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terça-feira, 5 de janeiro de 2016

IGNORÂNCIA É O MAIOR DEFEITO...

★★★★★★
Título: Os Oito Odiados (The Hateful Eight)
Ano: 2015
Gênero: Suspense, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Quentin Tarantino
Elenco: Samuel L. Jackson, Kurt Russell, Jennifer Jason Leigh, Walton Goggins, Demian Bichir, Tim Roth, Michael Madsen, Bruce Dern
País: Estados Unidos
Duração: 167 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Oito pessoas desconhecidas se protegem em um abrigo durante uma nevasca que poderá durar dias, mas as desconfianças entre eles aumentam conforme seus interesses particulares são ameaçados.

O QUE TENHO A DIZER...
Eu sou fã de Tarantino. Mas não sou aquele fã que ficou fã porque Pulp Fiction (1994) é cult e referência do cinema pop moderno. Fiquei fã depois que essa onda passou e saquei que, de fato, ele é (talvez) o único diretor atualmente capaz de transformar a cultura pop e inútil em algo consistente e relevante no cinema. Tá... também temos Guy Ritchie em uma menor escala, que pode ser a versão mais britânica e descomprometida de Tarantino. Mas a diferença entre um e outro é que todos os filmes de Tarantino são atraentes de alguma maneira e tecnicamente muito bem acabados. Pode ter uma ou outra pessoa que goste menos ou até odeie algum título, mas é inegavel que sua meticulosidade em detalhes seja o que se destaque dos demais cineastas de sua geração porque aquele cabeção é uma biblioteca ambulante de referências que nem mesmo o mais consumista dos consumistas conseguiria identificar de onde vem tanta coisa.

Vale também dizer que, tecnicamente, este não é seu oitavo filme, mas o nono. Muita gente errando as contas ao se esquecer que ele dividiu com Robert Rodriguez a direção em Grindhouse para a sessão Prova de Morte (Death Proof, 2007), assim como também muita gente não conta que seu primeiro filme foi O Aniversário do Meu Melhor Amigo (My Best Friend's Birthday, 1987), e não Cães de Aluguel (Reservoir Dogs 1992). Mas para ficar bonito no poster, fantasiosamente este é seu oitavo filme mesmo, aquela coisa autoral, dirigido e escrito por ele e unicamente ele.

Curiosamente a história do filme se passa no mesmo período e universo que se passou seu filme anterior, Django (2012), sendo enfático ao afirmar que não é uma continuação, embora o complemente. Aqui ele novamente traz à tona o estilo Western (faroeste), porque ele é fã do gênero e o referencia em tudo que é possível, até mesmo quando tem nada a ver. O que se tornou sua marca registrada ao longo dos anos, praticamente uma marca d'agua em seu trabalho.

Inspirado nos seriados de faroeste pastiche dos anos 60, como Bonanza (1959-1973), e dos vilões que sempre apareciam neles para capturar o herói e fazer de todos reféns, a idéia de Tarantino foi simples: e se ele pegasse apenas esses bandidos e os colocassem juntos em um mesmo lugar, nada de mocinhos, nada de heróis, apenas os mais abomináveis deles encarcerados por um azar do destino, como uma terrível nevasca tal qual no filme O Enigma de Outro Mundo (The Thing, 1982), onde ninguém confia em ninguém e todos são uma ameaça?

E a idéia que parecia simples e teatral demais se engrandeceu daquela forma tarantinesca de sempre, desenvolvendo a linha narrativa a partir dos próprios personagens, e não a partir de uma história pré concebida. Ou seja, Tarantino nunca irá contar, por exemplo, uma história sobre um assalto a banco. Ele primeiro irá apresentar um personagem que encontrará outros personagens, o qual contará para todos como o assalto ocorreu de forma que cada um deles ficará na dúvida se aquilo de fato aconteceu daquela maneira. Igual história de pescador: verdadeira, mas exagerada. É isso que ele sempre faz, e que volta a fazer aqui.

Portanto, partindo-se do princípio de que "se a coisa está ruim, vamos piorá-la", é exatamente isso que vemos em cada um dos oito personagens. E o "odiados" do título não é à toa. Eles realmente são isso. Os exemplos da escória da humanidade está em cada um deles, desde a alegoria corrupta à racista, do chefe de quadrilha ao assassino frio e calculista. O niilismo é grande. Não chega a ter um pessimismo tão forte e contundente como em Onde Os Fracos Não Tem Vez (No Country For Old Men, 2007) por conta do humor negro e sarcástico presente, mas por outro lado consegue mostrar que é realmente a ignorância a mãe maior de todos os defeitos, ao qual estaremos condicionados eternamente. Não há espaço para heroismo, embora haja breves momentos de redenção ou até uma singela mudança comportamental, mas nada disso salvará qualquer um deles do fatídico destino.

Quando pensamos que um personagem finalmente terá um momento de luz e bondade, ele se revela um abominável monstro da neve. E isso tudo, na realidade, é a forma que Tarantino tem de, como disse um crítico, soltar mais uma vez o grito de raiva sobre o grandioso problema racial que ainda existe entre os norteamericanos. Um filme que também afirma em Dó Maior de que todos nós nunca superamos a escravidão, nos fazendo pensar se a única maneira para isso será através da crua brutalidade. Não é à toa que este filme complementa Django de alguma forma, pois revela que mesmo apesar de tanto esforço e mudanças, tudo continua quase da mesma forma até hoje. 

Por vezes, o teor sociopolítico chega a ter escalas próximas ao do filme A Floresta Petrificada (The Petrified Forest, 1942), quando este foi uma forte metáfora à Grande Depressão que ocorreu nos EUA logo após a Primeira Guerra. A ambientação inóspita e teatral, o encarceramento, o crescente conflito entre os personagens e seus graus de confiança também tem o mesmo peso. Obviamente o texto de Tarantino não consegue ser tão sério e sutil como o clássico filme de Archie Mayo, até porque, como dito, Tarantino não é clássico. Mas é bastante providencial que a A Floresta está para a Grande Depressão tanto quanto Odiados está para a Guerra Civil.

Que Tarantino sempre exagerou no sangue, transformando a violência em um absurdo cômico, isso é fato. Então a neve chega, a tensão aumenta, as armas são sacadas, o sangue esparramado e as cabeças estouradas. E um pouco diferente do humor sarcástico de seus filmes anteriores, aqui consegue ser mais desconfortável, corrosivo como ácido, construído por vezes na intenção proposital de constranger. Sem dúvida é impossível conter as gargalhadas quando Major Warren (Samuel L. Jackson) conclui a forma como ele tratou o filho do General Smithers (Bruce Dern), pois é de um sadismo tão surreal e justificado que elas saem não porque é engraçado, mas porque nos incomoda, nos desafia e atinge diretamente nossos piores defeitos. Gargalhamos automaticamente não para alivar o peso da situação, mas para aliviar a consequência da ignorância, da vergonha, do ponto em que ambos personagens precisaram chegar para um demonstrar sua razão e o outro seu arrependimento. São gargalhadas de fuga tal qual o sulismo gótico de Killer Joe (2011), quando Matthew McConaughey obriga Gina Gerson a fazer sexo oral em uma coxa de frango.

Brilhante também é a personagem de Jennifer Jason Leigh, que aparentemente parece estar lá apenas para figurar e para todo momento ser humilhada, chacotada e tratada como um animal qualquer. Uma personagem patética do início ao fim que representa, nada mais, nada menos, que todas as pessoas do mundo igualmente patéticas como ela. Talvez a personagem conceitualmente mais forte de todo o elenco no sentido de representação de uma sociedade lamentável, aquela que só abre a boca para dizer o que não presta e mesmo assim é ouvida por muitos. Kurt Russel também oferece uma das suas melhores performances em um anti-herói tão interessante quanto o de Jackson, mas que, dentro de todo o universo pessimista em que está inserido, se torna o elo mais fraco da história.

Não há nada diferente do que Tarantino já fez em seus filmes anteriores, mas o que sempre chama atenção e ainda oferece esse tom de novidade ao ponto de cada novo filme ser um evento é que, para que todo esse universo que ele cria tome forma, os personagens são muito bem construídos, e ele nunca tem preguiça em desenvolvê-los. A riqueza de detalhes é sempre tão grande que ele realmente pinta a característica e a personalidade ao ponto de primeiro nos interessarmos por eles, para depois ouvirmos o que eles têm a contar. Particularmente acho isso brilhante, porque é difícil atrair o interesse do espectador por esse lado no cinema porque demanda tempo e paciência. Por isso que seus personagens são sempre visualmente muito bem caracterizados, até mesmo quando há aquela cafonice de detalhes que simbolizam a marca da maldade, como o tampão de olho de Elle Driver em Kill Bill (2003), ou o refinado sadismo de Landa em Bastardos Inglórios (2009), técnicas clássicas da ficção para fazer um personagem se tornar memóravel tal qual uma marca registrada, ficando fácil associar sua personalidade à característica.

Mas isso tudo, ao mesmo tempo que é uma grande virtude, também é um grande defeito. Tarantino perde muito tempo até chegar ao finalmente de alguma coisa, desenvolvendo tudo de formas que apenas faz sentido na cabeça dele, mas que para o resto das pessoas não faz a mínima diferença ou tem a menor importância, como a longa tomada dos cinco minutos iniciais para enfatizar a trilha original de Ennio Morricone. Cinco minutos com a câmera em cima da neve e de uma imagem de Jesus crucificado até a carruagem passar. Ok... em um minuto pude imaginar dezenas de significados que aquela imagem poderia ter para o filme (ou até não ter), e o resto foi bocejo. No fim, a maior conclusão que se tira disso é que ele não vai ter pressa alguma durante os 160 minutos divididos em seis prolongados capítulos, onde o penúltimo vai servir mais como um interlúdio do que algo realmente necessário para a história.

O capítulo cinco (entitulado Os Quatro Passageiros) podia muito bem não ter existido, não apenas para aliviar o tempo do filme, mas também para não estragar todo o suspense e a ambientação que ele demora horas para construir e convencer o espectador. Podia muito bem ter sido substituído por uma breve explicação por parte de algum outro personagem, já que somos praticamente esclarecidos de tudo muito antes devido à perspicaz observação do personagem de Samuel L. Jackson. Isso faz o capítulo se destoar do resto e empobrecer todo o desenvolvimento quando personagens indeterminados como Minnie e Sweet Dave faziam muito mais sentido no imaginário do espectador do que no do próprio diretor. São nessas horas que Tarantino erra, revelando o que não precisava ser revelado, e falando demais quando poderia ter ficado quieto. Até mesmo sua narração repentinamente entra na história de maneira desnecessária, como se ele percebesse que alguém está perdendo o interesse, servindo mais para recapitular quem cochilou em algum momento do que nos dar a impressão de que o que vemos é um livro interpretado, uma quase representação teatral de seu texto.

É notável a forma como Tarantino tem conseguido desenvolver a crítica social nos seus últimos filmes sem fazer com que as pessoas percam o interesse por ele. Afinal de contas, assim como qualquer artista pop, a função é disseminar uma idéia da maneira mais abrangente possível, por mais que ela seja difícil de ser compreendida. Por essas e outras que seus esforços são louváveis, mas sua pretenção por vezes atrapalha o resultado. Odiados poderia ter sido um de seus melhores filmes por conta de seus personagens alegóricos, das situações metafóricas, do peso crítico embutido, da atualidade e seriedade de sua temática, mas se perde na falta de objetividade e peca pelo excesso. Ainda assim, por algumas e outras razões, merece ser assistido, principalmente porque ele sabe dominar técnicas, rendendo momentos prazerosos como o plano sequencia de dois minutos em que Daisy (Jennifer Jason Leigh) observa seus inimigos beberem o café enquanto toca violão, momentos em que sabemos que Tarantino não erra e que percebemos porque gostamos dele até mesmo quando não concordamos com seus exageros.

CONCLUSÃO...
Poderia ter sido um dos melhores filmes do diretor se não fosse seu excesso de confiança e da costumeira falta de objetividade. Não chega a ser esquecível, mas não tem o mesmo apelo de seus filmes anteriores, embora o teor sociopolítico seja louvável da mesma forma como foi em Bastardos e Django. E entre alguns momentos canseira e outros, há aqueles que realmente valem a pena serem vistos, mas que ficam foram do contexto se vistos isoladamente, o que nos obriga nos arrastar por muita coisa desnecessária e redundante.

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