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terça-feira, 21 de novembro de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE GRACE...

★★★★★★★☆☆☆
Título: Alias Grace
Ano: 2017
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Marry Harron
Elenco: Sarah Gadon, Edward Holcroft, Zachary Levy, Paul Gross, Anna Paquin, Rebecca Liddiard, David Cronemberg
País: Canadá
Duração: 60 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Baseado na história real de Grace Marks, uma serviçal que é condenada a prisão perpétua por duplo homicídio.

O QUE TENHO A DIZER...
Em 1843, Thomas Kinnear e sua governanta, Nancy Montgomery, foram brutalmente assassinados na região do Alto Canadá, hoje sul da província de Ontário. Grace Marks e James McDermott, serviçais de Kinnear, foram acusados do crime. McDermott foi condenado à forca, e Grace acabou sendo sentenciada à prisão perpétua por, na época, ter apenas 16 anos, e porque a sua participação no crime tinha pontos inconclusivos.

A sentença foi controversa, pois por um lado a investigação concluiu que McDermott foi o principal responsável pelo crime por conta da brutalidade e da força necessária para tal, mas sua confissão afirmava que Grace não apenas participou, como também foi a mandante. Durante os 30 anos encarcerada, Grace afirmou não se lembrar de absolutamente qualquer coisa relacionada ao crime, e sua amnésia pós-traumática ergueu diversos questionamentos sobre o fato. Para piorar as dúvidas já existentes, o advogado de defesa dos réus orientou-os à uma confissão elaborada perante o juri. A confissão tinha apenas o intuito de aliviar a pena, já que a sentença havia sido determinada antes mesmo do julgamento. Logo, a confissão elaborada serviu, por fim, apenas para criar maior confusão sobre o que realmente aconteceu ou não, o que o seriado também consegue estruturar muito bem.

Por conta do excelente comportamento e conduta de Grace, além da relevância de ter sido presa tão jovem e passado boa parte da sua vida encarcerada, mesmo com um julgamento inconclusivo, com 46 anos de idade ela foi perdoada pelo Governador. Com a liberdade ela se mudou para Nova York. Após isso, nunca mais se teve registros sobre seu paradeiro, sequer data oficial de morte, e sua história, ao mesmo tempo que é uma dúvida, também se tornou lenda. Portanto, o final do seriado é fictício, e apenas uma forma da autora concluir a história de maneira que todas as discussões relevadas durante os episódios tomassem uma forma definitiva, deixando explícito que, para a personagem conquistar pequenas coisas que sempre deu valor, teve de aceitar continuar sendo subserviente.

O livro homônimo de Margaret Atwood, no qual o seriado é baseado, foi publicado em 1996, e utilizava como base a biografia de Grace Marks a partir das publicações de Susanna Moodie, de 1970. Segundo Atwood, o trabalho de Moodie foi uma grande inspiração, mas com o tempo percebeu, através de pesquisas, que muito do descrito sobre o assassinato não era verídico, o que a fez mudar sua opinião sobre a culpabilidade de Grace Marks, e então a idéia sobre o romance que trajeta entre o verídico e o fictício, criou forma.

A mini-série de 6 episódios (e será somente isso) tem prioridade na mesma narrativa em primeira pessoa da protagonista, cuja história se desenvolve através de diálogos com um personagem que não existiu na vida real, justamente para alguns fatos se manterem próximo dos acontecimentos verídicos, mas ao mesmo tempo dar liberdade para diversas outras interpretações.

O personagem fictício em questão é Dr. Simon Jordan (Edward Holcroft), um psiquiatra jovem, engajado em estudos sobre doenças mentais numa época em que a psiquiatria começava a dar maior atenção ao empirismo. Nas primeiras sessões, Dr. Simon tenta resgatar a memória de Grace através de sugestões sobre coisas e sensações que pudessem remeter ao momento do homicídio, mas a paciente não corresponde da maneira como ele espera. É quando ele solicita que ela conte toda sua história desde sua infância até o momento mais recente, acreditando que, dessa forma, a memória perdida possa aos poucos ser recuperada. E dia após dia, durante as tardes na sala de costura da casa do Governador, é onde as sessões ocorrerão em meios a flash-backs sobre as memórias da protagonista conforme sua narração progride.

Atwood tem sido um nome bastante comentado ultimamente por conta da aclamada série The Handmaid's Tale, disponível pelo serviço de streaming Amazon Prime, série igualmente baseada no livro homônimo da autora de 1985. Embora os dois livros e as duas séries tenham temas bem distintos, a alma central de ambas é basicamente a mesma: utilizar um acontecimento específico como gatilho para explorar de maneira abrangente diversas questões sócio-culturais, políticas, espirituais e religiosas.

O roteiro aqui, assinado pela própria Atwood em parceria com Sarah Polley (criadora e produtora da série), tenta manter as mesmas características do gênero gótico no qual o livro se propõe. Essas características incluem a expressão das doenças sociais da época, explicitando a corrupção moral e a hipocrisia aristocrática, adicionando a isso elementos sobrenaturais e a possibilidade de comunicação espiritual com os mortos, o que foi, de fato, uma catarse de interesse científico durante a era vitoriana (por isso que o episódio da sessão de hipnose é assistida por um pequeno grupo formado por religiosos, intelectuais e estudiosos).

O foco do roteiro se mantém fiel ao do livro, que não é questionar a culpabilidade de Grace no duplo homicídio, mas de utilizar a personagem como uma forte ferramenta de expressão e estudo de comportamento. Tanto é assim que a história pisa em ovos para não ser tendenciosa para nenhum dos lados, seja para sua culpa, seja para sua inocência. Mas independente disso, o que vale é a perfeita costura dos fatos com observações sociais que ainda continuam mais atuais do que nunca.

A narrativa da protagonista, que tem início desde sua imigração da Irlanda para os Estados Unidos aos 12 anos, não esconde em nenhum momento as dificuldades que teve com sua família ao saírem de seu país natal em busca do Novo Mundo. Sua história é uma incrível sucessão de desastres e infortúnios. Das desgraças da pobreza às dificuldades sofridas por ela e suas irmãs por conta de um pai alcoólatra e abusivo, sendo obrigada a deixar aquilo que restou de sua família para trabalhar como serviçal em regimes de trabalho semi-escravo, sem qualquer perspectiva de independência ou mobilidade, como qualquer outra pessoa no mesmo patamar social que o dela.

As roteiristas conseguem retratar uma época onde as mulheres eram obrigadas a serem subservientes aos homens, em uma sociedade machista que as impediam de decisões além do espaço doméstico. Ao proletário, a subserviência incondicional aos detentores do dinheiro e do poder.

A ingenuidade de Grace a leva a acreditar que todos os sofrimentos, perdas e desastres de sua vida sejam coisas comuns e naturais por essas terem sido a realidade que sempre viveu, e essa consciência fica explícita na maneira indiferente como ela relata sua trágica história como fatos corriqueiros, partindo do princípio fatalista e conformista de que as coisas assim são porque devem ser e nada há de ser feito para ser mudado, um ponto de vista triste e melancólico para quem observa, mas que foi (e ainda é) a realidade de uma grande maioria. Mesmo assim, as observações simplistas e tácitas da personagem sobre a vida cotidiana e submissa, e de sua função irrelevante e passageira na sociedade, ao mesmo tempo que soam poéticas, narram a crueldade social de maneira cirúrgica e arrebatadora.

Aos poucos a história de diversos acontecimentos trágicos nos revela que ela nada mais é que um produto determinado pelo meio em que vive, mas que de certa forma evolui tal como as mariposas de Darwin, obrigando-a criar escapes psicológicos para conseguir sobreviver às adversidades sociais em que está inserida, oprimindo suas vulnerabilidades e desencadeando mecanismos de defesa inconscientes. Daí o significado do título, pois "alias", numa tradução livre, significa "codinome", já que ela desenvolve personas ao longo de sua vida para conseguir superar os obstáculos e dificuldades, o que é explicado após a já citada sessão de hipnose, sequência que poderá ser facilmente confundida como um elemento sobrenatural na série quando, na verdade, é o mecanismo de defesa da personagem que se manifesta. Um momento em que toda a atenção deve ser dada, pois é ele que irá esclarecer absolutamente muitas das dúvidas semeadas ao longo dos episódios, sem tirar do espectador o seu próprio julgamento.

Se torna óbvio que o maior ponto de toda a trama é escancarar a opressão e a submissão feminina na sociedade, e que tudo o que estamos vendo nos dias atuais nada mais é do que o resultado histórico disso. E Grace Marks, sendo ou não uma metáfora, é igualmente uma consequência.

Se é angustiante ver Grace ser abusada pelo próprio pai e depois escurraçada de casa por não ter sido conivente com o incesto, isso irá parecer até pouca coisa perto de outros momentos bastante chocantes, como quando sua melhor amiga decide realizar um aborto com medo de ser despejada da casa na qual trabalha e evitar viver da prostituição para sustentar um filho indesejado. De igual forma a condição pela qual Nancy Montgomery (Anna Paquin) se submete, obrigada a se manter em uma relação abusiva para não ter o mesmo fim, descontando em Grace suas frustrações e delírios resultantes de dúvidas e incertezas, num terrorismo psicológico cultivado pelo próprio patrão para que sua vulnerabilidade esteja constantemente exposta e ele possa abusar disso sempre que lhe for conveniente. E se existem vilões na história, eles são os próprios homens, independente de sua classe social, pois a ignorância é democrática.

Apesar de toda essa brutalidade, por outro lado existe uma delicadeza, ou uma sobriedade, na forma como tudo é conduzido, justamente para amenizar situações tão indigestas, contrabalanceando momentos que poderiam facilmente se sobrepor à história de fato e saírem do contexto se tivessem seguido para um caminho mais explícito e sensacionalista.

Mérito de uma equipe formada em sua grande maioria por mulheres que compõem os principais núcleos, seja no roteiro, na direção, produção e elenco, fazendo o produto final ter um olhar feminino bastante honesto de mulheres falando sobre mulheres, e não homens falando sobre aquilo que acham ou acreditam ser sobre mulheres.

Para quem já conhece os trabalhos da canadense Sarah Polley, seja como atriz, roteirista ou diretora, sabe que seu engajamento político e feminista é bastante presente naquilo que faz, mas sem ser extremista ou doutrinante, ela apenas explora personagens femininas com o intuito de mostrar lados e situações que, tanto a sociedade, como a indústria do entretenimento, insistem em esconder ou deturpar. E ao juntar forças com Atwood, em uma produção que, segundo a própria Polley, demorou 20 anos para se concretizar, Alias Grace surpreende pelo desenvolvimento lento e detalhado de um drama psicológico que escancara a responsabilidade da sociedade sobre a maneira que ela mesma enxerga e compreende os gêneros, e que o empoderamento feminino e a constante busca pela igualdade que tanto tem ganho força nos últimos anos não é uma necessidade de auto-afirmação ou de promoção sexista, como muitos daqueles que não compreendem a necessidade dessas mudanças costumam contra-argumentar, mas uma dura batalha necessária contra uma herança cultural secular opressora e abusiva, ainda existente porque a História nos mostra que taxar um sexo de frágil, e criar uma cultura conivente a isso, sempre foi benéfico para aqueles que se sustentam disso, e sempre será enquanto essa deturpada consciência existir.

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