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quarta-feira, 25 de outubro de 2017

STEPHEN KING OUTRA VEZ...

★★★★★★★★☆
Título: 1922
Ano: 2017
Gênero: Horror, Suspense, Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Zak Hilditch
Elenco: Thomas Jane, Molly Parker, Dylan Shmid, Neal McDonough
País: Estados Unidos
Duração: 102 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um fazendeiro arquiteta um plano macabro de assassinar sua mulher, convencendo o próprio filho a fazer parte disso.

O QUE TENHO A DIZER...
Que 2017 é o ano das atuais gerações (re)descobrirem Stephen King, isso já está mais do que claro. E depois da Netflix produzir a (péssima) série O Nevoeiro (The Mist, 2017), mas em contraponto também produzir o interessante Jogo Perigoso (Gerald's Game, 2017), o público foi pego de surpresa com essa nova e fresquinha adaptação, que também leva o selo do serviço.

Stephen King rende bons filmes quando bem adaptado, mas o difícil é encontrar quem o faça com categoria, pois suas obras são cheias de nuances, referências e metáforas embrenhadas em toda sua cabeça fantástica e macabra. Eclético e variado, por mais que alguns temas sejam recorrentes em suas obras, se distanciam umas das outras pelas diferentes abordagens, pela narrativa, pelas referências e analogias distintas. Enfim, é um autor que possui qualidades até mesmo nos menores contos, ou nos livros menos conhecidos.

1922 chega para provar que suas melhores adaptações são aquelas sem pretensões de impressionar ou serem grandes blockbusters. Baseado em uma história publicada na coletânea Escuridão Total Sem Estrelas (Full Dark, No Stars, 2010), a adaptação é uma produção pequena e contida, dirigida, escrita e produzida pelo desconhecido australiano Zak Hilditch, um filme considerado pelo pelo próprio autor uma das melhores adaptações de suas obras em 2017.

Não é por menos. A produção é recheada de qualidades que faltam em muitos de seus outros títulos já adaptados, extraindo da história todos os elementos e características do autor de uma forma bastante homogênea, linear e densa, diferente, por exemplo, de Jogo Perigoso, que tropeça várias vezes, mas sem cair.

Aqui a história gira em torno de Wilfred (Thomas Jane) e Arlette (Molly Parker), e da dificuldade de ambos em levar adiante uma relação infeliz e indesejada, já que cada um deles possuem objetivos e vontades diferentes, mas continuaram juntos apenas para criarem e educarem o único filho, a verdadeira razão de terem se casado.

Enquanto Arlette quer vender os 100 acres herdados de seu falecido pai e abandonar a vida rural que tanto detesta, Wilfred deseja agregar a herança de sua mulher à fazenda que já possuem, e assim terem um território generoso e produtivo que garantirá o futuro de seu filho e de futuros netos. Arlette recusa a proposta e ameaça seu marido com o divórcio e também em levar seu filho com ela para a cidade caso ele persista na idéia de permanecer na fazenda. Desesperado, Wil quer tanto manter a fazenda como seu filho por perto, o qual também não tem vontades de se mudar para a cidade principalmente porque está apaixonado por sua vizinha. Sem encontrar alternativas, Wil começa a voltar seu filho contra sua própria mãe, e assim cultivar nele o ódio necessário para que ele o ajude em um cruel e diabólico plano de assassiná-la.

A década de 20 nos Estados Unidos foi marcada por um extenso crescimento industrial que avançava com bastante força e rapidez para o oeste e sul do país, ainda consequências da Guerra Civil (Secessão) e da Primeira Guerra Mundial, marcando a ascensão americana como grande potência não apenas bélica, mas política e econômica até a Grande Depressão devastar o país em 29 e perdurar pela década de 30. Na parte central, no interior do estado de Nebraska, onde a história se passa, a chegada de fazendeiros corporativistas e de indústrias alimentícias marcava o fim da vida pacata e autosuficiente dos fazendeiros e da vida rural simples e comum, mostrando a todos que o futuro finalmente havia chegado e, junto com ele, o progressismo comercial e suas consequências.

A princípio, e de maneira bastante superficial, pode parecer que o enredo se trate apenas de um jogo macabro de interesses e oportunismos, porém é aí que a mente brilhante de King começa a tomar forma, porque podemos enxergar nos personagens o conflito que o avanço tecnológico e industrial trouxe para aquela época. Não é à toa que Arlette quer abandonar a vida rural para ir atrás de um futuro promissor, no sonho de ter sua própria boutique, numa época que a moda começava a abandonar sua rigidez e a modestamente mostrar uma personalidade mais ousada e consumista (como no momento em que são citadas as calças jeans, por serem mais confortáveis às mulheres em "longas viagens"), enquanto Wil pretende a todo custo manter sua tradição enraizada no mesmo lugar, longe de coisas que possam corromper seu bucolismo (como no momento que sente ter inveja de seu vizinho pelas coisas que possui). E o filho, no meio de tudo, ligado a meros valores ingênuos que serão interrompidos com a cruel realidade em algum momento, tão rápido e fácil quanto dar a partida em um carro.

A resistência de Wil em migrar para a cidade é de igual intensidade a Arlette em permanecer com ele, algo que, quando visto por essa metáfora, se reflete na brutal cena de seu assassinato, na dificuldade de Wil em matá-la e na resistência dela em morrer, como a querer mostrar que o futuro pode ser postergado, mas é inevitável, e o lado mais forte sempre vence. Tanto que Wil é constantemente obrigado a ceder a necessidades mais cosmopolitas, aos poucos deixando suas origens e cortando (literalmente) suas raízes e ferramentas de trabalho, chegando a um triste fim, preso em um quarto de hotel, refém de suas próprias escolhas.

O diretor e roteirista tem êxito a transpor para a tela essas delicadas referências responsáveis por dar razões subliminares aos conflitos sem parecerem que foram simplesmente jogados na história sem qualquer razão. E a partir dessas sólidas fundações, o horror, o sofrimento psicológico e a punição passam a ser construídos. E Tomas Jane, numa caricatura um tanto similar a de Duke Mantee, imortalizado por Humphrey Bogart no clássico A Floresta Petrificada (1936), embarca numa jornada quase cíclica de consequências e culpas, e como o peso de um homicídio gradativamente retorce a consciência e consome a alma de quem o comete.

Ao contrário de nos depararmos com um protagonista tendo atitudes heróicas, como aconteceu com o próprio Jane na adaptação de Frank Darabont de O Nevoeiro (2007), aqui presenciamos totalmente o inverso: o nascimento de um genuíno vilão concebido pela sua própria ambição, do qual somos incapazes de encontrar qualquer simpatia até mesmo nos momentos de honesto e tardio arrependimento, e dessa forma, toda a atmosfera sombria se desenvolve como delírios de Edgard Alan Poe, autor também bastante referenciado, já que o conto de King também é visto por muitos como uma releitura de O Coração Revelador (The Tell-Tale Heart, 1843), por possuir os mesmos elementos góticos.

Hilditch conduz tão bem a narrativa e seus pormenores que a sensação de assistir a adaptação de um conto é nítida. Não pelo seu tempo ou aparente simplicidade, mas pela forma condensada como é construído, focado em um pequeno número de personagens, em espaços sucintos, sem obviedades desnecessárias ou qualquer outro elemento que desvie a atenção do espectador. E embora a fotografia seja belíssima até mesmo nos momentos mais indigestos, a saturação da imagem não favorece a sensação de época que o longa poderia ter tido. E por alguns momentos o filme se estende demais em situações que poderiam ter sido mais curtas, e assim ter dado oportunidade para os personagens nos darem maiores motivos para entendermos melhor suas intenções.

De qualquer forma, como um todo, é sem dúvida uma das melhores adaptações de King até hoje, que obviamente poderá não agradar aqueles que preferem os filmes baseados em suas histórias de terror mais físicas e óbvias. Não causa medo e nem sustos baratos, mas há material de sobra para ser apreciado como um genuíno conto macabro que progride de maneira bastante correta em sua proposta, além de bastante ousado numa época em que os filmes mais comerciais tem abusado de clichés levianamente para se manterem confortáveis e igualmente sem surpresas.

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