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quinta-feira, 30 de julho de 2020

JOGO DO PODER E DA NARRATIVA...

★★★★★★★☆☆☆
Título:
 The Morning Show
Ano: 2019
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Vários
Elenco: Reese Witherspoon, Jennifer Aniston, Steve Carell, Mark Duplass
País: Estados Unidos
Duração: 60 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Os bastidores de um programa de notícias matinal, após escândalos envolvendo um de seus apresentadores, transforma o ambiente em um campo de guerra pelo poder e da narrativa.

O QUE TENHO A DIZER...
É inegável que The Morning Show é bem produzido, com uma história que não é nova, porém interessante da maneira como é conduzida.

Não é uma comédia, embora seu elenco seja predominantemente de atores que vieram do gênero; não é um drama denso porque ele não é melodramático, mesmo havendo momentos para tal; não é um suspense, embora haja situações bem tensas. Também não é uma série biográfica, mesmo tendo muitos elementos da realidade por trás da indústria do entretenimento, da manipulação, do sexismo e do patriarcalismo.

Contando a história fictícia dos bastidores de um dos programas mais assistidos da televisão, tudo parece virar uma maré de azar quando Mitch (Steve Carrell) é denunciado anonimamente sobre sua conduta sexual inadequada há anos dentro do ambiente de trabalho, sendo demitido apenas algumas horas antes do programa ir ao ar e da notícia ser publicada, deixando sua parceira, Alex (Jennifer Aniston), com quem dividia a bancada há 15 anos, sozinha como alvo de choque para toda a polêmica.

O peso da responsabilidade de ter de salvar a audiência do programa, de sua imagem e reconquistar a confiança do público cativo junto à falta de apoio de sua equipe de produção, que escondeu o fato até o último instante, a leva a um colapso nervoso. O dono da emissora UBA, junto a Cory (Billy Crudup), chefe de programação, se aproveitando da situação vulnerável em que ela se encontra, começam a traçar planos para manipular a narrativa e desviar as atenções para amenizar os danos causados pela inesperada bomba que desestabilizou os bastidores de um programa que sempre se pautou conservador.

No meio de tudo isso há Bradley (Reese Witherspoon), uma jornalista de um pequeno canal que viraliza nas redes sociais após ser gravada aos berros contra um homem que agrediu o seu câmera durante a cobertura de uma manifestação. Taxada como difícil e instável, ela se demite após ter sua conduta reprimida pelo seu chefe.

A situação se mostra favorável para Cory transforá-la num bode expiatório perfeito para sensacionalizar mais ainda toda a questão envolvendo as polêmicas do The Morning Show ao tentar engatilhar uma inimizade e uma dissimulada competitividade entre ela e Alex. Mas aquilo que parecia um excelente plano ousado de contingência para garantir a audiência e os patrocinadores, vira um arriscado jogo de poder e narrativa onde a conduta questionável de todos é posta a prova e uma guerra moral emerge.

Esse resumo é apenas a ponta de todo iceberg da mirabolante trama apresentada. Há muito mais que acontece em apenas os três primeiros episódios do que se pode imaginar, e é dessa forma bem rechonchuda que toda a série se desenvolve por seus 10 episódios.

Vale fazer um parênteses aqui de que conduta sexual inadequada é diferente de assédio ou violência sexual, e essa confusão é bastante comum. No caso abordado na série, seria um indivíduo se relacionar sexualmente com outros colaboradores com consentimento, mas essas relações darem margem a possibilidade de se estabelecerem outras relações de poder, imposição ou de interesse além do estabelecido profissionalmente.

Não é para menos que a série foi um imediato sucesso para uma estréia original da Apple TV, bem como uma das mais comentadas entre 2019/20. Uma das mais caras também logo em sua primeira temporada, onde apenas o salário das duas atrizes principais somam US$4 milhões por episódio. Portanto, é evidente que a Apple iria fazer de tudo para que não houvesse erros no processo. E muito de seu êxito, sem dúvida, é das atrizes, que também são as produtoras executivas. Witherspoon, que já está bastante gabaritada no assunto ao também ter produzido os sucessos Big Little Lies e o igualmente recente Little Fires Everywhere, incrementa com Aniston o discurso da sororidade que tem promovido na indústria nos últimos anos e que está dando muito certo com produções de inegável qualidade e que tem fortalecido o protagonismo feminino que sempre foi ignorado.

É claro que, não por essas razões, o produto final não apresente defeitos, muitos deles vindo do roteiro que, com tantas tramas, subtramas e constantes conflitos e reviravoltas, dá uma derrapada aqui e alí no desenvolvimento dos personagens ou em algumas motivaçôes rasas que poderiam ter ficado de fora para dar mais foco a coisas mais relevantes. Como o personagem de Steve Carell, que no fim das contas é irrelevante e esquecível, embora aparente não ser pelo foco que a produção dá à imagem do ator. Sua trama poderia ter sido embutida em qualquer outro personagem, fazendo dele um excesso desnecessário, que mais desvia a atenção do que agrega. Sua interpretação também é exagerada, apelando no tom dramático em vícios de interpretação característicos, como a forçar a impressão de que ele domine como ninguém a arte do improviso, mesmo que tudo seja roteirizado.

Maneirismos e vícios interpretativos também são o que impedem Aniston de dominar como poderia, desperdiçando a excelente oportunidade de finalmente se desvincular de Rachel Green de uma vez por todas. Igualmente peca no excesso assim como fazia em Friends, não havendo um momento que ela consiga manter a sobriedade de uma cena sem sair do tom com algum exagero caricato e desmedido, inclusive naqueles momentos onde o silêncio diria mais do que qualquer ação. Mas ela não consegue se conter. A desestabilidade emocional e psicológica de sua personagem justificam, mas seus exageros se tornam cansativos porque não são bem dosados ou dirigidos. E tudo sempre acaba com uma bufada ou um suspiro alto, de toda maneira possível e imaginável.

Ou seja, para Aniston e Carell, The Morning Show se torna uma oportunidade para ambos desenvolverem mais uma vez os mesmos personagens histriônicos e egocêntricos do passado assim como fizeram em Friends e The Office respectivamente, mas agora com um leve viés dramático, ao invés de inovarem como um todo, assim como ela fez em Cake (2014) ou ele em A Grande Aposta (2015), trabalhos excepcionais, diga-se de passagem. Sim, há momentos em que ambos conseguem desenvolver cenas dramáticas intensas, mas na maioria das vezes aquela sensação de tudo ser uma mera piada fica no ar, como no momento em que Alex tem uma crise emocional ao entrevistar um homem que salvou 50 cachorros de um incêndio na Califórnia, a interpretação de Aniston a princípio parece uma chacota, não sendo coerente com a instabilidade da personagem que a cena tinha a intenção de passar.

Witherspoon também não escapa com sua personagem, mas aqui o erro vem do próprio roteiro, que a todo momento a coloca em situações contraditórias, como defender um jornalismo verossímil, mas acabar parando na bancada do programa que ela mais criticava. Ou se tornar vítima de si mesma a todo tempo, jogando-se em situações constrangedoras quando podia ter evitado, e depois se vitimizando por isso. A sensação de que Bradley é utilizada apenas como um objeto de interesses não convence como deveria porque essa imagem de pessoa ingênua e altruísta que às vezes tentam desenvolver para justificar suas decisões impulsivas não encaixam com toda a sagacidade que sua personagem tem.

As idas e vindas de situações, clássico e cliche elemento dispersivo, muito utilizado em séries para dar a falsa expectativa ao espectador de que a trama seguirá outro caminho apenas para estender a narrativa, voltando para o ponto de partida logo depois, é incansavelmente usada aqui. É um show de personagens que pretendem fazer algo, mas desistem, para depois voltarem atrás e darem continuidade àquilo outra vez, apenas para o roteiro comer minutos desnecessários do tempo e da paciência de quem assiste

Exageros criados para intensificar a dramaticidade, e que surpreendentemente funciona mesmo assim. Ao mesmo tempo que personagens e roteiro muitas vezes se chocam sem sentido, a construção da idéia e o desenvolvimento das situações encobrem esses deslizes e faz do seriado um atraente produto para entreter e inevitavelmente nos questionar a todo instante quem é que está certo e quem está errado, e de repente toda suposição que criarmos se inverter até mesmos em situações bastante óbvias. De forma impressionante é que os coadjuvantes tem seus espaços bem definidos e nenhum deles é esquecido, havendo oportunidade para todos crescerem e se desenvolverem bem nas tramas.

Como um todo, é um Game Of Thrones dos dias atuais, onde o império da indústria midiática é pautada como um grande símbolo consumista, imoral e parcialista como de fato é, sempre foi e será.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

KYLIE E DISCO MUSIC, INSEPARÁVEIS POR NATUREZA...

Título: Say Something
Ano: 2020
Gênero: Pop, Dance, Electronic

SOBRE O QUE É A MÚSICA?
É o primeiro single do álbum Disco, a ser lançado em novembro, em que Kylie irá voltar às suas características Dance novamente com fortes influencias da Disco Music.

O QUE TENHO A DIZER...
Embora este seja um blog sobre cinema, onde comento sobre filmes que assisto, resolvi hoje fazer algo de diferente: comentar sobre o novo single de Kylie Minogue.

A primeira razão é porque sou fã, tanto da cantora quanto da pessoa, uma figura bem única e cativante para quem segue sua carreira há tanto ou mais tempo do que eu. A segunda razão porque eu não tinha outro espaço para fazer isso. A terceira porque fui pego de surpresa logo às 7h com a música sendo lançada mundialmente nos principais serviços de streaming. E a quarta e principal razão é que, desde quando ela anunciou o novo álbum, entitulado Disco, a expectativa tem sido grande por todos os lados, seja depois da boa receptividade que seu último álbum teve, da sua participação no Festival de Glastonbury no ano passado (que levou a ser a edição mais vista na história do Festival por conta de sua participação), seja pelo seu oficial retorno a um estilo que a colocou como referência no cenário.

Então vamo lá porque o papo vai ser longo...

Desde quando Kylie se reinventou com Impossible Princess (1997), naquela época ela havia sido motivada pelo seu namorado a não ter medo de ousar. E assim o fez. Falamos aqui do vocalista do INXS, Michael Hutchence. Kylie sofreu não apenas com o fracasso comercial do álbum naquele ano, mas também com o falecimento do cantor um mês depois de seu lançamento. Embora tenha recebido críticas positivas e hoje em dia seja considerado uma jóia única e quase sagrada pelos fãs mais antigos, ele não sobreviveu comercialmente naquela época. Esse revés colocou a cantora de frente a um abismo. E embora tenha sido um quase-suicídio na carreira, em 2000 ela voltou mais forte do que nunca com o álbum Light Years.

Impulsionada pelo primeiro grande revival da Disco Music no sucesso de Cher com o álbum Believe (1998), e da modernização da Euro Dance nos anos que se seguiram, Light Years não é apenas uma parte boa dessa entressafra duvidosa que sempre acomete a indústria musical entre uma década e outra, mas acima de qualquer coisa, é um resgate sólido e emocionante da Disco Music no seu mais perfeito exemplo em faixas como Spinning Around, Disco Down, Butterfly, Your Disco Needs You, So Now Goodbye, e uma pérola da perfeição que é sua faixa título, releitura à sua própria forma do clássico I Feel Love, de Donna Summer, a mesma que Madonna também viria a utilizar como referência fundamental seis anos mais tarde em Future Lovers, do álbum Confessions On A Dance Floor.

Desde então Disco Music e Kylie Minogue falam a mesma língua. O Dance, o Pop, o eletrônico e suas demais vertentes, revitalizações, experimentações e tendências são sempre a base de tudo que ela faz porque ela se movimenta junto com esse nicho do mercado, mas a sonoridade da glamurosa era dos dos anos 70 não apenas é uma inspiração forte em qualquer trabalho pós-Impossible Princess, como também se firmou como uma identidade natural e indivisível de sua personalidade musical.

O álbum Fever, lançado apenas nove meses depois de Light Years, é como uma continuação do anterior, mas ao invés de ser "mais do mesmo", como se imaginaria, traz o senso de continuidade como um conceito evolutivo, que se embasa na Dance Music européia moderna sem deixar de flertar constantemente com a Disco em suas melodias cadenciadas e refrões simples, embalados como hinos em vocais soprosos e sussurantes, como em Can't Get You Out Of My Head ou Come Into My World.

Mudam-se os estilos e as referências, porém, álbum após álbum, Kylie sempre nos presenteia com alguma nostalgia referente à era de ouro das discotecas. A última e mais memórável, na sua parceria com Giorgio Moroder em Right Here, Right Now, de 2015, lançada em uma excelente época para quebrar um pouco do distanciamento comercial que ela se propôs com o álbum Kiss Me Once (2014), que simbolicamente marca uma nova e terceira era na sua carreira. Claro que podemos também citar sua rendição a regravação de Night Fever em 2016, clássico dos Bee Gees que, na sua versão particular, consegue o inacreditável feito de ser tão boa ou melhor que a original. Há também a releitura Disco para a Golden Tour do seu primeiro sucesso, o clássico The Locomotion, um dos melhores momentos da sua última turnê e que até pode ser uma prévia inspiradora desse seu novo álbum.

A cantora tem se aventurado em terrenos mais pessoais desde então, aflorando suas experiências com letras que, mesmo dentro de uma construção tipicamente pop, tenham significados mais relevantes para ela como pessoa e artista. É ela tendo agora o privilégio de ousar sem medo de errar, uma certa independência conquistada por anos na indústria e pela sólida base de fãs.

O álbum Golden (2018), lançado no mesmo ano em que ela completou meio século de vida, seguiu quase que a mesma tendência de Fever, no sentido de ser uma continuidade de algo para uma evolução. Mas aqui, a evolução não é musical, mas no sentido existencialista de uma pessoa que atingiu seus 50 anos. Influenciada pelo cenário artístico de Nashville e da música Country, Kylie pode não ter abandonado o eletrônico, mas essas influencias são nitidamente sentidas em suas letras e na maneira que ela as compõe, traços já visíveis de mudança desde seu trabalho de 2014.

E depois de narrar toda essa jornada é que o novo single entra no assunto, porque ele é um resultado de todos esses mais de 30 anos de carreira.

Lançar um novo álbum entitulado Disco, principalmente depois de Light Years e Fever, parece um tanto pretensioso ou uma repetição do mesmo tema para uma cantora que já explorou esse estilo das mais variadas formas. Afinal, o que mais de novo ela propõe com ele? Segundo ela: "músicas Disco maduras, para pessoas maduras". E "maduro" aqui não é uma questão de idade, mas de músicas que não soem fúteis ou esquecíveis, e que extraiam das pessoas emoções simples e honestas, que as façam ter sentido de existir e agregar ao mesmo tempo que se divertem e interagem com elas num momento onde isso tem sido perdido gradativamente nos últimos anos.

E é por essa razão que Say Something é tão acessível, como se tivesse sido feito especialmente para a pessoa que a ouve porque toda essa proposta está embutida nela. E como o primeiro single dessa nova safra, para aqueles que esperavam algo destruidor ou retumbante, com uma vibe tipicamente Moroder, ou algo aos moldes do que Madonna fez com seu Confessions, ou uma mera reprise da já reprise Say So de Doja Cat, irá se enganar e se frustrar profundamente. Kylie igualmente não faria uma mera reciclagem de suas eras de 2000 e 2001, portanto esta não é uma faixa Disco em sua excelência. Na verdade, é um misto de vários sentimentos e estilos numa música que irá estranhar alguns por ser, dentro das proporções, um tanto imprevisível.

A imprevisibilidade começa na introdução, quando em meio às batidas sintetizadas, ao invés de um solo de baixo, como se esperaria de uma carro-chefe de um álbum que tem a tendência de ser fundamentalmente Disco, entra o de uma guitarra, remetendo a uma era entre a pós-Disco, o New Wave e o Synth Pop, muito mais do que a Disco de fato. Talvez uma referência ao próprio Hutchence e sua música Need You Tonight, já que o solo de guitarra dessa música se adequou com perfeição aos vocais de Kylie quando ela regravou a mesma para a turnê de Kiss Me Once, ou também uma suave lembrança à característica guitarra de U2 em um outro solo que se estende discretamente por toda a segunda metade da música, compondo todo um outro charme e certa organicidade no ápice da canção.

A produção de Richard Stannard, o mesmo que produziu Kylie em Light Years e Fever, já conquista nos primeiros 30 segundos, pois se tem algo que ele sabe fazer muito bem são batidas e ganchos sonoros. E é dessa forma que ele segura essa atenção até o refrão entrar pela primeira vez.

O refrão é aquele momento crucial de uma música que já começa da sua melhor forma, que é sentido que irá evoluir para o hino que aparenta vir a ser. Mas repentinamente se quebra, deixando todo mundo que já se preparava pra se jogar de dançar paralisado no mais puro vácuo. É algo que não se espera em absoluto, principalmente vindo de Kylie, que sempre prezou por refrões melodiosos e grudentos, às vezes repetidos infinitamente ao longo de toda uma música. Acreditei que fosse parte da construção, aquela quebra proposital para a música dar apenas uma amostra do que estar por vir, e a partir dalí voltar a embalar seu ouvinte para finalmente se estruturar num crescente completo até estourar de fato, como acontece depois que o refrão entra pela terceira vez na música Light Years, um orgasmo sonoro por definitivo.

Ao contrário disso, quando o refrão entra pela segunda vez... ele não decola de novo. É como se algo estivesse errado. Why don't you say something? É a pergunta que ela faz. Sem nos dar resposta, é como se ela quisesse que nós mesmos fizessemos essa pergunta de volta para a ela. E depois de um milésimo de segundo de vácuo, que chega a parecer uma eternidade, seus vocais voltam numa bridge lenta e quase etéria para ligar a primeira parte da música com a segunda, as quais isoladas soariam distintas.

É num verso repetitivo, numa melodia que remete bastante às bridges de Into de Blue e Dance, que Stannard finalmente faz uma mágica, e Kylie, na sua versatilidade, transforma esse verso em um novo refrão, sendo com ele que ela irá até a música acabar. É sua resposta ao silêncio que caiu como um peso morto antes, imprimindo nisso a marca registrada de seu estilo, aquilo que podemos considerar "uma faixa Kylie".

Aí, sim, a música evolui e decola numa referência Disco de fato, tanto em estrutura quanto na sinestesia melódica, quase como Donna Summer e suas diversas variações vocais que faz com a frase "I Feel Love". É como se ela nos levasse para o passado, pegando essa fase da pós-Disco e nos levando a uma viagem retroativa ao tempo em apenas alguns minutos, como a querer dizer que a jornada vai partir daqui, dos anos 80, e num Step Back In Time, estaremos onde ela exatamente quer que estejamos.

Também é bastante nítido como Kylie entrou em um outro padrão nos últimos anos. Quando ela canta os primeiros versos é um tanto impossível não se lembrar de Feels So Good, uma das mais memoráveis de Kiss Me Once, ou inclusive da própria faixa título desse álbum e a pessoalidade com que as interpreta. As melodias são próximas. A estrutura lírica também se aproxima muito daquilo que ela fez em Golden, e de como essas influências do Country aperfeiçoaram essa sua nova tendência de transformar emoções e sentimentos cotidianos em versos e metáforas de linguagem universal, com questionamentos simples e importantes sobre a vida com delicadeza e sem qualquer pieguice (alguém diria que Dance é uma metáfora sobre a morte se ninguém falasse?).

Kylie e Stannard fogem à convencionalidade da música pop nesse trabalho, e da fórmula clássica à qual ambos sempre fizeram parte. Ao longo de seus mais de 3 minutos, pode parecer um tanto desconexo e confuso, e que só não é melhor porque todos os excelentes elementos que ela contém causam essa impressão de estarem um tanto fora de ordem. Mas há uma contextualidade essencial nisso, mesmo que não aparente ter sido o mais inteligente ao apelo comercial e popular, o é dentro de suas intenções. E frente a tantos resgates oitentistas e noventistas bastante previsíveis, como os recentemente lançados por Lady Gaga e a Dua Lipa, Kylie se destaca aqui mais pela articulação do que pelo apelo radiofônico, alcançando algo próximo do que conseguiu com Can't Get You Out Of My Head, que na época que foi lançado realmente parecia o som de um novo futuro porque tinha uma abordagem bastante diferente do que se fazia na época.

Say Something pode não ser aquela faixa explosiva e imediata que se esperava, mas sem dúvida nos apreende para o bom ou para o frustrante, ao mesmo tempo que, surpreendentemente, há uma magia nela que cativa, conquista e emociona genuinamente, além de um excelente abre-alas para o que está por vir. Um resumo essencial de toda sua carreira, a caracterização em letras e melodias dessa maturidade que ela quer incrementar no estilo.

domingo, 12 de julho de 2020

QUANDO SER IMORTAL CANSA...

★★★★★★★★☆☆
Título: The Old Guard
Ano: 2020
Gênero: Ação
Classificação: 16 anos
Direção: Gina Prince-Bythewood
Elenco: Charlize Theron, Kiki Layne, Matthias Schoennaerts, Marwan Kenzari, Luca Marinelli, Chiwetel Ejiofor, Harry Melling
País: Estados Unidos
Duração: 121 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um grupo de mercenários imortais tem suas identidades descobertas e agora lutam para não serem capturados e explorados por uma corporação.

O QUE TENHO A DIZER...
Enquanto Charlize Theron filmava a adaptação da novela gráfica Atômica (2017), ela recebeu em mãos uma cópia de outra história. Era The Old Guard.

Após ler as primeiras páginas, achou suficientemente interessante para transformá-la em filme. Sem perder tempo, foi o que aconteceu em 2019.

A atriz vem afirmando há anos que é fã de filmes de ação, e agora se engajou a produzí-los para compensar a injustiça existente num estilo apropriado por homens desde quando o cinema era mudo. Com a intenção de fazê-lo com representatividade, suas investidas tem dado certo e são muito bem vindas.

É também com bom humor que ela, em uma entrevista recente, contrariando o que muita gente esperava, jurou que nunca foi convidada para participar de qualquer produção da Marvel, mas que ao mesmo tempo não se importa porque está tendo oportunidade de pavimentar seu próprio caminho no gênero como produtora e atriz, e isso tem sido divertido. Essa afirmação é importantíssima para mostrar que a liderança feminina na indústria, no sentido de mulheres terem a oportunidade de traçarem seus próprios objetivos e projetos, não é uma opção, mas uma conquista cheia de obstáculos. A opção ainda é privilégio dos homens, pois o predominio masculino na indústria é real.

São os bônus da atriz sul africana ter se tornado uma estrela de primeira grandeza em Hollywood, a liberdade de agora poder decidir fazer o que quiser. Bonus que um ator teria com muito mais facilidade se, da noite para o dia, apresentasse um projeto de dirigir ou produzir um filme de grande orçamento a um estúdio, sem a necessidade de esperar se tornar um grande astro para tal. E sempre foram esses os ônus das mulheres na indústria.

Vencedora de um Oscar e indicada outras duas vezes, Charlize não é brincadeira. De Uma Saída de Mestre (The Italian Job, 2003) a Aeon Flux (2005), de Atômica (Atomic Blonde, 2017) a Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2018), entre dramas e comédias de sucesso, ela provou que, independente de altos e baixos, pode oferecer tudo aquilo do que o gênero se alimenta de igual forma, e que as mulheres também precisam de oportunidades mesmo depois de fracassos, porque é assim que a indústria faz com homens que fracassam, sem questionar.

É depois de assistir esse seu novo filme de ação que observamos que ela está certa. Mesmo tendo defeitos, como algumas sequências parecerem arrastadas demais e uma trilha sonora que infelizmente empobrece toda a qualidade visual, dando uma sensação de ser um filme barato que na verdade não é, devemos dar a ele créditos mesmo assim, e perceber que muitas das críticas negativas que tem recebido são muito mais por preconceitos latentes do que pelos próprios defeitos que estas dizem existir.

Para aqueles que sentem saudades de guerreiros imortais no cinema e que fuja das obviedades de histórias vampirescas para justificar essa condição, The Old Guard tenta se colocar como o Highlander do século XXI, sendo um filme de heróis diferente, que vai contar não a origem, mas o ponto de partida, o momento crucial em que finalmente decidem aceitar o propósito de suas existências ao invés de lutarem contra ele, e que esse poder de sobreviver ao tempo pode ser usado para um bem comum além do que eles acreditavam. Afinal, toda a história tem que começar de algum lugar, e não necessariamente há quatro mil anos antes de Cristo, que é a suposta idade da protagonista.

Claro que há espaço para se desenvolver diálogos que contam brevemente outros fatos e aventuras para aqueles que, ao longo do filme, começam a alimentar a curiosidade em torno do passado desses personagens cativantes, como um deles dizer que lutou ao lado de Napoleão, ou que dois deles se conheceram durante as cruzadas e se matavam constantemente por estarem em grupos que se opunham. Mas talvez a história mais trágica e assustadora relembrada por eles seja da própria Andy, numa consequência tão aterrorizante quanto ser condenado por Sandman ao pesadelo perpétuo, na clássica história de Neil Gaiman. É este o episódio motivador para que a heroína se coloque sempre à frente para defender seus companheiros, pelo medo secular que a assombra de que a história possa se repetir outra vez tanto como muitas outras que presenciou.

Mesmo que o maniqueísmo seja bem óbvio, intensificados por um vilão bastante caricato e estereotipado como os encontrados em qualquer filme do gênero, os conflitos que o roteiro traça na linha narrativa também conseguem ir além disso.

Greg Rucka, roteirista e escritor da obra homônima, aborda reflexões mais pessoais, em como finalmente deixar para trás lembranças de tudo do bom e do ruim que os heróis já viram da humanidade. Rucka também desenvolve a idéia de que o resultado dessas experiências amargas é o que os deixaram resilientes e introspectivos, ao mesmo tempo que por dentro sofrem com a repetitividade da lembrança de perdas e questionamentos sobre uma sociedade que, com pesar, observam não evoluir. Também sabem que essa mesma sociedade não os compreenderiam se descobrissem que pessoas como eles existem porque um dos grandes méritos da história é nos fazer imaginar a bagagem que se carrega em ser imortal. Ou seja, é inimaginável.

Essa sensação é nítida em momentos bastante intimistas, como o prazer de Andy ao comer um doce originário do império otomano e a apreensão de seus colegas de ela ser ou não capaz de identificar todos os diferentes sabores e ingredientes nele. Ela não só faz isso como também o reconhece como uma sobremesa legítima, feita tal qual a memória que ela tem sobre ele, talvez, da primeira vez que comeu, sabe-se lá quantos milhares de anos atrás. Uma vida com um plano de fundo simples, onde pequenos prazeres como esse são cultivados em meio ao silêncio respeitoso que eventualmente cai sobre o ambiente e fala mais alto do que qualquer diálogo. Ou o olhar perdido ao passado, nas memórias trágicas ou nostálgicas que a lente das câmeras captam com bastante delicadeza em momentos muito específicos de cada um deles, evitanto a melodramaticidade exagerada, soando até poéticos. Uma sinergia entre todos eles tal qual como a de um casal que se senta mudo a uma mesa, não porque não tenham o que dizer, mas porque já tem intimidade o bastante para respeitarem o silêncio de cada um e apreciar aquele momento e abraça-lo como um presente valioso.

São pontos de vista humanos e agregados à história de maneira bastante natural e comovente que raramente vemos no gênero, tudo isso graças à habilidade da diretora Gina Prince-Bythewood em saber dosar e equilibrar o drama com a inevitável ação numa construção emotiva eficiente. O roteiro conseque a proeza de, inclusive, justificar não de forma muito clara, mas presente, que as decisões violentas do grupo vem de toda essa consciência consequencialista construída a partir de experiências que viveram em outros conflitos ao longo da História. A diretora conseque desenvolver essa sensibilidade dos personagens com êxito nesses momentos, de que cada vida que tiram, mais se distanciam dessa humanidade que emanam, resultando em personagens que já não acreditam mais no futuro, foscos e opacos como lâmpadas cansadas, visível nos semblantes de Andy (Charlize Theron) e Booker (Matthias Schoernaerts).

A diversidade de gêneros, raças, culturas e orientações é ponto importante aqui e reflete, inclusive, dentro do próprio elenco. Nos dá essa sensação natural de que nada disso importa para eles como pessoas. Em nenhum momento o roteiro coloca os personagens a questionarem qualquer coisa relacionada a isso. Ninguém se coloca melhor que alguém por acreditar que tem ou não algum mérito ou um privilégio. Andy é respeitada e naturalmente uma líder porque é a mais experiente de todos, mas é compreendido que as decisões são sempre conjuntas, há independência e respeito por todos os lados, e que o senso de irmandade se sobrepõe a qualquer construção social. Com excessão de um momento muito específico, em que Joe (Marwan Kenzari) e Nicky (Luca Marineli) são capturados por um grupo de soldados e moralmente assediados, fazendo Joe declarar um monólogo que ultrapassa a superficialidade preconceituosa exposta, o filme se mantem o tempo todo forte nessa proposta diversa, porém unitária, numa prática óbvia e não planfetária.

É claro que estamos falando de um filme de ação, e é o que não vai faltar. Muito tiro, porrada e bomba, muita briga belamente coreografada e sequências para agradar até amantes de Rambo. A crítica especializada tem sido bem receptiva pois compreende a técnica, já a resposta da crítica leiga tem sido bastante mista porque o filme realmente tenta quebrar determinados padrões enquanto mantém clichés óbvios para garantir o desenvolvimento que se espera de um longa como esse e lembrar o espectador a todo momento que aquilo é um entretenimento. Então, qualquer elemento que seja um diferencial parecerá defeito para quem está acostumado apenas com o óbvio, ou que só agora resolveu aumentar o nível de exigência apenas pelo prazer de contrariar.

Mas ao mesmo tempo que essa parte do público tem criticado negativamente os clichés pontuais e do vilão caricato presentes, é esse mesmo público que enche as salas de cinema para, há 24 anos, assistir Tom Cruise usando máscara de todo mundo pra se disfarçar e cometendo os mesmos absurdos em Missão Impossível;  dar bilheteria para o 10º filme da franquia Velozes e Furiosos fazer o mesmo que sempre faz com suas piadinhas sem graças para qualquer motivo virar motivo para porrada e explosão de carro caro; ou achar engraçado os robôs de Transformers fazerem rap ou "xixi" na rua. Ou seja, pessoas que tem se incomodado com elementos de ação nesse filme de ação evidentemente o fazem apenas porque falamos de um filme dirigido e protagonizado por mulheres em total pé de igualdade sem ser estereotipado como esperam.

Percebe-se um movimento de ódio e uma antipolitização gigantesca nas redes contra filmes que tentam trazer a diversidade como protagonista de uma história. Ler as resenhas amadoras na página do IMDb chega a ser revoltante em quão infundadas e superficiais são, apenas pela sordidez de menosprezar e rebaixar a pontuação. As críticas que a diretora tem recebido nem mesmo Michael Bay, considerado um dos piores diretores vivos de filmes de ação, já recebeu. É quando uma crítica aponta o corte de cabelo masculinizado de Charlize Theron que, sim, percebemos que a base desse movimento é sexista e atado nos recalques do preconceito. Não que IMDb seja um bom parâmetro para se considerar a opinião pública hoje em dia, mas se tornou um parâmetro para, assim como nas demais redes sociais, observar-se como a cultura do ódio tem se manifestado.

Pois é, não é à toa que a humanidade desmotiva nossos heróis imortais a continuarem vivendo, e nessas horas que ser imortal deve cansar.

terça-feira, 30 de junho de 2020

O CINEMA NACIONAL NO SEU PAPEL...

★★★★★★★★★☆
Título: A Vida Invisível (de Eurídice Gusmão)
Ano: 2019
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Karim Ainouz
Elenco: Julia Stockler, Carol Duarte, Gregório Duvivier, Barbara Santos,
País: Brasil, Alemanha
Duração: 139 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
A história de duas irmãs inseparáveis, porém separadas pela vida e pela vontade dos homens.

O QUE TENHO A DIZER...
A Vida Invisível (de Eurídice Gusmão) é uma filme de mulheres, para as mulheres, e para ser assistido por todos os homens ao lado de mulheres.

É o cinema nacional exercendo o seu papel conscientizador que tão bem consegue fazer, escancarando os defeitos de sua sociedade através de metáforas que não tem medo de mostrar as engrenagens tortas, desdentadas e enferrujadas da hipocrisia que a movimenta e da violência perturbadora que a amordaça. No caso dessa obra, especificamente sobre a relação dessa sociedade que está sempre com/contra as mulheres, estas constantemente diminuídas, reduzidas às necessidades patriarcais e manipuladas a exercerem os sonhos e as vontades de todos, menos os próprios.

O filme do diretor Karim Ainouz, baseado no livro da pernambucana Martha Batalha, é de um niilismo sufocante sobre o destino de duas irmãs muito unidas que se separam ainda jovens. Enquanto Guida foge para a Grécia com um marinheiro por quem se apaixona, Eurídice permanece no Rio de Janeiro com seus pais e um casamento marcado. Eurídice sonha em entrar para o famoso Conservatório de Viena, mesmo que a contragosto de sua família. Mas o maior medo dela é uma gravidez precoce, e o impecilho que isso seria para seus objetivos, tomando o máximo de cuidado possível. Mesmo assim não adiantou por conta das constantes investidas sexuais de seu marido em intercursos muito mais violentos do que românticos e naturais, como se seu objetivo fosse engravidá-la a qualquer custo para provar à sociedade seus valores machistas e igualmente boicotar os sonhos de sua mulher.

E é nesse meio tempo, entre a ida de Guida para a Grécia e seu retorno inesperado, que a vida começa a mostrar para essas duas mulheres que a sociedade não permite que no mundo haja lugar para construirem as coisas às suas vontades. E que tudo não passa de uma farsa construída pelo poder dos homens que as oprimem, as culpam, as responsabilizam, as fazem voltarem-se umas contras as outras, as separam e as isolam, como propriedade. Objetos de servidão cercados, terrenos férteis dos senhores possessivos e privadores.

A história não nos poupa dos constantes apedreijamentos que as irmãs levam do meio que vivem e da violência constante da sociedade masculinizada. Da violação física à psicológica, vemos de tudo um pouco em doses constantes e intensas o bastante para não termos oportunidade de vislumbrar qualquer esperança de que a vida das protagonistas possa ser diferente ou recompensadora.

É um filme que deixa um gosto amargo, e termina com um buraco no peito. Melodramático, mas necessário, e nem por isso deixa de ter sua sutileza, mesmo que violenta e sufocante.

domingo, 28 de junho de 2020

CATIVANTE E HONESTO...

★★★★★★★☆
Título: Eurovision: A Saga de Sigrit e Lars (Eurovision: The Story Of Fire Saga)
Ano: 2020
Gênero: Comédia
Classificação: 10 anos
Direção: David Dobkin
Elenco: Will Farrel, Rachel McAdams, Dan Stevens, Pierce Brosnan
País: Estados Unidos
Duração: 123 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
A saga de Sigrit e Lars para chegarem ao maior festival de música da Europa, o famoso e excêntrico Eurovision.

O QUE TENHO A DIZER...
Eurovision é o maior e mais famoso festival de música europeu que existe. É uma competição musical que anualmente reúne todas as nações européias para os países participantes escolherem uma nacionalidade para representar o continente.

É um evento popular que obviamente mescla talento com exageros performáticos que agregam culturas e caracteristicas nacionalistas que já revelaram inúmeros artistas talentosos e bastante excêntricos quando comparados com os padrões da indústria pop do extremo ocidental. É um evento ultrapop por excelência que, aos olhos estrangeiros, pode parecer antiquado e cômico, porém levado a sério por lá ao trazer consigo a importância de pequenas nações terem seu momento de reconhecimento e destaque por meios que tradicionalmente não teriam com facilidade.

A Eurovision é um evento agregador que promove culturas nacionais, incentiva reconhecimento de nações, promove o turismo, a irmandade, a paz, e festeja a cultura de maneira democrática e emocionante.

E é válido dizer que esse é um projeto pessoal de Will Farrel. O ator e comediante foi apresentado a este festival de música em 2009 pela sua mulher, que é finlandesa, por isso a história parte daquele país. Desde então é apaixonado pelo evento, não perdendo uma edição.

O roteiro, escrito por ele e Andrew Steele, começou a ser desenvolvido em 2017. Foi nesse ano que Farrel conseguiu ter acesso irrestrito aos bastidores para o laboratório que o levaria a colocar no filme, de maneira satírica, muito das experiências que absorveu.

O interessante é que Farrel conseguiu criar uma biografia fictícia que, a princípio, até parece não ser, tamanha a autenticidade com que ele, bem como Rachel McAdams, interpretam o casal de heróis da história. Uma autenticidade que carrega todos os elementos necessários para serem verdadeiros concorrentes do concurso musical.

Essa dúvida cai por terra exatamente pelos exageros das situações, anacronismos e confusões temporais, mas que passam batidos frente a todo o espetáculo constrangedor que Lars faz questão de colocar a dupla a todo momento.

Farrel é um ator, roteirista e produtor que adora lidar com a comédia de absurdos, e aqui ele se sente bastante confortável numa química até surpreendente com a versatilidade de McAdams, que constrói a personagem Sigrit de maneira tão convincente quanto ele.

É uma sátira, com pitadas de paródia, mas respeitosa o suficiente para ser considerada uma homenagem tal qual o ator e roteirista assim desejou. Um musical que tem uma essência interessante, que inclusive até quebra determinados padrões do gênero ao fazer essa jornada da dupla Fire Saga, em buscar um sonho e nada mais, usar esquetes musicais como elementos empolgantes mais do que dispersivos ou entediantes, agradando até mesmo aqueles que não gostam do estilo.

Uma pena que as piadas ou situações cômicas sejam frequentemente esticadas além do necessário fazendo do filme algo mais longo do que poderia, e o egocentrismo megalomaníaco de Lars acaba testando também a paciência do espectador, fazendo o personagem cair no perigo maior da comédia constrangedora, a de a todo momento se tornar vítima de suas próprias ações sem muita necessidade, se desconectando fácil e constantemente da empatia que ora consegue desenvolver, num puxa-e-empurra exaustivo.

E são nesses momentos que o roteiro tropeça, e quanto mais o personagem se esforça para querer provar seu mérito, mais ele sai ofuscado, e no fim é McAdams e sua personagem quem roubam as cenas, a empatia, e a torcida pelo sucesso, e o filme como um todo. Talvez tenha sido uma construção proposital, e a hilária - e ao mesmo tempo assustadora - cena do echarpe ser a metáfora resumida disso tudo, de Sigrit ser constantemente arremessada para trás toda vez que tenta se distanciar da obsessão inconsequente de seu parceiro. É uma pitada dramática que poderia ter sido bem explorada, mas que só vai ficar clara perto do fim, dando a sensação de uma reviravolta repentina pela mera obrigação de se ter o conflito dramático que se oponha à comédia.

Apesar dos tropeços dessa imprecisão de momentos que se opõem, a Saga de Sigrit e Lars é bastante familiar, leve e até comovente pela humanidade que ambos conseguem dar aos seus respectivos papéis, e que funciona na sua despretenção. Um filme estranho, com personagens esquisitos e cativantes, que no fundo traz uma mensagem que até pareça cafona e clichê, mas honesta e reconfortante.

E assim deve ser assistido, sem muitas expectativas, e sem muita exigência. E dessa forma a dupla conquista.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

JÁ ESTÁ CONSTRANGEDOR...

★★★★
Título: O Exterminador do Futuro: Destino Sombrio (Terminator: Dark Fate)
Ano: 2019
Gênero: Ação
Classificação: 14 anos
Direção: Tim Miller
Elenco: Arnold Schwarzenegger, Mackenzie Davis, Linda Hamilton
País: China, Espanha, Hungria, Estados Unidos
Duração: 128 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Após os eventos do segundo filme, mais de 20 anos se passaram e a história volta a se repetir para Sarah Connor.

O QUE TENHO A DIZER...
O sexto filme da franquia, mas o terceiro na ordem cronológica de sua história, como o diretor James Cameron o categoriza, é sem dúvida uma piada suja e sem graça.

Em primeiro lugar porque, embora Cameron tenha apoiado os demais filmes que ele não dirigiu, ele nunca participou deles de outra forma, e sempre esteve insatisfeito com todos. Ao mesmo tempo, relutante em dirigir um terceiro filme, alegando que poderia cair na sua própria repetitividade por falta de idéias melhores (e vejam só o que deu a franquia, ou no que dará Avatar e suas infinitas continuações já agendadas até 2027).

De fato, era difícil existir alguma história que superasse Julgamento Final (1991), uma sequência que conseguiu ofuscar até mesmo seu antecessor de tal forma que hoje é considerado um clássico dos clássicos do cinema de ação. Ao mesmo tempo, era difícil também superar o plot twist que conseguiu transformar T-800 de um implacável ciborgue caçador de humanos para um defensor deles, tirando a consagrada imagem de vilão que Schwarzenegger conquistou no primeiro filme e recolocando-o na imagem de herói por excelência que construiu ao longo de toda a carreira sem cair em bobagens narrativas que fizessem isso gratuitamente para manter a imagem positiva de um astro. Um marketing muito bem jogado ao ponto de fazer tanto o ator, como o icônico personagem, catapultarem extratosfericamente na lista dos mais idolatrados e carismáticos da história do cinema com bordões inesquecíveis para qual seja a geração.

A Revolução das Máquinas (2003) não chega a ser um filme ruim, mas foi naturalmente inferior desde sua concepção por terem riscado Sarah Connor da história e de qualquer possibilidade de retorno, personagem que foi a verdadeira manivela e o epicentro de existência de toda a série. Foi imperdoável. Mas perto de Destino Sombrio (2019), o terceiro filme, o de 2003, chega a parecer até uma obra prima.

Mesmo se, de fato, ignorássemos a existência das sequências anteriores, como assim James Cameron quer (ou praticamente obriga), o atual filme não traz nenhum elemento que possa ser considerado de grande importância para a história, muito menos para sua existência.

A sequência inicial consegue até enganar ao reutilizar cenas do segundo filme, de uma Sarah Connor aparentemente fora de si, no ápice de uma suposta esquizofrenia durante um interrogatório no manicômio em que estava internada. Sua narrativa então leva a outro espaço temporal, naquele em que um flashback mostra o que realmente aconteceu após o segundo filme: John Connor finalmente é executado por um exterminador (e isso não é um spoiller). O efeito "deaging" que usaram tanto em Linda Hamilton quanto em Schwarzenegger para rejuvenecê-los são de cair o queixo, e mais realistas que qualquer outro filme que já tenha utilizado essa tecnologia. Nem O Irlandês (2019), de Scorcese, conseguiu isso. E essa cena talvez seja a única a ser levada com seriedade.

É nesse momento que bate aquela nostalgia do perene conflito entre Sarah e T-800 no primeiro filme, ou o reencontro assustador que ambos tiveram nos corredores do manicômio, no auge do trauma de Sarah sobre os eventos do primeiro filme. Paralelamente bate também um sentimento entristecedor de como o tempo é injusto com nossos corpos, de como nossas referências no cinema também envelhecem. Essa tristeza aumenta com o decorrer do filme, quando percebemos quantas boas idéias foram tão desperdiçadas aqui, desrespeitando aqueles que assistem, e também a carreira e o tempo dos atores que contribuíram para essa mágica do cinema de criar universos e personagens que marcaram nossas lembranças e experiências.

O roteiro tenta fazer uma releitura da história do primeiro filme sem trazer nada novo ou agregador, transformando-se num cliche de si mesmo o tempo todo. Há um excesso de coisas que não se conversam entre si. Muita gente do futuro agregada, muita gente aparecendo em cena sem propósito, muitos personagens querendo ser heróis de algo ou alguma coisa ao mesmo tempo, e muitas, mas muitas cenas de ação que extrapolam os absurdos além de qualquer Indiana Jones sobrevivendo a uma explosão nuclear dentro de uma geladeira. A sequência do avião, que supostamente deveria ser o ápice do filme, é um tédio sem fim, e nem no filme de ação mais absurdo um cargueiro daquele demoraria tanto para cair como demora esse, para citar o mais básico dos absurdos que nem o cinema do absurdo suportaria.

Não há química entre os personagens, e Linda Hamilton assustadoramente parece mais robótica que Schwarzie no primeiro filme, e Schwarzie nesse filme aparenta mais humano e expressivo que ela. Poderia ser um contraste metafórico interessante se tudo em volta não fosse tão reciclado e feito sem qualquer coesão pois, pior do que esses defeitos, é o roteiro não ter uma história descente, já que é apenas a tecla de preservar o presente para não se alterar o futuro sendo batida incessantemente. Um enredo outrora explorado das mais diversas formas em todas as sequências que James Cameron hoje considera "não oficiais", ou de uma "realidade paralela".

Poderíamos facilmente culpar o diretor Tim Miller se ele não tivesse exposto os conflitos que surgiram entre ele e James Cameron durante a produção. Miller assim bem fez para preservar-se do desastre anunciado que Destino Sombrio estava fadado, ao ponto de afirmar que nunca voltaria a trabalhar com Cameron novamente. Segundo ele, Cameron tolhou qualquer liberdade ou exploração criativa que tentasse atualizar a história, ou dar a ela elementos que a diferenciasse sem descaracterizá-la do universo que faz parte.

A intenção do diretor era desenvolver a idéia de que os esforços foram em vão, e a humanidade realmente havia perdido a guerra para as máquinas, sendo a solução enviar humanos ao passado para tentarem descobrir o que é que deu errado no caminho e construir-se a ação a partir disso. Cameron rejeitou por completo um enredo que rinha tudo para funcionar até mesmo para filmes posteriores, embora tenha gostado da idéia de uma personagem humana, mas aprimorada tecnologicamente, de ser incluída, resultando na inclusão de Grace (Mackenzie Davis), talvez a única que leve tudo a sério do começo ao fim. As constantes interferências de Cameron foram tantas que ele mesmo chegou a pessoalmente editar boa parte do filme, razão que intensificou a animozidade de ambos porque ele estava indiretamente interferindo no roteiro ao excluir ou alterar a ordem de cenas que, para Miller, eram de grande importância narrativa.

O resultado dessa discordância entre direção e produção é evidente, num filme vazio que tenta compensar sua falta de identidade apelando nos absurdos óbvios, de elementos já usados em todos os filmes anteriores, da ação por obrigação e na força de personagens que perderam suas relevâncias pelo mal uso, sendo agora nada além do que figuras inexpressivas.

Eu mesmo já ouvi a teoria de que John Connor nunca foi o revolucionário do futuro, mas um grande laranja na história, manipulado para não apenas enganar os exterminadores como também motivar Sarah Connor a permanecer viva através de seus instintos maternais, já que ela mesma seria a grande responsável por toda a transformação do futuro sem saber disso, e por isso a humanidade conseguiu ser salva. E seu filho, apenas um reles mortal que herdou seus feitos.

Enfim, qualquer enredo poderia ter sido melhor do que fusquinhas que tem que empurrar sendo perseguidos por caminhões conduzidos por um exterminador invencível. Quem já não está cansado de ver e rever essas cenas na franquia? E James Cameron, que nunca pisou no set de filmagem, dando pitacos e interferindo de maneira inapropriada para manter a história no mesmo platô que todas as sequências se mantiveram.

Melhor teria sido se ele nunca tivesse se dado a esse trabalho. Um diretor que coleciona sucessos, mas nem por isso deveria ser superestimado como é.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

INTERESSANTE, MAS ESQUECÍVEL...

★★★★★
Título: Hebe: A Estrela do Brasil
Ano: 2019
Gênero: Drama, Biografia
Classificação: 14 anos
Direção: Maurício Farias
Elenco: Andrea Beltrão, Marco Ricca, Danton Mello, Caio Horowicz
País: Brasil,
Duração: 112

SOBRE O QUE É O FILME?
As dificuldades pessoais e profissionais de Hebe no período de transição da ditatura militar para a democracia no Brasil, ao mesmo tempo em que deixa uma emissora para ser contratada por outra.

O QUE TENHO A DIZER...
Começando pelo título, o filme deveria levar apenas o nome dela. Hebe era uma figura tão única que não precisava de alcunhas. Embora tivesse várias, usadas apenas para reforçar sua importância no entretenimento como a primeira comunicadora a alcançar o status que conquistou em um cenário comandado por homens e seu machismo, a verdade é que sempre foram desnecessários. O subtítulo remete a idéia da nossa curta memória cultural, de que não sabemos quem ela foi, ou de que tenhamos esquecido quem ela possa ter sido. Junto a isso, também reduz a qualidade do projeto como um todo nesse apelo popular do uso de referentes, algo costumeiro na TV, mas inadequado no cinema porque habitualmente predispõe a noção de que a qualidade do filme, por si só, não sustenta ou garante seu sucesso.

A história se desenvolve no fim dos anos 80 e começo dos anos 90, episódio importante tanto para a apresentadora, de sua transição da Rede Bandeirantes para a Rede TVS/SBT, quanto para o país, pegando o fim da Ditadura e o começo da redemocratização, a reminiscência da censura e a guerra que Hebe travou publicamente com ela. Junto a isso as subtramas da relação abusiva que sofreu por anos com Lelio Ravagnani (Marco Ricca), sua relação com a diversidade sexual e de gênero, além da abordagem superficial de sua proximidade amorosa e liberal com seu filho e sobrinho, complementam os arcos dramáticos.

O problema é que o diretor, Maurício Farias, muitas vezes parece esquecer da personagem, tentando forjar mais o espetáculo em volta dela do que nos pormenores, dando uma sensação fria e distante, um tanto artificial, quando deveria ser o contrário. Isso é, talvez, o velho problema recorrente da produtora Globo Filmes, que insiste em manter padrões televisivos no cinema, com design artístico e a já cansada fórmula tradicional de decupagem feitas mais para criar cenários de situações do que fazer deles extensões ou complementos dos personagens e das narrativas que os guiam.

Casado com a atriz na vida real, os dois já trabalharam juntos anteriormente em diversos projetos para a TV, como também no filme Verônica (2008), bastante elogiado na época. Essa relação pessoal e profissional de longa data com a atriz evidentemente atrapalha todo o resultado que se espera, principalmente na construção de uma personagem tão singular, porque atinge aquela zona de conforto complicada que, de tão familiar, deixa de ter trocas, apenas somatórias do mesmo modus operandi de sempre. É como se Farias já estivesse bastante habituado com o processo da atriz e vice-versa, num excesso de confiança que agora interfere na sua capacidade crítica do que deveriam aceitar de fato, ou não. E essas rédeas frouxas do diretor também são sentidas na maioria das cenas, principalmente quando envolvem coadjuvantes menores ou menos experientes, como no caso de Caio Horowicz, que interpreta Marcelo, o filho de Hebe. A interpretação do ator é sofrível, e sua presença em cena é tão apagada que até em momentos onde deveriam ser mais necessárias e impactantes, como em dois momentos dramáticos cruciais entre Beltrão e Marco Ricca, acabam perdendo toda a força que é construída, ao ponto de que tê-lo ou não tê-lo nessas cenas não faz a menor diferença. Mais que o próprio personagem, é como se o ator lá estivesse apenas como um bibelô.

O filme é incômodo porque é mau executado em diversos aspectos. Sua premissa é interessante, sua história e construção não são ruins, mas o roteiro escorrega em fatos que deixam de ser liberdade narrativa para se tornarem falta de atenção e pesquisa. Roberto Carlos e Chacrinha, por exemplo, nunca participaram de qualquer programa que ela teve porque ambos eram exclusividade da Globo. Roberto já apareceu em seu programa, mas numa entrevista externa, cuja gravação foi negociada por meses. Outra situação, bastante controversa por sinal, é em um breve diálogo que nos dá a entender que ela nunca foi para a emissora concorrente porque nunca quis, quando, na verdade, esse sempre foi seu maior sonho profissional e uma expectativa que nutriu calada até antes de sua morte, em 2012. Segundo as entrevistas que a apresentadora já concedeu, ela nunca foi convidada pela Globo, talvez porque achavam-na inadequada. Dizia isso com certo pesar, seguido da característica gargalhada para desviar a atenção de uma frustração quiçá superada ao longo de tantos anos. Foi um diálogo conveniente para a empresa que contraditoriamente assina a produção, criando essa deliberada distância desnecessária entre a ficção e realidade para não expor sua histórica indiferença sobre o assunto.

Essas tais liberdades narrativas poderiam ter ocorrido de outras formas no roteiro, como um sonho. Teria sido mais delicado e respeitoso. Mais condizente com a realidade que sempre expôs, mesmo que de maneira bastante subjetiva e contida ao longo de sua carreira pela postura ética e profissional que prezava frente as câmeras.

Por outro lado, há acertos, como no breve momento em que separa com cuidado os presentes de natal a Paulo Maluf e sua mulher. Uma cena bem simples, mas que clareia essa controvérsia que existia entre a Hebe política, indignada com a corrupção, o desprezo às diferenças e desigualdades sociais do país, e a Hebe pessoa, que ostentava os frutos de seus méritos e defendia com unhas e dentes aqueles que considerava amigos pessoais, independente de suas condutas.

Por fim, chegamos a interpretação de Andréia Beltrão, que em entrevistas promocionais do filme disse nunca ter tido a pretensão de imitar a figura de Hebe para não parecer caricata, já que a Hebe real era exagerada por natureza. Compreensível, ao considerar que a maioria dos papéis de Beltrão sempre foram mais cômicos que dramáticos, e cair na caricatura era um risco possível. A insegurança que Beltrão também afirmava ter quando foi convidada para o papel é maquiada pelo excesso de iluminação e do abuso do figurino extravagante do próprio acervo pessoal da apresentadora que, mais do que tentar ser fidedigno, é usado aqui como elemento de dispersão porque muitas vezes não tem uma composição coerente com toda a mise-en-cene.

Ao mesmo tempo que a atriz tenta manter certas essências da personalidade de Hebe, ela derrapa em detalhes importantes no comportamento físico e nos maneirismos que ora ou outra são usados quando lembra, mas esquecidos quando mais deveriam ser explorados. É a interpretação sendo constantemente limitada pela consciência, criando uma desconexão no processo imersivo. A inconstância de Beltrão no sotaque paulistano, dos floreios fonéticos 40tistas herdados por Hebe da cultura radialista da qual fez parte, é um exemplo. Nos raríssimos momentos que Hebe escorregava, era pra cair no sotaque interiorano de Taubaté, onde nasceu, e não para o carioca, como acontece com a atriz. A fala serrada é outro elemento esquecido, lembrado às vezes, e que, aí sim, nesses momentos, cai na caricatura tão evitada exatamente pela sensação artificial que propaga. Se Beltrão tivesse se preparado um pouco mais, indo além de sua visão pessoal da construção, teria sido incrível porque seu esforço é perceptível, e sua competência também, mas falta aquela mesma alma da qual sofre a direção, aquele laboratório mais intenso, compreensivo, de nuances bem estudadas e elaboradas ao ponto de se tornarem naturais.

Os defeitos não evitam, entretanto, de ser um longa interessante, mas quando visto como tal, e não expressamente como uma cinebiografia. Funcionaria na TV, como poderá funcionar na minissérie a estrear na Globoplay em breve. Mas como um produto para o cinema, ele falha nas intenções.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

NÃO PRECISAMOS DE BATMAN...

★★★★★★★★★☆
Título: Coringa (Joker)
Ano: 2019
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Todd Philips
Elenco: Joaquim Phoenix, Leigh Gill, Zazie Beetz, Robert De Niro
País: Estados Unidos, Canada
Duração: 122 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
O comediante Arthur Fleck não consegue se socializar na Gotham em que vive, uma cidade perturbada por corrupção e miséria da classe trabalhadora. Desistindo de lutar contra si mesmo e seus delírios, sua verdadeira personalidade começa a finalmente evoluir e tomar conta.

O QUE TENHO A DIZER...
Ao longo das décadas, Coringa sempre foi visto como um vilão caricato. Seu lado cômico sempre teve mais exposição do que o seu lado trágico. Das histórias em quadrinhos mais amenas, do seriado dos anos 70, até mesmo na interpretação de Jack Nicholson no filme de Burton, sua caricatura jocosa roubava mais as cenas do que suas crueldades mambembes.

Com o tempo ele foi ganhando outras densidades e camadas, ao ponto de ser considerado o vilão mais controverso e o mais complexo de todo o universo dos quadrinhos.

Batman sempre foi um coadjuvante de seus vilões, o que justifica Heath Ledger roubar cada frame de O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008), numa caracterização sombria do Coringa até então inédita no cinema, mas nos quadrinhos e nos video games já existia.

Depois de Ledger, a Warner ficou receosa em trazer o personagem de volta tão cedo, demorando 8 anos para resgata-lo em Esquadrão Suicida (Suicide Squad, 2016). A caracterização ultra exagerada de Jared Leto causou mais constrangimento do que satisfação, um revés na vida de um personagem que, até aquele momento, só havia colhido louros do público.

Com um Universo Cinematográfico feito às pressas e que afundou tão cedo quanto foi criado, Warner/DC aboliu a idéia e decidiu voltar à velha forma de produzir filmes com histórias independentes que possam virar uma franquia própria. E para retomar esse cenário, nada tão esperto do que dar a Coringa essa função, porque o Universo Batman sempre foi e será a carta na manga do estúdio toda vez que se encontrar em um beco sem saída.

Quando Joaquin Phoenix foi anunciado como o novo responsável pela encarnação do personagem, muitos torceram o nariz. Com Ledger aconteceu o mesmo. Na época muita gente o achava novo demais e inexperiente demais para dar uma densidade mais sombria e violenta, e todos se enganaram. Alguém também lembra de como Hugh Jackman foi atacado sem causa quando o escolheram para Wolverine no primeiro X-Men? Ou Gal Gadot para ser a Mulher-Maravilha? Pois bem... O preconceito é sempre derrotado no fim.

Tanto é assim que, Jared Leto, que parecia perfeito para interpreta-lo, com uma base de fãs que estouraram rojões quando o papel foi dado a ele, de repente viram suas bexigas de festa murcharem sem qualquer assobio.

Mas para quem já conhece Joaquin Phoenix de outros carnavais, sabia que podia esperar o melhor. Um ator sempre muito introspectivo e completamente fora dos padrões hollywoodianos, longe da imagem estrelista de seus outros colegas, é considerado por mérito um dos melhores de sua geração, se não for o melhor. A própria figura do ator, bem como sua biografia cheias de altos e baixos, trazem embutidos pesos de uma sociedade exigente e alienada, ignoradas e vencidas com seu talento. Era praticamente impossível não esperar do ator nada menos do que uma interpretação digna e respeitosa. Mas como disse, era algo esperado para quem já o conhece. Um conceito de fato.

Ele consegue ir além. Sua rendição a Coringa ultrapassa o visceral, e o ator simplesmente desaparece, e em cena há apenas Arthur Fleck, um homem pobre, solitário, incompreendido, explorado e violentado diariamente das mais variadas formas numa Gotham City muito longe de ser aquela futurística e próspera metrópole que conhecemos, apesar de sempre corrupta e violenta.

No meio de uma crise social que se estabelece na cidade, onde a maioria da população se rebela contra os privilégios da burguesia, doenças sociais se estabelecem, como a polaridade, o individualismo, a falta de empatia e a capacidade de discernimento da realidade. Sim, parece um retrato muito familiar do que estamos vendo hoje na realidade, o que soa como um alarme às consequências do nosso extremismo.

Arthur se torna uma vítima disso tudo, desencadeando conflitos pessoais que alimentam uma psiquê naturalmente perturbada, a qual ele trava uma batalha diária consigo mesmo para manter o resto de sanidade que lhe resta com auxílio de medicamentos gratuitos cuja distribuição foi interrompida pela Assistencia Social na falsa justificativa de contenção de gastos.

É quando o personagem entra num vórtice que o levará sem volta ao mais profundo abismo de si mesmo, e num paradoxo, e lá que encontrará a própria liberdade ao não mais oprimir o que é, ou a não mais se sentir preso a obrigações impostas. E se aceitar de fato como é, por pior que ele saiba que assim será.

No momento que o personagem abraça a existência de Coringa, é quando descobrimos que Arthur era um alter-ego que oprimia um ego dominante, anarquista e psicótico que sempre esteve presente, mas não encontrava motivações para reinar em si.

E como numa metainformacao, o filme autojustifica sua violência e o comportamento cruel e violento do personagem a partir daí, como a querer explicar que a violência e a perversidade das pessoas não ocorre por influência de algo, ou alguém, mas é motivada por um agregado de fatores que apenas engatilham algo que já está latente no psiquê.

A pessoa que já tem tendências a ser violenta ou psicótica, assim o será. Não é um filme, uma música, ou uma influência qualquer que o fará, da noite para o dia, agir dessa forma. Qualquer motivo é um motivo e uma motivação para isso. Por isso que atribuir a filmes a culpa por surtos violentos é leviano, porque é justificar de forma simplista e superficial problemas sociais muito mais sérios e profundos ignorados, banalizados e negligenciados pela própria sociedade. Por essas e outras que enxergo, dentro dessas razões, a metainformação implícita no longa, algo que psicólogos e psiquiatras pelo mundo já bem explicaram a respeito.

Coringa é um filme perturbador e provocativo como há muito tempo o cinema estadunidense - não necessariamente hollywoodiano - não fazia. De forma implícita e explícita encontramos nele material para inúmeras discussões. O diretor Michael Moore chegou a considerar o filme uma obra de arte próxima aos controversos filmes de Kubrick, como Laranja Mecânica, algo que, dentro de suas devidas proporções, não é exagero.

O diretor Todd Philips, que ficou famoso na comédia com a trilogia Se Beber Não Case, consegue fazer algo brilhante e desafiador que poucos diretores ousaram depois do próprio Kubrick. Além de uma fotografia belíssima dentro de sua esquisitice, que evita o desfoque de segundos planos assim como Kubrick o fazia, a composição de muitas cenas chega a ser até poética, como no momento em que Arthur está travestido de palhaço, caído ao chão em um beco, e da flor de seu paletó escorre a água suja de sangue. A morte de um palhaço, o fim da graça, a ingenuidade que se esvai. E cenas memoráveis como essa, e outras até mais complexas, são vistas constantemente.

O mais interessante é como o diretor desafia a seriedade e a (in)capacidade do espectador de fazer analogias com a própria realidade. Todd traz para o filme suas experiências da comédia pastelão, mas sem banaliza-las. Muitas são as vezes em que as cenas tem construções cômicas, mas cujos elementos que as constróem contemplam a crueldade, a tragédia ou preconceitos latentes do ser humano. Ele desafia as pessoas a absorverem as mensagens além do entretenimento óbvio. Todo surto do personagem não é em vão, e toda violência não é gratuita naquilo que o filme desenvolve ao mesmo tempo que critica.

Não é à toa que há um momento em que Arthur entra em um cinema durante a exibição de Tempos Modernos. Enquanto toda a burguesia de Gotham gargalha com as palhaçadas de Chaplin, do lado de fora uma rebelião proletária acontece. Tempos Modernos, quando assistido com seriedade, não é um filme cômico. Ao se isolar a caricatura e a performance circense de Charles Chaplin, temos um filme triste e trágico sobre uma realidade brutal que nos atinge há séculos.

Coringa segue esse mesmo princípio, porém atualizado. E de uma forma até assustadora, presenciei uma reprodução desta mesma situação no momento em que Arthur assassina friamente seu ex-colega de trabalho na frente de outro ex-colega. A cena levou mais da metade da platéia a gargalhadas, e o resto a olhar com perplexidade os que gargalhavam, chocados com a falta de sensibilidade e com a frieza com que interpretaram uma cena na qual todos elementos isolados não tinham a menor graça. Situação que se repetiu ao longo de todo o filme. Tão chocante quanto as gargalhadas sociais dos burgueses de Gotham, foram as gargalhadas de uma platéia sádica e preconceituosa, tudo aquilo que Arthur se rebela ao longo de sua tortuosa jornada.

Propositalmente ou não, o diretor conseguiu fazer com que o comportamento humano das pessoas frente ao filme se tornasse mais chocante e perturbador do que o próprio filme em si. E se apenas por isso o filme não for visto como um produto que desafia o seu público a enxergar a sua própria realidade e comportamento por outros ângulos, então o propósito do cinema como algo além do entretenimento definitivamente está a beira do fim.

A dor que Phoenix expressa no personagem através de uma gargalhada gutural sofrida e dolorosa, é a expressão do fardo que ele carrega em ser o que é, e que a sua existência, assim como a de Batman, o maniqueísmo do herói e do vilão, do bem e do mal, só existe porque nós os alimentamos diariamente, porque no fundo, tanto um, quanto o outro, compartilham das mesmas dores e problemas.

terça-feira, 23 de julho de 2019

PARA RÁPIDO CONSUMO, E SÓ...

Título: Cavaleiros do Zodíaco (Knights Of The Zodiac)
Ano: 2019
Gênero: Desenho Animado
Classificação: Livre
Direção: Vários
País: Estados Unidos
Duração: 15 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Readaptação da clássica série anime onde cinco jovens são escolhidos para defender uma garota que afirma ser a reencarnação da deusa Atena.

O QUE TENHO A DIZER...
A readaptação de Cavaleiros do Zodíaco pela Netflix foi anunciada há 2 anos atrás, e desde então muito se especulou, muito se falou e se criticou negativamente com antecedência, principalmente a respeito das mudanças que a nova versão traria.

A produção nunca escondeu duas coisas novas e principais que viriam com a série. A primeira é que a história seria atualizada para os tempos atuais, dando uma localização temporal na qual a original nunca deixou evidente. A segunda seria a ocidentalização do desenho, feito inteiramente digital, perdendo, assim, características marcantes do mangá, no qual o anime original se baseou. O objetivo dessas mudanças também sempre foi muito claro, conquistar principalmente a geração atual de crianças e adolescentes conectados e envoltos por bugigangas eletrônicas, abrangendo o maior número possível dessa faixa etária coberta pela plataforma nos 190 países que está disponível, cujo maior público, obviamente, vem a ser o ocidental.

E quem critica a ocidentalização da animação precisa compreender que grande parte das referências utilizadas, além das mitologias abordadas, em sua grande maioria, são de origem ocidentais. Na verdade, há uma mistura muito bagunçada entre oriente e ocidente, e só isso já daria liberdade para diversas interpretações e adaptações.

A questão é que, de tudo o que os "juízes de internet" criticaram previamente, cujas opiniões eram muito mais movidas por preconceitos a certas mudanças e fanatismos em relação ao anime original, poucos foram os argumentos que realmente se encaixam nos reais problemas que a produção apresenta. Acabou acertando aqueles que simplesmente acreditaram que a série não prometia ser tão boa quanto a original, aqueles se apoiaram no ceticismo do "esperar pra ver".

A readaptação poderia oferecer muitas coisas boas, eletrizantes e empolgantes para quem esperou tanto tempo, mas definitivamente não consegue. Nos curtos seis episódios disponibilizados para esta primeira temporada, é mais do que uma frustração para quem esperava mais, e apenas algumas gotas de nostalgia pra quem hoje já é velho, mas cresceu chegando em casa correndo pra assistir as épicas sagas dos heróis na TV.

Os erros e defeitos da readaptação são puramente técnicos, problemas de concepção de uma produção que pode até conhecer bem o material original, mas se atentou apenas àquilo que seria facilmente assimilado pelo público. A começar pelo roteiro, que corre mais rápido do que as pernas poderiam aguentar para explicar tudo em apenas alguns minutos, e com outros minutos criar imediatas relações de amizade e confiança entre os personagens, além de explicar de maneira bem confusa as motivações dos inimigos existirem. Sem falar do desenvolvimento capenga da história ao abordar a origem de cada um dos personagens e a superficialidade com que justificam o repentino juramento de honra a Saori Kido/Atena que, convenhamos, não convence nem criança.

No anime original, tudo era construído em cima de muitos diálogos e narrativas paralelas que realmente criavam um universo imaginário muito poderoso em cima de toda a mistura mitológica orienta e ocidental presente (se engana quem acredita que apenas a Grega foi referência), conseguindo até mesmo o impossível, o de criar uma outra mitologia própria de maneira bastante imersiva, já que o espectador acompanhava todos os passos dessa construção.

Os diálogos, muitas vezes intermináveis, eram recheados de um sentimentalismo até cafona, ou de tragédias exageradas, sempre acompanhados de trilhas sonoras simplórias e chorosas que apelavam num dramalhão quase "mexicano", mas que funcionavam porque sustentavam as histórias e criavam as bases sólidas de todas as narrativas. E assim os momentos eram construídos antes de culminarem para suas conclusões surpreendentes, reviravoltas marcantes e, claro, as batalhas individuais ou em grupo, sempre cheias de frases de impacto antes de cada golpe deferido e vilões que engajavam em monólogos sem fim sobre como estavam surpreendidos pelo poder do Cosmo dos heróis antes de cairem mortos e duros no chão. Era hilariamente constrangedor, porque era de se ficar imaginando o que se passava na cabeça do roteirista para tantos rodeios verbais. E no contexto, tudo isso tinha seu charme.

Que os heróis sempre sofriam mais do que deviam, isso era inevitável, mas que nunca seriam derrotados, era um fato. Não tinha como crianças ou adolescentes não se identificarem particularmente com um ou com todos, já que o quarteto de heróis representava muita coisa para eles (posteriormente vem a se tornar um quinteto com Ikki, de Fênix). As crianças se identificavam porque era a realização do fantástico, e material de sobra para criarem as suas próprias fantasias e histórias. Para os adolescentes, era quase que uma identificação espiritual, onde os personagens e seus poderes significavam frases motivadores, como gritos particulares para superar aqueles conflitos tontos da idade, ou às vezes impersonando o herói favorito para enfrentar dificuldades reais, seja como escapismo, seja como fonte inspiradora de coragem.

A nova produção não chega nem próxima de todo esse misto de significantes e significados do original, que muito mais do que batalhas entre o bem e o mal, traziam consigo valores muito cultivados como a amizade, o respeito, a fidelidade, a sinceridade e sensos de justiça que eram possíveis de serem filtrados no meio das violências acrobáticas. É uma produção vazia, sem alma, que esqueceu desses importantes elementos para dar atenção simplesmente ao peso da marca e aos ícones embutidos nele, como se apenas isso bastasse para sua aceitação e sucesso.

A produção acertou ao respeitar as características físicas, psicológicas e comportamentais dos personagens. Mesmo que em uma animação 3D ocidentalizada, consegue ser bastante apreciada pelos fãs mais liberais. No Brasil o acerto foi maior ainda ao manter a mesma equipe principal de dubladores. Mas de nada serve ter Seiya, Shun, Shiryu, Yoga e Ikki deflagrando seus bordões clássicos se o mais importante, que é a conexão que toda a série animada criava com as pessoas, não existe mais.

É um produto puramente comercial, que tinha tudo pra ser tão bom e relevante como o original, mas cuja produção se atentou demais a uma modernidade que não cabe nesse universo. Aumentar a rapidez dos acontecimentos para corresponder com a atual falta de paciência de um público que a cada dia que passa quer consumir as coisas com a maior velocidade possível custou muito caro, um crime que derrubou o pilar central de tudo de tal forma que nem Saori consegue segurar.

Perderam mais tempo definindo uma época atual na história do que em criar cenas com cuidado, muitas delas sem sentido, parecendo inacabadas para os olhos mais atentos, que nem mesmo a edição conseguiu evitá-las. Desnecessário mostrar celulares, aparatos tecnológicos e transformar os Cavaleiros Negros em soldados militarizados para dizer que a historia é moderna quando a própria produção, feita integralmente em 3D, visualmente já demonstra isso.

Não é à toa que a série original, até o momento, não está disponível no serviço, pois é garantido que ela seria mais assistida que a readaptação, além de um material comparativo injusto com a nova versão.

Não deixa de ser um produto divertido, e visualmente bem feito, lembrando bastante os jogos recentemente lançados, e como dito, fácil e rapidamente consumível pra quem não teria paciência para os longos bla bla blás do original. Mas não tem consistência, nem relevância.

Só espero que a Netflix não demore 1 ano pra disponibilizar sua segunda temporada, ou sua segunda parte. Frente ao produto final que entregaram, tão pouco, tão curto e tão vazio, ao menos, para o bem do entretenimento, seria respeitoso aos fãs um intervalo mais breve.

domingo, 16 de junho de 2019

A OUTRA MULHER MARAVILHA...

★★★★★★★
Título: Capitã Marvel (Captain Marvel)
Ano: 2019
Gênero: Ação, Super-Herói
Classificação: 12 anos
Direção: Anna Boden, Ryan Fleck
Elenco: Brie Larson, Samuel L. Jackson, Jude Law
País: Estados Unidos, Austrália
Duração: 123 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Carol Denvers sofreu um acidente no espaço e foi recrutada por uma civilização extraterrestre, agora ela volta para a Terra para descobrir suas origens e que sua terra natal está correndo um iminente perigo.

O QUE TENHO A DIZER...
Capitã Marvel surge com um certo atraso não apenas no Universo Cinematográfico da Marvel, mas no cinema em geral, sempre relutante em adaptar histórias em quadrinhos com protagonistas femininas desde quando o gênero emergiu, no início de 2000.

Não que filmes com heroínas ou filmes de ação com protagonistas mulheres não existissem, mas na História do Cinema, a quantidade de produções com esse enfoque sempre foi infinitamente inferior, e mais oprimido ainda nas adaptações de quadrinhos.

Hollywood sempre deu muito mais ênfase no chamado "cinema testosterona", no intuito de manter incólume a idéia de que mulheres são frágeis e incapazes de protagonizar filmes bate-e-arrebenta como os homens, e da mesma forma são caracterizadas a maioria das coadjuvantes em cena nesses filmes: frágeis, vítimas que precisam de um braço forte para a abraçá-las e defendê-las. Pode? Pode. Mas esse excesso ditou uma regra que deve ser quebrada.

De Ripley a Sarah Connor, de Thelma a Louise, exemplos existem, mas são poucos, e se tornaram icônicos justamente por serem raros. Mas nas últimas décadas tivemos produções muito interessantes que provaram que o cinema "estrogênio" é tão forte quanto, como a saga de vingança de Beatrix Kiddo em Kill Bill (2003), de Quentin Tarantino, com um elenco predominantemente feminino. Podemos citar até a pancadaria gratuita e bem produzida que Steven Soderbergh fez com Haywire (2011), transformando a ex-lutadora de MMA, Gina Carano, numa referência direta a produções antes estreladas por Chuck Norris por um lado, e Cynthia Rothrock por outro, nos anos 80 e 90.

Mas no Universo dos quadrinhos tudo começou na contra-mão, e as infames adaptações de Mulher-Gato (2004) e Elektra (2005) soaram muito mais como um descaso quase proposital do que qualquer outra coisa. Como um autoboicote dos próprios estúdios, para dar a deliberada impressão ao público que heroínas baseada em quadrinhos não oferecem boas histórias, e por isso não valia a pena investir nelas. E a essas atrizes nunca mais foram lhe dadas oportunidades de continuarem no gênero, ao contrário dos homens.

De lá pra cá quase 15 anos se passaram e, no meio desse tempo, mulheres da indústria começaram a questionar a ausência de protagonismo nas tais adaptações, fora outras revindicações legítimas de igualdade numa indústria que historicamente sempre foi desigual em relação a gêneros e raças.

Foi então que a indústria resolveu abraçar esta pauta feminista para seu benefício comercial, e Mulher Maravilha (2017) se tornou o carro chefe dessa nova e atrasada safra, onde a heroína roubou a cena em Batman V Superman (2016). O mesmo havia feito Margot Robbie em Esquadrão Suicida (2016), que embora cheio de defeitos e equívocos, além de um elenco predominantemente masculino, fez de Harley Quinn (Margot Robbie) a verdadeira protagonista, mesmo que o sexismo construído sobre a personagem no filme tenha sido mais presente que sua caricatura. Porém, Robbie consegue driblar esse senso e inverter a situação com classe, e é ela quem protagonizará seu próprio filme agora, ao lado de outras personagens tão fortes quanto do Universo DC.

Em sequência veio Charlize Theron na adaptação de Atômica (Atomic Blonde, 2017), baseado na novela gráfica The Coldest City, apanhando, levantando e batendo, deixando outra vez claro que não existe sexo frágil. E por fim, mas não último, a rendição da Marvel a Capitã Marvel, que finalmente não apenas viu a luz do dia, mas também é a personagem chave para a conclusão de uma era e início de outra nesse Universo criado pelo selo.

A mídia taxou o filme como uma grande representação feminista nos cinemas tal qual Mulher Maravilha. Essa discussão, feita de maneira mais incisiva do que sobre a outra heroína, ocorreu talvez porque a popularidade que a Marvel tem nos cinemas é maior.

Não deixa de ser. Mas feito de maneira bastante discreta e discutida nas entrelinhas do roteiro, que evita explorar o passado da personagem de maneira mais consistente justamente para não erguer bandeiras explícitas e despertar a ira dos conservadores que veem no feminismo uma ameaça ao histórico patriarcado.

A história da personagem é nada além de um retrato muito comum das mulheres na sociedade pelo mundo, que sofrem opressões sociais por todos os lados, até dentro de suas próprias famílias.

Carol Denvers, quando jovem, sonhava em seguir carreira acadêmica, sendo impedida por seu pai, que dava preferência as decisões de seu filho homem. Carol engressou na Universidade sem conhecimento do seu pai e posteriormente se alistou na Força Aérea Americana escondida, só revelando o segredo quando abandonou sua casa para viver na academia aérea, o que gerou desconforto e repúdio de seu pai. Esse desprezo que sofre é o grande motivador de Denvers em querer ser a melhor, acreditando que algum dia seu pai se orgulharia disso e essa barreira machista que existia entre a relação dos dois fosse quebrada algum dia. A necessidade de aprovação dos filhos por seus pais, uma pauta constante nas histórias fantásticas da Marvel.

Essa história pregressa é usada no filme apenas em rápidos flashbacks para justificar sua personalidade de maneira simbólica e resumida, também sobre seu comportamento impositivo e decisões pessoais que emergem ao redor da própria trama. Mas como dito, bastante superficial para não inflamar o ego machista da platéia.

Embora expressa, essa introdução é essencial para compreendermos todo o processo da construção de sua personalidade ao longo dos anos, mas o roteiro desconstruído, ora mostrando o presente, ora o passado, deixa a desejar porque não explora essa fase tão importante da vida da personagem, ficando um tanto vago em esclarecer ao espectador porque Denvers tem posições bastante firmes sobre suas decisões, ou até mesmo seu humor sarcástico ser tão contundente, num oposto ao humor jocoso de Tony Stark, por exemplo.

Para um filme que pretende mostrar a origem da heroína, o roteiro o faz apenas para Denvers como heroína, mas não para Denvers como pessoa e mulher, deixando de construir uma narrativa linear sobre seu passado, deixando de dar uma exclusiva atenção a todas as barreiras e dificuldades que teve de enfrentar na adolescência, que teria sido importante.

Sempre criticada durante seu treinamento no espaço pelo excesso emocional e sentimental por ser humana, ela é a todo momento instruída e motivada a suprimí-los para ser mais poderosa e capaz. E essa crítica é posta a prova e pauta do início ao fim do filme. Isso nada mais é que um paralelo que o roteiro constrói sobre a cultura popular da fragilidade feminina, e que, pelo equivocado senso machista, o lado mais emocional e sentimental das mulheres tende a colocar em risco o sucesso de uma missão.

Esse é o grande conflito interno que Denvers se depara ao longo da trama, que se resolve de maneira muito simples e simbólica e, de fato, desconstrói esse mito popular secular alimentado para inferiorizar a figura feminina. Ser emotivo e sentimental não é um defeito, mas grandes qualidades inerentes do ser humano, oprimidos pelos fracos que não sabem lidar com essas complexidades e usá-las para se tornarem mais fortes.

E é isso que Capitã Marvel significa, se tornando uma resposta contundente de que o sendo comum da fragilidade é apenas uma construção social.

No mais, o filme segue como se deve dentro da proposta da ação. Um tanto lento em sua primeira metade para quem espera aquele ritmo alucinante de outros filmes da Marvel, mas que depois recompensa o público com o festival de efeitos especiais que todo mundo gosta. Recheado de diálogos inteligentes e de um humor refinado tal qual o encontrado em Pantera Negra, o resultado é satisfatório. Para um filme que tem a intenção de contar uma origem, poderia ter sido mais consistente nos quesitos abordados acima.

Enquanto Mulher Maravilha apresenta a força feminina sem sucumbir ao clichê, Capitã Marvel pega o clichê e tira dele o melhor proveito.
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