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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

NEM TÃO EXEMPLAR ASSIM...

★★★★★★
Título: Garota Exemplar (Gone Girl)
Ano: 2014
Gênero: Suspense
Classificação: 16 anos
Direção: David Fincher
Elenco: Ben Affleck, Rosamund Pike, Kim Dickens, Carrie Con, Neil Patrick Harris, Tyler Perry
País: Estados Unidos
Duração: 149 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
No dia do 5º aniversário de casamento, Amy desaparece deixando várias pistas, mas nenhuma que leve diretamente a ela. Ao mesmo tempo que a polícia investiga os fatos, tudo indica que Nick, seu marido, não é tão inocente quanto parece.

O QUE TENHO A DIZER...
Percebe-se que David Fincher tenta a todo custo emplacar algum novo thriller tal qual ele fez no passado com Se7en (1995), Clube da Luta (Fight Club, 1999) e O Quarto do Pânico (Panic Room, 2002). Ele não foi muito feliz no gênero com Zodíaco (Zodiac, 2007) e se deu um intervalo para investir em dramas como o cansativo O Curioso Caso de Benjamin Button (The Curious Case Of Benjamin Button, 2008) e o aclamado A Rede Social (The Social Network, 2010). Voltou ao gênero um ano depois com sua hedionda adaptação norteamericana de Os Homens Que Não Amavam As Mulheres (The Girl With The Dragon Tattoo, 2011). Hediondo e desnecessário, diga-se de passagem, já que as adaptações suecas das obras de Stieg Larsson são muito melhores em todos os aspectos.

Garota Exemplar é baseado no livro de Gillian Flynn, lançado em 2012, que se transformou instantaneamente em um best seller, vendendo mais de 8 milhões de cópias no mundo. Foi bastante aclamado por narrar as consequências obscuras de um casamento decadente, bem como o circo manipulativo criado pela mídia em cima das situações trágicas que envolvem os mistérios da trama. É produzido pela atriz Reese Witherspoon e sua produtora Pacific Standard junto com a Regency. Parece que a princípio era pra ela ter sido a protagonista, mas por conta da sua gravidez teve que abrir mão do papel. A autora também é a roteirista, por conta disso, vale-se dizer, o filme é 90% fiel ao livro, desde o desenvolvimento narrativo até mesmo nos diálogos, muitos dos quais foram tirados da própria obra original, algo sempre muito interessante de se observar. Se quiser ler o resto por sua conta e risco, selecione o texto para aparecer: Foi divulgado que a autora havia mudado o final do filme para que aqueles que já leram o livro não perdessem o interesse. Realmente há algumas diferenças mínimas, mas nada significativo, e tudo foi apenas um boato. Para os que não leram, essa informação não faz qualquer diferença.

Fincher novamente abusa do tempo nas mais de duas horas e meia de um filme que visualmente cansa pelo excesso de edição e diálogos cortados, perdendo a fluidez e a grande expectativa viciante que o livro tem. Quem desconhece a obra original poderá achar a história um pouco inconsistente porque Flynn se limitou muito no desenvolvimento da história para mantê-la a mais fiel possível ao livro, mas não soube desenvolver a personalidade dos personagens principais da maneira como é brilhantemente feita no original e indispensáveis para a imersão na trama. Este é de cara o problema mais notável para aqueles que leram a obra, pois embora a história como um todo possa cair numa sequência interminável de absurdos um tanto difíceis de engolir até mesmo dentro da própria ficção, o grande atrativo é a construção dos personagens e suas consistentes personalidades.

Ben Affleck pode ser bonito e ter um sorriso camarada, mas ele é um ator tão medíocre quanto seu personagem. Felizmente ele provou nos últimos anos que consegue ser um bom diretor e roteirista, qualidades que salvaram sua carreira do fracasso, porque sua falta de talento cênico é devastadora. Para sua sorte, sua incapacidade de atuar e a fisionomia sempre apática caem como uma luva no personagem. Nick Dunne é perfeitamente descrito pela escritora como uma pessoa introvertida, mecânica e inexpressiva, havendo momentos que sua rigidez emocional chega a ser constrangedora até mesmo para o leitor, mas o personagem traz embutido um sarcasmo e uma autodepreciação que rende momentos de humor negro e sutil. Affleck evidentemente é um ator que seria uma das últimas opções de Fincher para qualquer trabalho, mas assim como Cronemberg conseguiu se beneficiar da mesma incompetência do ator Robert Pattinson para caracterizar o personagem arrogante, egocêntrico e narcisista de Cosmopolis (2012), percebe-se que Fincher tenta fazer o mesmo com as inabilidades do ator em prol do inábil personagem. O resultado só não tem muito sucesso porque nem Gillian Flynn, nem o próprio Fincher, conseguiram deixar claro no filme que o que vemos naturalmente de Affleck na tela é exatamente o que o seu personagem é no livro. Para o espectador leigo a interpretação do ator pode não parecer convincente, o que de fato não é, mas é coerente com o personagem, isso só não ficou claro. E o tal sarcasmo e autodepreciação, grandes atrativos do personagem, passam despercebidos.

O mesmo pode ser dito sobre a personagem Amy, mas ao contrário de seu colega, Rosamund Pike atua de verdade e faz um excelente trabalho. Mas o filme em nenhum momento se beneficia ou argumenta sobre a inteligência acima do normal da personagem e a máquina manipuladora que ela é descrita no livro. Os leitores perceberão que a atuação da atriz é extremamente sutil e calculada principalmente nos momentos mais dramáticos entre ela e Affleck, onde é possível notar subliminarmente toda sua perspicácia e dissimulação. Quando o roteiro finalmente tenta expor essa genialidade de Amy de maneira mais óbvia, é tarde demais e pouco convence.

De maneira até curiosa, os demais coadjuvantes acabam roubando as cenas, como a irmã Margo (Carrie Con) e a detetive Rhonda Boney (Kim Dickens). Considero infeliz a escolha de Tyler Perry para o advogado Tanner Bolt, um personagem que na verdade nada acrescenta tanto no livro quanto no filme porque ele não tem nenhuma conclusão importante na história, e o ator entrega um tom cômico e despretencioso que soa incoerente, talvez para compensar essa desimportância, mas ainda sim continua esquecível.

Fincher tinha um grande material nas mãos para fazer mais um grande suspense quando parte-se do princípio de que o livro se bem sucede no gênero por conta da narrativa um tanto folhetinesca que intercala o ponto de vista de Nick e o ponto de vista de Amy sobre a relação de ambos como se fossem capítulos, cada um deles interrompidos em momentos chaves que prendem a atenção do leitor para descobrir como cada um desses momentos se esclarecerão. Essa proposta foi mantida no filme, mas não funciona tão bem quanto no papel. Quando a história atinge seu climax, um momento extremamente importante que pega o leitor de surpresa pela maneira abrupta como a reviravolta acontece, esse grande impacto é desperdiçado numa cena tola com um tempo narrativo totalmente errado, novamente por conta de uma edição falha e de uma revelação que poderia ter sido construída de forma mais lenta e elaborada. Quando comparamos com Clube da Luta e a maneira chocante como o diretor revela ao espectador algo que estava evidente aos seus olhos o tempo todo, percebe-se que Fincher poderia ter trabalhado melhor nos impactos da trama.

Trent Reznor e Atticus Ross novamente colaboram com o diretor na trilha sonora, talvez para tentar repetir o sucesso da parceria que rendeu um Oscar aos dois pela composição de A Rede Social. A trilha sonora, cheia de instrumentais e ruídos eletrônicos desconexos, tem um papel fundamental para diferenciar os tempos narrativos. Como dito pelo próprio diretor, embora relaxante e vaga, ainda instila um senso de pavor. Mesmo assim ela soa invasiva em alguns momentos, e seu mau uso, seja pelo excesso ou pela má sincronia, deixa a desejar em situações que poderia causar esse impacto surpreendente esperado.

No geral o filme pode agradar principalmente por conseguir reproduzir fielmente os personagens e a cenografia narrada pela autora no livro. Mesmo em uma narração em primeira pessoa, o detalhamento que Flynn dá na descrição dos ambientes e da fisionomia de seus personagens é tão rico que para muitos que leram a obra ficarão surpresos e terão aquela sensação de "era assim que eu imaginava quando li", e esse é um dos grandes pontos positivos. Uma pena que ele falha na sua construção, fazendo todo o clima sombrio, misterioso e dúbio do livro serem perdidos ou pouco aproveitados tanto quanto a rica personalidade dos personagens principais. Muito disso, com certeza, pela inexperiência quase amadora da escritora como roteirista, já que é seu primeiro trabalho para o cinema.

CONCLUSÃO...
Muito fiel ao livro, porém erra em não ter explorado como devia a personalidade dos personagens principais e na edição que nunca oferece o suspense esperado, além da chocante surpresa do clímax que é desperdiçada. Evidente também a falta de forma do diretor em conduzir mais um suspense sem a vontade demonstrada em seus primeiros grandes sucessos, talvez porque aqueles filmes ele tenha feito por vontade, e não por contrato, como acontece aqui ou como aconteceu com Os Homens Que Não Amavam As Mulheres.

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