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terça-feira, 9 de maio de 2017

MUITO MAIS ALÉM DA COR...

★★★★★★★★☆
Título: Cara Gente Branca (Dear White People)
Ano: 2017
Gênero: Comédia, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Logan Browning, Brandon Bell, DeRon Horton, Marque Richardson, Antoinette Robertson, John Patrick Amedori
País: Estados Unidos
Duração: 31 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Em uma Universidade da Ivy League predominantemente branca, um grupo diverso de estudantes questionam e tentam reverter através da conscientização diversas formas de discriminação e preconceito.

O QUE TENHO A DIZER...
Três anos depois do lançamento do filme homônimo, a Netflix, junto com a Lionsgate, resolveram transformar em série aquele que foi um dos filmes com temas raciais mais injustiçados dos últimos tempos. Injustiçado no sentido de pouca gente o conhecer e de nenhum grande e popular festival ou premiação, como Globo de Ouro ou Oscar, lembrar de sua existência, mesmo quando havia qualidades de sobra nele para isso, como a excelente recepção que teve pela crítica.

Das pessoas que o assistiram, muitos não conseguiram entender do que o filme se tratava de fato, se era sobre política escolar ou sobre racismo. Oras, era dos dois! Um está atrelado ao outro, pois o racismo está diretamente relacionado à sociedade e à sua política. Não tem como separar uma coisa da outra. O que o diretor, roteirista e produtor Justin Simien fez foi simplesmente reduzir, comprimir, condensar as situações em um ambiente menor e mais controlado, como uma amostra populacional, e baseado nas suas próprias experiências enquanto estava na Universidade, discutir de maneira bastante contemporânea como a sociedade se comporta a esse tema nos dias atuais.

Definitivamente a má compreensão do filme e de seu teor crítico vem de pessoas que pouca atenção dão a esse problema, ou que persistem em seguir o senso comum de que discutir o racismo no século XXI seja desnecessário, ou sempre resgatarem a escravidão como argumento seja vitimismo, ou taxarem produtos como esse de "racismo reverso", como aconteceu quando o trailer da série foi lançado no YouTube.

Me lembro de uma frase chave do filme, quando a protagonista é questionada sobre o que ela acharia de um programa chamado "Cara Gente Negra". Sem titubear, ela responde: "Os meios de comunicação, de Fox News até os reality shows do VH1, deixam claro o que os brancos pensam de nós". E, assim como no filme, essa resposta também define toda a série e responde todas as pessoas que seguem o pensamento comum, mesmo que a série tenha diversas outras frases que a definem ao longo dos episódios.

Cara Gente Branca (o filme) consegue ser um pouco confuso pela quantidade de temas abordados e discussões a serem relevadas, mas há uma linearidade de pensamento que é coerente se bem acompanhada. Portanto, além de um belo exercício de argumentação, também é uma comédia séria (sim), com doses dramáticas honestas, excelentes interpretações e personagens estereotipados para expandir o contexto, além de um design de produção belíssimo que valoriza a diversidade de maneira igualitária raramente vista.

Seguindo a mesma premissa de que o título seja em referência ao nome do programa de rádio universitário comandado pela militante social e estudante de cinema, Sam White (no filme, interpretado por Tessa Thompson), a série terá o mesmo ponto de partida do filme: a polêmica festa a fantasia cujos convidados deveriam ir fantasiados de negros. E aquilo que a princípio parecia uma "festa inofensiva", resultou em um ato de rebeldia e violência daqueles que, por razões óbvias, se sentiram ofendidos.

Foi uma excelente escolha começar a série novamente por aí, pois justifica logo de cara sua própria existência e maximiza o tal conceito do que é racismo hoje em dia para as caras pessoas que ainda não conseguem enxergar isso. Além disso, Justin Simien, que se mantém como roteirista e diretor de alguns episódios, também se aprofunda em discussões interraciais quando descobrem que a protagonista (agora interpretada por Logan Browning) tem um relacionamento escondido com um branco, algo que no filme também acontece, mas não tinha espaço para um desenvolvimento tão amplo como agora tem.

Uma das coisas que mais fez o filme funcionar (além da consistência do próprio roteiro), eram os atores. Na série da Netflix, do elenco original, apenas Brandon Bell e Marque Richardson foram mantidos no papeis de Troy Fairbanks e Reggie Green, respectivamente. Não que essa troca tenha impactado no resultado, mas alguns personagens acabaram perdendo um pouco do brilho que o filme apresentou, como também alguns deles sofreram drásticas mudanças, como é o caso de Coco Conners (Antoinette Robertson) e do próprio Troy.

No filme, a personagem de Coco (interpretada por Teyonah Parris), talvez fosse a que mais pudesse deixar o espectador confuso, já que ela é uma negra que finge ser branca, negando qualquer ato ou comportamento que caracterize sua raça, incluindo envolvimento com pessoas da mesma cor. Sua alienação e futilidade pareciam descabidas, mas sua construção é tão bem feita que a justificativa de seu comportamento não apenas é entristecedora e desmoralizante, como compreensível. Da mesma forma Troy, que no filme era um personagem condicionado pelo seu pai a agir favoravelmente aos brancos para, assim, garantir um brilhante futuro.

Na série essa complexidade toda foi amenizada. Coco se tornou uma garota ambiciosa que apenas diverge de algumas opiniões e comportamentos, sempre pendendo para aqueles que sejam menos conflituosos e que lhe traga maiores benefícios pessoais. O mesmo acontece com Troy, mas esse, sempre em conflito com as pressões sociais, familiares e políticas vindas de todos os lados ao ponto de igualmente perder sua identidade.

Uma pena Simien ter dado essa guinada de 180 graus na personalidade de ambos, que se no filme foram extremamente bem desenvolvidos, na série poderiam ter sido muito mais. O nível de complexidade dos diálogos, das referências, analogias e metáforas também foi bastante amenizado, e até os discursos de Sam White também perderam alguns pontos daquele humor ácido e perspicaz que fazem do filme um produto não apenas consistente nos seus temas, mas solidamente embasado em suas justificativas. Tudo isso a favorecer uma linguagem mais acessível ao público comum, o que é compreensível, mas não muito necessário.

De qualquer maneira, nada disso altera consideravelmente o resultado final, e novamente o roteiro sai vitorioso ao dar voz aos diferentes pontos de vista, e todos eles sempre convergendo a uma questão comum. Como acontece no quinto episódio, quando Reggie reprime um amigo branco por cantar junto com uma música um termo socialmente impróprio, e então a opinião se divide, tanto para os personagens, como também irá se dividir para o espectador. A conclusão disso é que, independente de quem tenha a razão, nada justifica a abordagem policial que o personagem recebe, numa cena bastante chocante, com referências sociais óbvias e muito mais comuns do que se pode imaginar, colocando todos em um mesmo lado e em um mesmo questionamento, inclusive o próprio espectador.

E ao contrário do que pode parecer, assim como o filme, Cara Gente Branca não é uma série militante ou que tenha intenções de ser polêmica, mas essencialmente questionadora, tanto para o segregado, quanto para o agente segregador, nos fazendo compreender como é ser um negro dentro de uma sociedade branca, e como é ser um branco em uma sociedade racialmente intolerante, e a partir daí encontrar nossa própria essência e identidade como seres humanos.

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