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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

JÁ ACABOU, JESSICA?

★★★★★★★★★☆
Título: Jessica Jones
Ano: 2015
Gênero: Drama, Ação
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Krysten Ritten, Rachael Taylor, David Tennant, Carrie-Anne Moss, Mike Colter
País: Estados Unidos
Duração: 50 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Uma detetive particular com super poderes descobre que um homem responsável por vários traumas de seu passado está de volta, deixando mais um rastro de vítimas por onde passa.

O QUE TENHO A DIZER...
Jessica Jones é parte da empreitada da Netflix em investir em super herois subaproveitados da Marvel. O primeiro foi Demolidor, lançado no começo do ano e que superou as expectativas tanto do serviço quanto de seus assinantes. Jessica Jones é o segundo, enquanto Luke Cage e Iron Fist estão previstos para 2016. Esses quatro heróis fazem parte do mundo de Demolidor, que estão inseridos no universo da Marvel.

A idéia da Marvel é explorar heróis que, de alguma forma, não tem espaço para serem explorados no cinema, e assim expandir sua proposta para outras mídias e dar continuidades paralelas aos acontecimentos dos filmes, já que todos eles ocorrem dentro de uma mesma época, mesmo que não estejam conectados. Por isso que a estratégia da Marvel com a Netflix será a mesma que foi na telona, apresentando os heróis com seus seriados individuais para depois reuní-los em um especial que se chamará The Defenders, previsto para 2017.

Jessica (Krysten Ritter) é uma mulher independente, com super poderes e uma personalidade um tanto auto-destrutiva, inferiorizada por conta de acontecimentos traumáticos no passado, tanto na sua infância quanto os causados por um homem misterioso e muito perigoso conhecido como Killgrave (David Tennant).

Killgrave possui o poder da persuasão e do controle da mente, e Jessica foi uma de suas vítimas, conseguindo escapar com diversas sequelas psicológicas que a fizeram abandonar a vida fracassada de heroína. Para alimentar seus vícios e pagar o aluguel de um horroroso apartamento, ela agora trabalha como detetive particular. Dessa forma também se sente útil sem precisar estar em evidência e muito menos ter um pseudônimo e uma identidade secreta, já que vive pelas sombras da cidade e da sua autodepreciação, sabendo que ninguém dará atenção a isso.

Logo no primeiro episódio ela é contratada para descobrir o paradeiro de uma garota desaparecida, e durante as investigações percebe que Killgrave está envolvido, fazendo-a reviver novamente o pesadelo do passado, piorando suas crises ao ponto de decidir fugir.

Mas é durante o desespero que percebe que fugir nunca será a solução. A solução é, na verdade, neutralizar o responsável por tudo. Então a heroína adormecida ressurge, não apenas para impedir o vilão de fazer outras vítimas, mas para superar seus traumas e se livrar da obsessão de um homem que a aprisionou e acredita dominá-la.

Ao contrário do desenvolvimento de Demolidor, aqui a história engata para um suspense dramático mais psicológico, embora a fórmula seja basicamente a mesma, começando com a trilha sonora progressiva de abertura, bastante similar com a do seriado anterior.

A melhor parte desta fórmula é que novamente nada é tratado como um seriado de ação cuja única proposta seja um super herói combater vilões poderosos. E o ingrediente diferenciado aqui é que ele não é recheado de pancada e perseguições miraboltantes na tentativa de impedir o caos e a destruição em massa de uma cidade, como muita gente pode esperar. Assim como no seriado de seu colega de bairro (já que ambos são ambientados no bairro novaiorquino Hell's Kitchen), mesmo havendo o lado fantástico dos quadrinhos naturalmente embutido, o assunto é levado a sério, de maneira envolvente, adulta e, por vezes, pesada demais, bastante diferente do universo mais lúdico que a Marvel levou aos cinemas, de classificação etária mais acessível.

Se em Demolidor a máfia foi abordada de forma crua e violenta, aqui o tom não é diferente. Mas ao invés do sangue escorrer pela tela, o que realmente aflige o espectador é a proximidade amarga com a realidade ao tratar de assuntos delicados e recorrentes, como a discriminação, o assédio, a violência contra mulheres e o estupro. De forma indireta também lida com o sexismo e a misoginia, já que o seriado é liderado por um elenco feminino, de personagens poderosas que fogem de estereótipos frágeis e submissos para agradar o público masculino. Tudo a calhar numa época em que as mulheres voltaram a questionar seus valores e a sua importância no mundo atual.

Sim, são todos assuntos válidos e que chegam a dar um nó na garganta, como no sexto episódio, em que Jessica visita na enfermaria da prisão uma das vítimas de Killgrave. É quando outro assunto mundialmente discutido entra em pauta e de maneira bastante discreta e impactante. São momentos como esse que percebemos como as metáforas no mundo Marvel sempre foram muito fortes, e que heróis e poderes são ferramentas relevantes para mostrar através da fantasia como é a realidade que vivemos, nos mantendo atentos enquanto a mensagem disfarçada de diversão e passa tempo é absorvida.

As atitudes duronas de Jessica são apenas para camuflar seus medos e receios. Por dentro ainda é uma mulher que se sente fragilizada e inferiorizada, que agora luta para se livrar desse sentimento opressor e dominador custe o que custar, como a emergir do fundo do mar. Os poderes de Jessica se tornam bastante coadjuvantes, esquecíveis até. Estão lá apenas como um adorno, para nos lembrar de que ela é uma personagem adaptada dos quadrinhos e para reforçar a idéia de que ela é uma metáfora da mulher que se fortalece para lidar com qualquer problema.

Sim, é um seriado com tons feministas, mas tudo muito bem construído e abordado. Nada panfletário, mas óbvio em sua proposta, o que deixa evidente a boa qualidade do roteiro que consegue inserir e desenvolver todos esses assuntos em forma de tramas e não de discussões impositivas.

Claro que também há espaço para os alívios cômicos. O próprio temperamento da protagonista já é um por si só, rendendo algumas situações engraçadas até quando o assunto é sério, como quando sofre hostilidade de um casal preconceituoso que acusa pessoas com poderes de terem destruído Nova York e matado pessoas inocentes (em referência aos acontecimentos de Os Vingadores), e Jessica se defende dizendo que ela nem estava lá, e que se é para acusar alguém, que acusem "o homem verde e o outro que se veste de bandeira" (referindo-se a Hulk e Capitão América). Alívio cômico certeiro que brinca com as próprias referências do universo Marvel, assim como quando ela recomenda uma outra investigadora, chamada de Angela Del Toro, outra personagem dos quadrinhos e do mesmo universo de Demolidor.

Essas metacríticas em tom de piada são recorrentes em qualquer adaptação da Marvel porque são formas bem humoradas de fazerem referências diretas aos materiais originais e especialmente feitas para o delírio dos fãs. Claro que em Jessica Jones não seria diferente, havendo referências diretas à própria imagem da personagem nos quadrinhos quando, em um flashback, Trish propõe que Jessica use um horroroso uniforme branco e adote o pseudônimo Jewel, nome e uniforme que a personagem utilizou nas publicações antes de abandonar a carreira de heroína.

Como acontece na maioria das produções originais do Netflix, demora alguns episódios até tudo engatar o ritmo que o espectador realmente espera, e o clima neo-noir apenas contribui para dar mais ênfase ao suspense psicológico do que na ação. A situação fica cada vez mais aterrorizante quando a obsessão de Killgrave mostra-se tão sufocante ao ponto de não termos mais certeza se ela será capaz de se livrar, ou se continuará submetida a ele. Pois é... a grosso modo pode ser apenas uma história sobre Jessica, mas que na verdade representa várias Jessicas pelo mundo afora.

Há até momentos para um romantismo cheio de obstáculos e dificuldades típicas do Universo Marvel entre Jessica e Luke Cage, já que esta também é a oportunidade de apresentarem o personagem antes dele ter seu próprio seriado (valendo dizer que ambos são casados nos quadrinhos). A boa química entre eles já nos faz perceber porque no meio de tantos erros, tudo no fim dará certo.

Algumas mudanças foram feitas para se encaixarem melhor na adaptação. O nome verdadeiro do vilão nos quadrinhos é Zebediah Killgrave, e ele é croata, mas no seriado é Kevin Thompson e ele é britânico. Nos quadrinhos, por conta de sua pele cianótica depois de um acidente, seu pseudônimo passou a ser Purple Man (Homem Púrpura) e no seriado se tornou Killgrave. Embora na série sua pele não seja roxa, suas roupas são, sejam acessórios ou até mesm o terno completo, como em alguns episódios. Seus poderes nos quadrinhos são hormônios que afetam a decisão das pessoas, no seriado é um vírus. Jessica também não tem os poderes tão desenvolvidos como nos quadrinhos, e no seriado sua força é limitada, e ela é bastante vulnerável, além de não voar. Jeri Hogarth é um homem nos quadrinhos, mas no seriado é uma mulher justamente para intensificar essa atmosfera feminina mais dominante.

Apesar de não chegar a ser uma anti-heroína como é Elektra, outra personagem também do mesmo cenário de Demolidor (e que fará sua aparição na segunda temporada do herói em 2016), sua personalidade um tanto auto-destrutiva a faz chegar bem próximo, além de ser tão bem justificada quanto da outra personagem. A diferença é que Jessica, como ela mesma chega a dizer, tem a piedade como seu maior defeito. E assim o Netflix oferece mais uma decente adaptação de uma heroína que realmente já estava na hora de todos conhecerem.

CONCLUSÃO...
O Netflix acerta mais uma vez adaptando uma história em quadrinhos da Marvel que faz parte do mundo de Demolidor, mas dessa vez por um ponto de vista muito mais feminino do que antes, e nada frágil, abordando temas delicados e desenvolvidos como tramas e subtramas, e não como discurso panfletário e impositivo em uma história de uma heroína cujos seus poderes ficam até esquecíveis perto da história que se desenvolve lenta, mas com intensidade e relevância.

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