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quinta-feira, 11 de junho de 2020

INTERESSANTE, MAS ESQUECÍVEL...

★★★★★
Título: Hebe: A Estrela do Brasil
Ano: 2019
Gênero: Drama, Biografia
Classificação: 14 anos
Direção: Maurício Farias
Elenco: Andrea Beltrão, Marco Ricca, Danton Mello, Caio Horowicz
País: Brasil,
Duração: 112

SOBRE O QUE É O FILME?
As dificuldades pessoais e profissionais de Hebe no período de transição da ditatura militar para a democracia no Brasil, ao mesmo tempo em que deixa uma emissora para ser contratada por outra.

O QUE TENHO A DIZER...
Começando pelo título, o filme deveria levar apenas o nome dela. Hebe era uma figura tão única que não precisava de alcunhas. Embora tivesse várias, usadas apenas para reforçar sua importância no entretenimento como a primeira comunicadora a alcançar o status que conquistou em um cenário comandado por homens e seu machismo, a verdade é que sempre foram desnecessários. O subtítulo remete a idéia da nossa curta memória cultural, de que não sabemos quem ela foi, ou de que tenhamos esquecido quem ela possa ter sido. Junto a isso, também reduz a qualidade do projeto como um todo nesse apelo popular do uso de referentes, algo costumeiro na TV, mas inadequado no cinema porque habitualmente predispõe a noção de que a qualidade do filme, por si só, não sustenta ou garante seu sucesso.

A história se desenvolve no fim dos anos 80 e começo dos anos 90, episódio importante tanto para a apresentadora, de sua transição da Rede Bandeirantes para a Rede TVS/SBT, quanto para o país, pegando o fim da Ditadura e o começo da redemocratização, a reminiscência da censura e a guerra que Hebe travou publicamente com ela. Junto a isso as subtramas da relação abusiva que sofreu por anos com Lelio Ravagnani (Marco Ricca), sua relação com a diversidade sexual e de gênero, além da abordagem superficial de sua proximidade amorosa e liberal com seu filho e sobrinho, complementam os arcos dramáticos.

O problema é que o diretor, Maurício Farias, muitas vezes parece esquecer da personagem, tentando forjar mais o espetáculo em volta dela do que nos pormenores, dando uma sensação fria e distante, um tanto artificial, quando deveria ser o contrário. Isso é, talvez, o velho problema recorrente da produtora Globo Filmes, que insiste em manter padrões televisivos no cinema, com design artístico e a já cansada fórmula tradicional de decupagem feitas mais para criar cenários de situações do que fazer deles extensões ou complementos dos personagens e das narrativas que os guiam.

Casado com a atriz na vida real, os dois já trabalharam juntos anteriormente em diversos projetos para a TV, como também no filme Verônica (2008), bastante elogiado na época. Essa relação pessoal e profissional de longa data com a atriz evidentemente atrapalha todo o resultado que se espera, principalmente na construção de uma personagem tão singular, porque atinge aquela zona de conforto complicada que, de tão familiar, deixa de ter trocas, apenas somatórias do mesmo modus operandi de sempre. É como se Farias já estivesse bastante habituado com o processo da atriz e vice-versa, num excesso de confiança que agora interfere na sua capacidade crítica do que deveriam aceitar de fato, ou não. E essas rédeas frouxas do diretor também são sentidas na maioria das cenas, principalmente quando envolvem coadjuvantes menores ou menos experientes, como no caso de Caio Horowicz, que interpreta Marcelo, o filho de Hebe. A interpretação do ator é sofrível, e sua presença em cena é tão apagada que até em momentos onde deveriam ser mais necessárias e impactantes, como em dois momentos dramáticos cruciais entre Beltrão e Marco Ricca, acabam perdendo toda a força que é construída, ao ponto de que tê-lo ou não tê-lo nessas cenas não faz a menor diferença. Mais que o próprio personagem, é como se o ator lá estivesse apenas como um bibelô.

O filme é incômodo porque é mau executado em diversos aspectos. Sua premissa é interessante, sua história e construção não são ruins, mas o roteiro escorrega em fatos que deixam de ser liberdade narrativa para se tornarem falta de atenção e pesquisa. Roberto Carlos e Chacrinha, por exemplo, nunca participaram de qualquer programa que ela teve porque ambos eram exclusividade da Globo. Roberto já apareceu em seu programa, mas numa entrevista externa, cuja gravação foi negociada por meses. Outra situação, bastante controversa por sinal, é em um breve diálogo que nos dá a entender que ela nunca foi para a emissora concorrente porque nunca quis, quando, na verdade, esse sempre foi seu maior sonho profissional e uma expectativa que nutriu calada até antes de sua morte, em 2012. Segundo as entrevistas que a apresentadora já concedeu, ela nunca foi convidada pela Globo, talvez porque achavam-na inadequada. Dizia isso com certo pesar, seguido da característica gargalhada para desviar a atenção de uma frustração quiçá superada ao longo de tantos anos. Foi um diálogo conveniente para a empresa que contraditoriamente assina a produção, criando essa deliberada distância desnecessária entre a ficção e realidade para não expor sua histórica indiferença sobre o assunto.

Essas tais liberdades narrativas poderiam ter ocorrido de outras formas no roteiro, como um sonho. Teria sido mais delicado e respeitoso. Mais condizente com a realidade que sempre expôs, mesmo que de maneira bastante subjetiva e contida ao longo de sua carreira pela postura ética e profissional que prezava frente as câmeras.

Por outro lado, há acertos, como no breve momento em que separa com cuidado os presentes de natal a Paulo Maluf e sua mulher. Uma cena bem simples, mas que clareia essa controvérsia que existia entre a Hebe política, indignada com a corrupção, o desprezo às diferenças e desigualdades sociais do país, e a Hebe pessoa, que ostentava os frutos de seus méritos e defendia com unhas e dentes aqueles que considerava amigos pessoais, independente de suas condutas.

Por fim, chegamos a interpretação de Andréia Beltrão, que em entrevistas promocionais do filme disse nunca ter tido a pretensão de imitar a figura de Hebe para não parecer caricata, já que a Hebe real era exagerada por natureza. Compreensível, ao considerar que a maioria dos papéis de Beltrão sempre foram mais cômicos que dramáticos, e cair na caricatura era um risco possível. A insegurança que Beltrão também afirmava ter quando foi convidada para o papel é maquiada pelo excesso de iluminação e do abuso do figurino extravagante do próprio acervo pessoal da apresentadora que, mais do que tentar ser fidedigno, é usado aqui como elemento de dispersão porque muitas vezes não tem uma composição coerente com toda a mise-en-cene.

Ao mesmo tempo que a atriz tenta manter certas essências da personalidade de Hebe, ela derrapa em detalhes importantes no comportamento físico e nos maneirismos que ora ou outra são usados quando lembra, mas esquecidos quando mais deveriam ser explorados. É a interpretação sendo constantemente limitada pela consciência, criando uma desconexão no processo imersivo. A inconstância de Beltrão no sotaque paulistano, dos floreios fonéticos 40tistas herdados por Hebe da cultura radialista da qual fez parte, é um exemplo. Nos raríssimos momentos que Hebe escorregava, era pra cair no sotaque interiorano de Taubaté, onde nasceu, e não para o carioca, como acontece com a atriz. A fala serrada é outro elemento esquecido, lembrado às vezes, e que, aí sim, nesses momentos, cai na caricatura tão evitada exatamente pela sensação artificial que propaga. Se Beltrão tivesse se preparado um pouco mais, indo além de sua visão pessoal da construção, teria sido incrível porque seu esforço é perceptível, e sua competência também, mas falta aquela mesma alma da qual sofre a direção, aquele laboratório mais intenso, compreensivo, de nuances bem estudadas e elaboradas ao ponto de se tornarem naturais.

Os defeitos não evitam, entretanto, de ser um longa interessante, mas quando visto como tal, e não expressamente como uma cinebiografia. Funcionaria na TV, como poderá funcionar na minissérie a estrear na Globoplay em breve. Mas como um produto para o cinema, ele falha nas intenções.

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