos antes das memórias de Anne.

Frente a isso, o filme foi bastante aclamado e seu destaque na mídia foi tão grande que já figura como um forte produto histórico do cinema norteamericano, o que também resultou na decisão do governo em distribuir o livro para todo o ensino médio dos EUA, um fato raro e respeitável.

Sem dúvida ele consegue cumprir esse papel de representação histórica, muito embora ele não conte ou tente definir de alguma forma, ou em quais circunstâncias, Salomon não apenas era um homem negro e livre como também uma figura social respeitável em Nova York antes de ser traficado como um escravo para o Sul do país. Também é um pouco confuso a forma como esse tráfico ocorreu, já que os poucos flashbacks que o filme mostra não deixam claro se os responsáveis foram mesmo as pessoas que o contrataram para uma temporada de trabalho ou se o sequestro ocorreu posteriormente a isso. Para o desenvolvimento do filme essas explicações podem não ser muito relevantes, pois talvez não haja informações claras sobre isso na própria obra, mas para um embasamento histórico maior no período em que o filme se situa, deixar essas circunstâncias legais um pouco mais evidentes teria dado maior fundamento e densidade não apenas para a história em si como também para aqueles que desconhecem esse delicado e complicado período de transição social nos Estados Unidos que durou quase um século.

Nos demais quesitos tudo se desenvolve como deve: McQueen segue a direção mais segura possível em cima de um roteiro que, embora tente se manter coeso o tempo todo, ainda passa uma leve sensação de que alguma coisa poderia ter sido melhor como, por exemplo, a passagem de tempo. Só temos a percepção de que 12 anos se passaram porque este é o título do filme, mas nunca temos essa sensação além dos poucos cabelos brancos que Salomon apresenta na sequencia final.

Não há como negar que é um filme difícil de ser assistido, duro de ser engolido, pois embora não tenhamos a percepção do tempo ou haja o excesso dramático com a belíssima trilha sonora, porém apelativa, já que não evita invadir cenas para incentivar o sentimentalismo fácil, nada disso, ou nenhum dos poucos defeitos que o filme apresente vai mudar o fato de que o que Salomon viveu, ou qualquer outro negro tenha vivido durante a escravidão (ou ainda viva), reflita a total e completa falta de noção de humanidade e da consciência de igualdade entre as pessoas como homens e seres humanos, seja biologicamente ou baseados na fé e na crença divina, questionamentos bastante recorrentes durante o filme.

Há também um fato muito importante de que, embora seja um filme histórico, sobre relatos do início do século XIX, ele ainda se mantém atual, já que o tráfico de humanos para servidão semiescrava ou escrava ainda é recorrente e de preocupação mundial que não se restringe mais a apenas negros ou a faixas etárias. Pessoas de todas as nações constantemente são sequestradas, traficadas, perdem total contato com suas famílias e são categorizadas como desaparecidas. Muitas perdem suas vidas neste tempo, poucas conseguem retornar anos depois de dadas como mortas, tal qual como ocorreu com Salomon Nurthop.

As individuais noções de sobrevivência e do sobreviver também são transpostas com muita efetividade pelos personagens, incluindo seus questionamentos, mas isso novamente é graças ao elenco escolhido mais do que pelo roteiro. Chiwetel Ejiofor se mantém dentro de uma situação tão limítrofe entre a desistência e a fé que apenas a sua base familiar e as memórias que lhe restam conseguem ser suficientes para que ele não se exceda nem para um lado ou para o outro. A performance da mexicana Lupita Nyong'O realmente é notável. Embora ela seja quase que uma sub-coadjuvante, pois sua participação é mais consistente só na metade final do filme, a constante brutalidade que ela sofre principalmente pela mulher ciumenta de seu dono (vivida pela também ótima Sarah Paulson) são tão chocantes e de intensidade dramática tão forte que os momentos mais deprimentes não são durante as surras ou enquanto seus companheiros cuidam da sua carne dilacerada pelo chicote, mas nos sutis momentos em que ela aparece em cena inesperadamente, que com apenas um olhar, uma atitude, já subentende-se de imediato outros maltratos e abusos sofridos, mas que não foram mostrados em cena, além da dor que ela carrega por saber que sua vida será um constante sofrimento sem fim e sem qualquer oportunidade de escolha, até mesmo para tomar um banho. Aliás, esta sequencia, que é o ápice dramático da personagem, é de um impacto tão grande e chocante que deixa evidente o total descaso e a falta de consideração dos humanos pelos seus semelhantes. O destaque e reconhecimento da atriz obtidos pelo papel é mais do que merecido, bem como dos demais atores como Michael Fassbender, a já mencionada Sarah Paulson e até mesmo Paul Giamati, que tem uma participação pequena, mas surpreende ao sair totalmente dos personagens cômicos que já representou antes. Brad Pitt também faz uma ponta, mas é fraco, forçado e caricato, talvez a interpretação mais esquecível quando comparado com tantos grandes momentos de cada um dos demais.

Cheio de cenas memoráveis, talvez uma das mais tocantes e significativas seja na sequencia em que estão todos os escravos cantando pela a morte de um companheiro, e aos poucos Solomon se rende ao costume e a louvar com uma intensidade crescente e emocionalmente infinita, tanto que a música gospel negra, depois dessa cena, passa a fazer muito mais sentido, pois essa transcendência que esses cantores alcançam é a mesma que o personagem também alcança, e tudo isso se explica na cena por si só.

O filme assustadoramente custou US$20 milhões, um orçamento bastante baixo para uma produção de extrema qualidade, e é considerado um grande sucesso, pois já arrecadou mais de US$150 milhões no mundo. Ele concorreu a 9 Oscars, vencendo apenas nas categorias de Melhor Filme, Melhor Atriz Coadjuvante e Roteiro Adaptado, categorias merecidas, muito embora na categoria de Melhor Filme havia outros grandes concorrentes, mas era previsível, já que como afirmei em posts anteriores, a Academia não apenas é formada em sua maioria por membros antigos e conservadoras como também viram nesse filme uma obrigação em premiá-lo para camuflar um rascismo que ainda é latente nos EUA, no cinema e no mundo.

CONCLUSÃO...
É mais um filme respeitável do diretor Steve McQueen, mesmo que dentro de uma produção segura, mas que deve ser aceita como um produto cinematográfico relevante para a história e para a consciência pública de que atos desumanos são inaceitáveis independente de sua época. Embora tenha uma faixa etária definida, deve ser assistido por todos, sejam eles crianças, jovens ou adultos, para que todos tenhamos consciência da dor, do peso e do cheiro desagradável de ter a dignidade completamente anulada.

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