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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

BRILHANTE COTILLARD...

★★★★★★★★★☆
Título: Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit)
Ano: 2014
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne
Elenco: Marion Coutillard, Fabrizio Rongione, Catherine Salée, Christelle Cornil
País: Bélgica, França, Itália
Duração: 95 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Sobre uma mulher que, após se recuperar de uma crise nervosa sofrida no trabalho, recebe a notícia de que para continuar empregada ela deverá convencer seus 16 colegas a abrirem mão de um bônus que receberão pelo desempenho alcançado no período em que estava afastada.

O QUE TENHO A DIZER...
Este filme Belga foi dirigido, escrito e produzido pelos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, cineastas populares em seu país e presenças constantes em importantes festivais de cinema como o de Cannes, no qual já ganharam duas Palmas de Ouro, um prêmio do Juri Especial e três prêmios do Juri Ecumênico recebidos por diferentes títulos. Eles também foram responsáveis por co-produzir outro grandioso filme também estrelado por Marion Cotillard, o emocionante drama Ferrugem e Osso (De Rouille Et D'os, 2012), mas é a primeira vez que trabalham diretamente com ela, que também é a única artista famosa e não Belga com quem eles já trabalharam, já que sempre optam por artistas locais não famosos mundialmente.

É inegável que a francesa Cotillard deve ser considerada uma das melhores atrizes do cinema mundial da atualidade e também de sua geração. Esqueça do uso que Hollywood faz de sua imagem para engrandecer suas produções, pois é particularmente em filmes pequenos, independentes e locais que ela consegue demonstrar o seu imenso talento por fazer seus personagens crescerem de tal forma que esquecemos do filme para mergulharmos efetivamente no drama humano representado.

Neste filme isso não seria diferente, e assim como em Ferrugem e Osso ou em Piaf (La Môme, 2007) sua técnica novamente sobressalta tanto nos momentos mais sutis como também naqueles em que ela não hesita em se despir e se desconstruir emocionalmente, pedaço a pedaço, aos olhos do espectador. E o melhor de tudo, nunca ofuscando o filme como um todo.

A história é baseada em um fato parecido que os irmãos Dardenne leram a respeito em 2000 de um caso ocorrido na França, e posteriormente a isso descobriram mais três casos similares que ocorreram na Bélgica, Itália e Estados Unidos. Mas como um todo explora situações comuns e sempre atuais que envolvem as diferentes prioridades no cruel sistema convencional de trabalho, colocando os valores morais no patamar mais baixo e menos importante deles. Agregado a isso estão os fatores psicossociais aos quais os personagens se submetem por conta de seus subempregos, como: a desvalorização profissional e pessoal resultante da baixa remuneração e estagnação, a falta de perspectivas pessoais pelo medo do desemprego, e o assédio, que por si só já define o mais alto grau de leviandade do sistema.

A personagem de Cotillard passa por todas essas dificuldades e cada um dos seus 16 colegas representam uma qualidade ou um defeito resultante dessa relação trabalhista sub-humana construída pelo próprio sistema em que todos estão dispostos.

O filme já começa com o coice que Sandra (Marion Coutillard) leva com a notícia de que a maioria de seus colegas de trabalho votaram por receber um bonus de mil euros em troca de sua demissão, já que seus superiores justificaram que alguém deveria ser demitido para que as horas extras trabalhadas por cada um deles possam ser pagas por conta de dificuldades financeiras que a empresa passa, quando na verdade isso foi apenas uma mentira para demitirem sem justa causa uma colaboradora pouco produtiva e que se tornou um peso morto por ter sido afastada por problemas de saúde relacionados ao próprio trabalho.

Não é esclarecido se seu problema de saúde é resultante da pressão produtiva, se ela já sofria algum tipo de abuso moral ou se ela já era emocionalmente instável, mas devido ao descaso da maioria pela sua situação, incluindo de uma colega muito próxima, toda a situação assediosa se esclarece em definitivo durante o duro processo que ela terá de passar para convencê-los a mudarem suas opiniões em uma nova votação concedida pelo chefe da empresa.

Independente das razões prévias que culminaram a toda essa situação degradante, o fato é que nada justifica as atitudes cruéis e covardes em que é submetida.

O assédio ocorre tanto verticalmente, por conta da situação ameaçadora em que seus superiores colocam ela e os demais, como também horizontalmente, quando seus próprios colegas optam por negligenciá-la na ilusão de serem beneficiados com isso.

Durante sua penosa peregrinação ela consegue despertar o arrependimento e a solidariedade de alguns e até mesmo a mudança de comportamento de outros, além de agora poder distinguir quais as pessoas em quem ela poderá confiar daquelas que um dia acreditou poder confiar. Por conta disso os diferentes interesses entram em choque, gerando uma desconfortável situação entre todos. Conforme o medo gera dúvidas futuras e alguns receios sejam inevitáveis, a personagem adentra em todas as fases que classicamente caracterizam o assédio moral propriamente dito, que são: a desmoralização pessoal, a incompreensão do estado/situação e o sentimento de impotência que culmina na total desvalorização da vida. Há ainda um momento em uma das cenas finais onde o principal assediador tenta convencê-la de que ela foi a causa de todo o caos, pois a vitória do assediador é convencer a vítima da culpa.

Portanto, mesmo sendo um drama bruto, em nenhum momento ele é explícito nessas abordagens. Os irmão Dardenne são tão sutis na condução desses temas e o roteiro é tão contundente e verossímel que é impossível não se sentir convencido de que isso é um exemplo de uma realidade que ignoramos. A filmagem com câmera a todo tempo em mãos, como um estilo documentado (mas sem aquela sensação nauseante), é bastante intimista, e junto com os planos sequencia (cenas sem cortes), que chegam a durar até impressionantes 7 minutos, conseguem aproximar muito mais o espectador aos ápices da acentuada curva dramática. Portanto, a progressão destrutiva e os constrangimentos sofridos pela personagem chegam a ser estarrecedoras.

É difícil abordar esses temas sem cair no cliché como acontece, por exemplo, em Terra Fria (North Country, 2005) título que me veio a memória agora por também tratar do trabalho exploratório e do assédio (moral e sexual) sofrido pela personagem central, mas que cai em um melodrama típico para induzir o espectador à comoção fácil muito mais do que pela condução elaborada das situações, como acontece brilhantemente aqui.

A perfeição de Cotillard é impressionante desde pequenos momentos que apenas o seu olhar expõe a felicidade das poucas vitórias que ela amargamente conquista, até naqueles em que sua postura desvanecida e cansada refletem a decepção da negação e da total descrença humana. A atriz chegou a fazer algumas cenas mais de 50 vezes, sendo 82 vezes o recorde em uma delas, nesse caso não significa incompetência, mas a busca dessa perfeição que vemos.

Por determinados pontos o tema abordado indiretamente se refere ao mesmo do longa O Reencontro (Återträffen), da artista sueca Anna Odell, que por coincidência falei a respeito em alguns posts atrás. Compreendendo-se que os dois filmes são ambientados em diferentes situações e pontos de vista, eles se complementam por mostrar a perversidade injustificável de um grupo sobre uma minoria que, além de não conseguirem se defender, passam a acreditar que são incapazes de fazê-lo. Felizmente ambos mostram que existem alternativas para a superação dessas dificuldades, e que ninguém é obrigado a guerrilhar contra elas, basta fazer novas escolhas.

Dois Dias, Uma Noite tem sido ovacionado pela crítica por onde passa, especialmente à interpretação de Marion. O filme foi a escolha oficial da Bélgica para a seleção de finalistas ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Por já ter sido lançado em território norteamericano e ser presença de festivais importantes como os de Telluride, Nova York, Chicago, dentre outros, haverá grandes possibilidades de também figurar nas demais principais categorias da temporada de premiações. É esperar para ver.

CONCLUSÃO...
Um dos melhores filmes do ano tanto pela brilhante perfomance de Marion Coutillard quanto pela abordagem de temas complexos serem desenvolvidos de maneira tão sutil que emocionam pela elaborada condução das situações ao mesmo tempo que criticam os sistemas de trabalho e fatores psicossociais agregados a eles.

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