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domingo, 12 de julho de 2020

QUANDO SER IMORTAL CANSA...

★★★★★★★★☆☆
Título: The Old Guard
Ano: 2020
Gênero: Ação
Classificação: 16 anos
Direção: Gina Prince-Bythewood
Elenco: Charlize Theron, Kiki Layne, Matthias Schoennaerts, Marwan Kenzari, Luca Marinelli, Chiwetel Ejiofor, Harry Melling
País: Estados Unidos
Duração: 121 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um grupo de mercenários imortais tem suas identidades descobertas e agora lutam para não serem capturados e explorados por uma corporação.

O QUE TENHO A DIZER...
Enquanto Charlize Theron filmava a adaptação da novela gráfica Atômica (2017), ela recebeu em mãos uma cópia de outra história. Era The Old Guard.

Após ler as primeiras páginas, achou suficientemente interessante para transformá-la em filme. Sem perder tempo, foi o que aconteceu em 2019.

A atriz vem afirmando há anos que é fã de filmes de ação, e agora se engajou a produzí-los para compensar a injustiça existente num estilo apropriado por homens desde quando o cinema era mudo. Com a intenção de fazê-lo com representatividade, suas investidas tem dado certo e são muito bem vindas.

É também com bom humor que ela, em uma entrevista recente, contrariando o que muita gente esperava, jurou que nunca foi convidada para participar de qualquer produção da Marvel, mas que ao mesmo tempo não se importa porque está tendo oportunidade de pavimentar seu próprio caminho no gênero como produtora e atriz, e isso tem sido divertido. Essa afirmação é importantíssima para mostrar que a liderança feminina na indústria, no sentido de mulheres terem a oportunidade de traçarem seus próprios objetivos e projetos, não é uma opção, mas uma conquista cheia de obstáculos. A opção ainda é privilégio dos homens, pois o predominio masculino na indústria é real.

São os bônus da atriz sul africana ter se tornado uma estrela de primeira grandeza em Hollywood, a liberdade de agora poder decidir fazer o que quiser. Bonus que um ator teria com muito mais facilidade se, da noite para o dia, apresentasse um projeto de dirigir ou produzir um filme de grande orçamento a um estúdio, sem a necessidade de esperar se tornar um grande astro para tal. E sempre foram esses os ônus das mulheres na indústria.

Vencedora de um Oscar e indicada outras duas vezes, Charlize não é brincadeira. De Uma Saída de Mestre (The Italian Job, 2003) a Aeon Flux (2005), de Atômica (Atomic Blonde, 2017) a Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2018), entre dramas e comédias de sucesso, ela provou que, independente de altos e baixos, pode oferecer tudo aquilo do que o gênero se alimenta de igual forma, e que as mulheres também precisam de oportunidades mesmo depois de fracassos, porque é assim que a indústria faz com homens que fracassam, sem questionar.

É depois de assistir esse seu novo filme de ação que observamos que ela está certa. Mesmo tendo defeitos, como algumas sequências parecerem arrastadas demais e uma trilha sonora que infelizmente empobrece toda a qualidade visual, dando uma sensação de ser um filme barato que na verdade não é, devemos dar a ele créditos mesmo assim, e perceber que muitas das críticas negativas que tem recebido são muito mais por preconceitos latentes do que pelos próprios defeitos que estas dizem existir.

Para aqueles que sentem saudades de guerreiros imortais no cinema e que fuja das obviedades de histórias vampirescas para justificar essa condição, The Old Guard tenta se colocar como o Highlander do século XXI, sendo um filme de heróis diferente, que vai contar não a origem, mas o ponto de partida, o momento crucial em que finalmente decidem aceitar o propósito de suas existências ao invés de lutarem contra ele, e que esse poder de sobreviver ao tempo pode ser usado para um bem comum além do que eles acreditavam. Afinal, toda a história tem que começar de algum lugar, e não necessariamente há quatro mil anos antes de Cristo, que é a suposta idade da protagonista.

Claro que há espaço para se desenvolver diálogos que contam brevemente outros fatos e aventuras para aqueles que, ao longo do filme, começam a alimentar a curiosidade em torno do passado desses personagens cativantes, como um deles dizer que lutou ao lado de Napoleão, ou que dois deles se conheceram durante as cruzadas e se matavam constantemente por estarem em grupos que se opunham. Mas talvez a história mais trágica e assustadora relembrada por eles seja da própria Andy, numa consequência tão aterrorizante quanto ser condenado por Sandman ao pesadelo perpétuo, na clássica história de Neil Gaiman. É este o episódio motivador para que a heroína se coloque sempre à frente para defender seus companheiros, pelo medo secular que a assombra de que a história possa se repetir outra vez tanto como muitas outras que presenciou.

Mesmo que o maniqueísmo seja bem óbvio, intensificados por um vilão bastante caricato e estereotipado como os encontrados em qualquer filme do gênero, os conflitos que o roteiro traça na linha narrativa também conseguem ir além disso.

Greg Rucka, roteirista e escritor da obra homônima, aborda reflexões mais pessoais, em como finalmente deixar para trás lembranças de tudo do bom e do ruim que os heróis já viram da humanidade. Rucka também desenvolve a idéia de que o resultado dessas experiências amargas é o que os deixaram resilientes e introspectivos, ao mesmo tempo que por dentro sofrem com a repetitividade da lembrança de perdas e questionamentos sobre uma sociedade que, com pesar, observam não evoluir. Também sabem que essa mesma sociedade não os compreenderiam se descobrissem que pessoas como eles existem porque um dos grandes méritos da história é nos fazer imaginar a bagagem que se carrega em ser imortal. Ou seja, é inimaginável.

Essa sensação é nítida em momentos bastante intimistas, como o prazer de Andy ao comer um doce originário do império otomano e a apreensão de seus colegas de ela ser ou não capaz de identificar todos os diferentes sabores e ingredientes nele. Ela não só faz isso como também o reconhece como uma sobremesa legítima, feita tal qual a memória que ela tem sobre ele, talvez, da primeira vez que comeu, sabe-se lá quantos milhares de anos atrás. Uma vida com um plano de fundo simples, onde pequenos prazeres como esse são cultivados em meio ao silêncio respeitoso que eventualmente cai sobre o ambiente e fala mais alto do que qualquer diálogo. Ou o olhar perdido ao passado, nas memórias trágicas ou nostálgicas que a lente das câmeras captam com bastante delicadeza em momentos muito específicos de cada um deles, evitanto a melodramaticidade exagerada, soando até poéticos. Uma sinergia entre todos eles tal qual como a de um casal que se senta mudo a uma mesa, não porque não tenham o que dizer, mas porque já tem intimidade o bastante para respeitarem o silêncio de cada um e apreciar aquele momento e abraça-lo como um presente valioso.

São pontos de vista humanos e agregados à história de maneira bastante natural e comovente que raramente vemos no gênero, tudo isso graças à habilidade da diretora Gina Prince-Bythewood em saber dosar e equilibrar o drama com a inevitável ação numa construção emotiva eficiente. O roteiro conseque a proeza de, inclusive, justificar não de forma muito clara, mas presente, que as decisões violentas do grupo vem de toda essa consciência consequencialista construída a partir de experiências que viveram em outros conflitos ao longo da História. A diretora conseque desenvolver essa sensibilidade dos personagens com êxito nesses momentos, de que cada vida que tiram, mais se distanciam dessa humanidade que emanam, resultando em personagens que já não acreditam mais no futuro, foscos e opacos como lâmpadas cansadas, visível nos semblantes de Andy (Charlize Theron) e Booker (Matthias Schoernaerts).

A diversidade de gêneros, raças, culturas e orientações é ponto importante aqui e reflete, inclusive, dentro do próprio elenco. Nos dá essa sensação natural de que nada disso importa para eles como pessoas. Em nenhum momento o roteiro coloca os personagens a questionarem qualquer coisa relacionada a isso. Ninguém se coloca melhor que alguém por acreditar que tem ou não algum mérito ou um privilégio. Andy é respeitada e naturalmente uma líder porque é a mais experiente de todos, mas é compreendido que as decisões são sempre conjuntas, há independência e respeito por todos os lados, e que o senso de irmandade se sobrepõe a qualquer construção social. Com excessão de um momento muito específico, em que Joe (Marwan Kenzari) e Nicky (Luca Marineli) são capturados por um grupo de soldados e moralmente assediados, fazendo Joe declarar um monólogo que ultrapassa a superficialidade preconceituosa exposta, o filme se mantem o tempo todo forte nessa proposta diversa, porém unitária, numa prática óbvia e não planfetária.

É claro que estamos falando de um filme de ação, e é o que não vai faltar. Muito tiro, porrada e bomba, muita briga belamente coreografada e sequências para agradar até amantes de Rambo. A crítica especializada tem sido bem receptiva pois compreende a técnica, já a resposta da crítica leiga tem sido bastante mista porque o filme realmente tenta quebrar determinados padrões enquanto mantém clichés óbvios para garantir o desenvolvimento que se espera de um longa como esse e lembrar o espectador a todo momento que aquilo é um entretenimento. Então, qualquer elemento que seja um diferencial parecerá defeito para quem está acostumado apenas com o óbvio, ou que só agora resolveu aumentar o nível de exigência apenas pelo prazer de contrariar.

Mas ao mesmo tempo que essa parte do público tem criticado negativamente os clichés pontuais e do vilão caricato presentes, é esse mesmo público que enche as salas de cinema para, há 24 anos, assistir Tom Cruise usando máscara de todo mundo pra se disfarçar e cometendo os mesmos absurdos em Missão Impossível;  dar bilheteria para o 10º filme da franquia Velozes e Furiosos fazer o mesmo que sempre faz com suas piadinhas sem graças para qualquer motivo virar motivo para porrada e explosão de carro caro; ou achar engraçado os robôs de Transformers fazerem rap ou "xixi" na rua. Ou seja, pessoas que tem se incomodado com elementos de ação nesse filme de ação evidentemente o fazem apenas porque falamos de um filme dirigido e protagonizado por mulheres em total pé de igualdade sem ser estereotipado como esperam.

Percebe-se um movimento de ódio e uma antipolitização gigantesca nas redes contra filmes que tentam trazer a diversidade como protagonista de uma história. Ler as resenhas amadoras na página do IMDb chega a ser revoltante em quão infundadas e superficiais são, apenas pela sordidez de menosprezar e rebaixar a pontuação. As críticas que a diretora tem recebido nem mesmo Michael Bay, considerado um dos piores diretores vivos de filmes de ação, já recebeu. É quando uma crítica aponta o corte de cabelo masculinizado de Charlize Theron que, sim, percebemos que a base desse movimento é sexista e atado nos recalques do preconceito. Não que IMDb seja um bom parâmetro para se considerar a opinião pública hoje em dia, mas se tornou um parâmetro para, assim como nas demais redes sociais, observar-se como a cultura do ódio tem se manifestado.

Pois é, não é à toa que a humanidade desmotiva nossos heróis imortais a continuarem vivendo, e nessas horas que ser imortal deve cansar.

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