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quinta-feira, 23 de julho de 2020

KYLIE E DISCO MUSIC, INSEPARÁVEIS POR NATUREZA...

Título: Say Something
Ano: 2020
Gênero: Pop, Dance, Electronic

SOBRE O QUE É A MÚSICA?
É o primeiro single do álbum Disco, a ser lançado em novembro, em que Kylie irá voltar às suas características Dance novamente com fortes influencias da Disco Music.

O QUE TENHO A DIZER...
Embora este seja um blog sobre cinema, onde comento sobre filmes que assisto, resolvi hoje fazer algo de diferente: comentar sobre o novo single de Kylie Minogue.

A primeira razão é porque sou fã, tanto da cantora quanto da pessoa, uma figura bem única e cativante para quem segue sua carreira há tanto ou mais tempo do que eu. A segunda razão porque eu não tinha outro espaço para fazer isso. A terceira porque fui pego de surpresa logo às 7h com a música sendo lançada mundialmente nos principais serviços de streaming. E a quarta e principal razão é que, desde quando ela anunciou o novo álbum, entitulado Disco, a expectativa tem sido grande por todos os lados, seja depois da boa receptividade que seu último álbum teve, da sua participação no Festival de Glastonbury no ano passado (que levou a ser a edição mais vista na história do Festival por conta de sua participação), seja pelo seu oficial retorno a um estilo que a colocou como referência no cenário.

Então vamo lá porque o papo vai ser longo...

Desde quando Kylie se reinventou com Impossible Princess (1997), naquela época ela havia sido motivada pelo seu namorado a não ter medo de ousar. E assim o fez. Falamos aqui do vocalista do INXS, Michael Hutchence. Kylie sofreu não apenas com o fracasso comercial do álbum naquele ano, mas também com o falecimento do cantor um mês depois de seu lançamento. Embora tenha recebido críticas positivas e hoje em dia seja considerado uma jóia única e quase sagrada pelos fãs mais antigos, ele não sobreviveu comercialmente naquela época. Esse revés colocou a cantora de frente a um abismo. E embora tenha sido um quase-suicídio na carreira, em 2000 ela voltou mais forte do que nunca com o álbum Light Years.

Impulsionada pelo primeiro grande revival da Disco Music no sucesso de Cher com o álbum Believe (1998), e da modernização da Euro Dance nos anos que se seguiram, Light Years não é apenas uma parte boa dessa entressafra duvidosa que sempre acomete a indústria musical entre uma década e outra, mas acima de qualquer coisa, é um resgate sólido e emocionante da Disco Music no seu mais perfeito exemplo em faixas como Spinning Around, Disco Down, Butterfly, Your Disco Needs You, So Now Goodbye, e uma pérola da perfeição que é sua faixa título, releitura à sua própria forma do clássico I Feel Love, de Donna Summer, a mesma que Madonna também viria a utilizar como referência fundamental seis anos mais tarde em Future Lovers, do álbum Confessions On A Dance Floor.

Desde então Disco Music e Kylie Minogue falam a mesma língua. O Dance, o Pop, o eletrônico e suas demais vertentes, revitalizações, experimentações e tendências são sempre a base de tudo que ela faz porque ela se movimenta junto com esse nicho do mercado, mas a sonoridade da glamurosa era dos dos anos 70 não apenas é uma inspiração forte em qualquer trabalho pós-Impossible Princess, como também se firmou como uma identidade natural e indivisível de sua personalidade musical.

O álbum Fever, lançado apenas nove meses depois de Light Years, é como uma continuação do anterior, mas ao invés de ser "mais do mesmo", como se imaginaria, traz o senso de continuidade como um conceito evolutivo, que se embasa na Dance Music européia moderna sem deixar de flertar constantemente com a Disco em suas melodias cadenciadas e refrões simples, embalados como hinos em vocais soprosos e sussurantes, como em Can't Get You Out Of My Head ou Come Into My World.

Mudam-se os estilos e as referências, porém, álbum após álbum, Kylie sempre nos presenteia com alguma nostalgia referente à era de ouro das discotecas. A última e mais memórável, na sua parceria com Giorgio Moroder em Right Here, Right Now, de 2015, lançada em uma excelente época para quebrar um pouco do distanciamento comercial que ela se propôs com o álbum Kiss Me Once (2014), que simbolicamente marca uma nova e terceira era na sua carreira. Claro que podemos também citar sua rendição a regravação de Night Fever em 2016, clássico dos Bee Gees que, na sua versão particular, consegue o inacreditável feito de ser tão boa ou melhor que a original. Há também a releitura Disco para a Golden Tour do seu primeiro sucesso, o clássico The Locomotion, um dos melhores momentos da sua última turnê e que até pode ser uma prévia inspiradora desse seu novo álbum.

A cantora tem se aventurado em terrenos mais pessoais desde então, aflorando suas experiências com letras que, mesmo dentro de uma construção tipicamente pop, tenham significados mais relevantes para ela como pessoa e artista. É ela tendo agora o privilégio de ousar sem medo de errar, uma certa independência conquistada por anos na indústria e pela sólida base de fãs.

O álbum Golden (2018), lançado no mesmo ano em que ela completou meio século de vida, seguiu quase que a mesma tendência de Fever, no sentido de ser uma continuidade de algo para uma evolução. Mas aqui, a evolução não é musical, mas no sentido existencialista de uma pessoa que atingiu seus 50 anos. Influenciada pelo cenário artístico de Nashville e da música Country, Kylie pode não ter abandonado o eletrônico, mas essas influencias são nitidamente sentidas em suas letras e na maneira que ela as compõe, traços já visíveis de mudança desde seu trabalho de 2014.

E depois de narrar toda essa jornada é que o novo single entra no assunto, porque ele é um resultado de todos esses mais de 30 anos de carreira.

Lançar um novo álbum entitulado Disco, principalmente depois de Light Years e Fever, parece um tanto pretensioso ou uma repetição do mesmo tema para uma cantora que já explorou esse estilo das mais variadas formas. Afinal, o que mais de novo ela propõe com ele? Segundo ela: "músicas Disco maduras, para pessoas maduras". E "maduro" aqui não é uma questão de idade, mas de músicas que não soem fúteis ou esquecíveis, e que extraiam das pessoas emoções simples e honestas, que as façam ter sentido de existir e agregar ao mesmo tempo que se divertem e interagem com elas num momento onde isso tem sido perdido gradativamente nos últimos anos.

E é por essa razão que Say Something é tão acessível, como se tivesse sido feito especialmente para a pessoa que a ouve porque toda essa proposta está embutida nela. E como o primeiro single dessa nova safra, para aqueles que esperavam algo destruidor ou retumbante, com uma vibe tipicamente Moroder, ou algo aos moldes do que Madonna fez com seu Confessions, ou uma mera reprise da já reprise Say So de Doja Cat, irá se enganar e se frustrar profundamente. Kylie igualmente não faria uma mera reciclagem de suas eras de 2000 e 2001, portanto esta não é uma faixa Disco em sua excelência. Na verdade, é um misto de vários sentimentos e estilos numa música que irá estranhar alguns por ser, dentro das proporções, um tanto imprevisível.

A imprevisibilidade começa na introdução, quando em meio às batidas sintetizadas, ao invés de um solo de baixo, como se esperaria de uma carro-chefe de um álbum que tem a tendência de ser fundamentalmente Disco, entra o de uma guitarra, remetendo a uma era entre a pós-Disco, o New Wave e o Synth Pop, muito mais do que a Disco de fato. Talvez uma referência ao próprio Hutchence e sua música Need You Tonight, já que o solo de guitarra dessa música se adequou com perfeição aos vocais de Kylie quando ela regravou a mesma para a turnê de Kiss Me Once, ou também uma suave lembrança à característica guitarra de U2 em um outro solo que se estende discretamente por toda a segunda metade da música, compondo todo um outro charme e certa organicidade no ápice da canção.

A produção de Richard Stannard, o mesmo que produziu Kylie em Light Years e Fever, já conquista nos primeiros 30 segundos, pois se tem algo que ele sabe fazer muito bem são batidas e ganchos sonoros. E é dessa forma que ele segura essa atenção até o refrão entrar pela primeira vez.

O refrão é aquele momento crucial de uma música que já começa da sua melhor forma, que é sentido que irá evoluir para o hino que aparenta vir a ser. Mas repentinamente se quebra, deixando todo mundo que já se preparava pra se jogar de dançar paralisado no mais puro vácuo. É algo que não se espera em absoluto, principalmente vindo de Kylie, que sempre prezou por refrões melodiosos e grudentos, às vezes repetidos infinitamente ao longo de toda uma música. Acreditei que fosse parte da construção, aquela quebra proposital para a música dar apenas uma amostra do que estar por vir, e a partir dalí voltar a embalar seu ouvinte para finalmente se estruturar num crescente completo até estourar de fato, como acontece depois que o refrão entra pela terceira vez na música Light Years, um orgasmo sonoro por definitivo.

Ao contrário disso, quando o refrão entra pela segunda vez... ele não decola de novo. É como se algo estivesse errado. Why don't you say something? É a pergunta que ela faz. Sem nos dar resposta, é como se ela quisesse que nós mesmos fizessemos essa pergunta de volta para a ela. E depois de um milésimo de segundo de vácuo, que chega a parecer uma eternidade, seus vocais voltam numa bridge lenta e quase etéria para ligar a primeira parte da música com a segunda, as quais isoladas soariam distintas.

É num verso repetitivo, numa melodia que remete bastante às bridges de Into de Blue e Dance, que Stannard finalmente faz uma mágica, e Kylie, na sua versatilidade, transforma esse verso em um novo refrão, sendo com ele que ela irá até a música acabar. É sua resposta ao silêncio que caiu como um peso morto antes, imprimindo nisso a marca registrada de seu estilo, aquilo que podemos considerar "uma faixa Kylie".

Aí, sim, a música evolui e decola numa referência Disco de fato, tanto em estrutura quanto na sinestesia melódica, quase como Donna Summer e suas diversas variações vocais que faz com a frase "I Feel Love". É como se ela nos levasse para o passado, pegando essa fase da pós-Disco e nos levando a uma viagem retroativa ao tempo em apenas alguns minutos, como a querer dizer que a jornada vai partir daqui, dos anos 80, e num Step Back In Time, estaremos onde ela exatamente quer que estejamos.

Também é bastante nítido como Kylie entrou em um outro padrão nos últimos anos. Quando ela canta os primeiros versos é um tanto impossível não se lembrar de Feels So Good, uma das mais memoráveis de Kiss Me Once, ou inclusive da própria faixa título desse álbum e a pessoalidade com que as interpreta. As melodias são próximas. A estrutura lírica também se aproxima muito daquilo que ela fez em Golden, e de como essas influências do Country aperfeiçoaram essa sua nova tendência de transformar emoções e sentimentos cotidianos em versos e metáforas de linguagem universal, com questionamentos simples e importantes sobre a vida com delicadeza e sem qualquer pieguice (alguém diria que Dance é uma metáfora sobre a morte se ninguém falasse?).

Kylie e Stannard fogem à convencionalidade da música pop nesse trabalho, e da fórmula clássica à qual ambos sempre fizeram parte. Ao longo de seus mais de 3 minutos, pode parecer um tanto desconexo e confuso, e que só não é melhor porque todos os excelentes elementos que ela contém causam essa impressão de estarem um tanto fora de ordem. Mas há uma contextualidade essencial nisso, mesmo que não aparente ter sido o mais inteligente ao apelo comercial e popular, o é dentro de suas intenções. E frente a tantos resgates oitentistas e noventistas bastante previsíveis, como os recentemente lançados por Lady Gaga e a Dua Lipa, Kylie se destaca aqui mais pela articulação do que pelo apelo radiofônico, alcançando algo próximo do que conseguiu com Can't Get You Out Of My Head, que na época que foi lançado realmente parecia o som de um novo futuro porque tinha uma abordagem bastante diferente do que se fazia na época.

Say Something pode não ser aquela faixa explosiva e imediata que se esperava, mas sem dúvida nos apreende para o bom ou para o frustrante, ao mesmo tempo que, surpreendentemente, há uma magia nela que cativa, conquista e emociona genuinamente, além de um excelente abre-alas para o que está por vir. Um resumo essencial de toda sua carreira, a caracterização em letras e melodias dessa maturidade que ela quer incrementar no estilo.

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