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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

DESDE O PRIMEIRO EPISÓDIO...

★★★★★★★★☆☆
Título: The Sinner
Ano: 2017
Gênero: Drama, Suspense, Mistério
Classificação: 16 anos
Direção: Vários
Elenco: Jessica Biel, Bill Pulman, Christopher Abbott
País: Estados Unidos
Duração: 60 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Após assassinar um homem desconhecido, uma mulher tenta descobrir o que a levou ter esta atitude violenta.

O QUE TENHO A DIZER...
Chelsea Handler uma vez disse em seu programa que, ao conhecer Jessica Biel, se surpreendeu pela sua beleza, talento, inteligência e espirituosidade. De fato, quando a atriz chamou a atenção no remake de O Massacre da Serra Elétrica (2003), sabíamos que ela não era apenas mais um rostinho bonito colocado lá apenas para chamar atenção. Mas seguindo um caminho totalmente inverso ao esperado, ela nunca abraçou o título de estrela que Hollywood quis, com tanta insistência, condecorá-la. Uma carreira sempre muito comedida e discreta, que tenta se manter relevante fora do grande circuito comercial, produzindo sua estréia no primeiro seriado em que é protagonista. Ela já havia se aventurado como produtora antes, como no filme O Homem das Sombras (2012), cuja personagem de personalidade igualmente desfragmentada mostra a predileção da atriz por temas psicologicamente complexos.

Ler a sinopse de The Sinner, sobre uma mulher que comete um crime sem se lembrar dos motivos que levaram a isso, pode não parecer novidade. Afinal, quantos filmes e séries existem por aí com um argumento parecido?

Mas quando damos a série uma oportunidade é que descobrimos que, ao longo dos episódios, a história pode soar similar e a sua construção, feita através de flashbacks e memórias desconexas, pode parecer genérica, mas seu diferencial é sair da obviedade de maneira inteligente e, no fim, nada ser aquilo que imaginávamos.

O primeiro episódio é surpreendente por si só, e serve como uma poderosa ferramenta de persuasão, já que instantaneamente irá conquistar o interesse do espectador em compreender os motivos e razões para Cora Tannetti (Jessica Biel) ser a personagem perturbada e multidimensional que é. E se tem uma coisa que esta nova produção selada pela Netflix faz com categoria é nos dar a mesma agonizante sensação que a própria personagem tem de que, conforme os fatos se revelam, mais complexo o desenvolvimento fica e menos ainda percebemos saber sobre tudo, embrenhando todos em um labirinto que não parece ter fim ou saída, e é por isso que a protagonista, desde o princípio, é tão enfática sobre sua própria culpa.

É essa consciência de culpa que irá criar uma empatia imediata dela com o público, por mais brutal e doloso que seu crime possa parecer, porque a princípio o roteiro não se interessa em convencer o espectador do contrário. O que é um grande ponto de partida, já que facilmente poderíamos deliberadamente condená-la e julgá-la a nossa própria maneira caso seu arco dramático não tivesse sido bem construído, ou oferecesse perspectivas diferentes do que aquela que o roteiro constrói a passos lentos e densos.

Enquanto Cora está convicta de que nada é capaz de retirar dela a responsabilidade de seus atos e que ela deve ser punida por isso (o que a princípio concordamos e de estranha maneira nos sensibilizamos), é óbvio que, como observadores, sabemos que existe mais na história do que aquilo que espelha em sua superfície. É com esse objetivo esclarecedor que entra em cena o delegado Ambrose (Bill Pulman), que quer a todo custo compreender as motivações que levaram Cora ao homicídio, por mais que os testemunhos e a própria confissão de culpa dela já fossem o suficiente para sua sentença e encerramento do caso.

Ambrose se dedica na investigação por diversos motivos. Assim como ela, ele também carrega consigo culpas e complexos resultantes de uma vida pessoal e profissional falida em uma cidade pacata e socialmente doente. Ele se sente inferiorizado, estagnado, preso em um ciclo contínuo de dúvidas e buscas, submisso ao meio em que vive. Sua incondicional dedicação ao caso de Cora deixa de ser uma obrigação para se tornar uma punição, uma necessidade quase obsessiva de se redimir das próprias culpas que carrega. 

Fazia muito tempo que não assistia um seriado tão intrigante como esse. De igual valor, ele se assemelha bastante à primeira temporada de Damages (2007-2012) na maneira surpreendente em que as tramas e subtramas se revelam através de fatos presentes e flashbacks. Mas enquanto em Damages a intenção era criar um suspense criminal e jurídico consistente e cheio de reviravoltas, aqui existem diversas camadas dramáticas que se sobrepõem umas às outras, desconstruídas de tal forma a reproduzirem de maneira eficiente a confusão em que a protagonista se encontra, numa complexidade psicológica convincente, que irá justificar absolutamente todos os comportamentos dos personagens, seus traumas, complexos e vulnerabilidades. Por isso se enquadra nas séries com os personagens mais ricos a estar disponível no serviço atualmente. E por conta de seu enredo e de algumas construções, é um tanto impossível também não perceber certas similaridades narrativas com Alias Grace, outra mini-série recente da Netflix, já que ambas protagonistas, mesmo convictas de suas próprias culpas, sejam consequências decorrentes de diversas situações delicadas de abusos familiares e traumas sociais.

Igual a outros produtos do mesmo gênero, a série se destaca por nada ser aquilo que parece ser. Existem os elementos dispersivos, como em qualquer outra produção que se utiliza da mesma fórmula construtiva, mas ao contrário do que comumente costuma ser, não são elementos enganosos soltos aleatoriamente para distrair ou confundir o espectador gratuitamente, os chamados red herrings. O desenvolvimento da história tem sua linearidade na narrativa presente, mas não linear na sua narrativa passada conforme as memórias de Cora se encaixam como um quebra-cabeças, e em momento algum isso é um artifício barato de tentar trazer falsa densidade. Como dito, os níveis de complexidade dos personagens são construídos de forma vagarosa, camada a camada, e tudo o que é mostrado terá sua devida importância no momento certo, resultando em um produto bem pensado, organizado e tecnicamente correto.

Há diversas situações surpreendentes e reviravoltas inesperadas justamente pela maneira cirúrgica como as subtramas são sobrepostas. Existem momentos bastante chocantes em outros núcleos, havendo até mesmo uma sequência um tanto perturbadora se vista de forma superficial e preconceituosa, mas realizada de maneira tão delicada e bem justificada que deixa de ser um simples incesto para se tornar um situação singular de extrema compaixão. A trajetória paralela de descobertas e buscas em que Cora e Ambrose traçam, um se tornando a metáfora do outro, confinados cada um dentro de seus próprios complexos, gera entre eles um nível de mútua cumplicidade, confiança e dependência que nenhum deles havia se disposto até então, aflorando sentimentos honestos de maneira natural e emotiva que os ajudam a superar os obstáculos e adversidades ao longo do caminho.

The Sinner é explícito em todos os sentidos, seja na sua brutalidade física ou psicológica, sendo intrigante, chocante e provocativo nos temas que aborda em medidas certas, uma experiência bem diferente e satisfatória dentro de um enredo que parece simples, mas construído com tanto cuidado e atenção a mínimos detalhes que falar qualquer coisa dele além de questões técnicas é estragar completamente a experiência surpreendente que ele oferece em diversos momentos.

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