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quinta-feira, 5 de outubro de 2017

COMPETENTE, MAS NÃO MARCANTE...

★★★★★★☆☆☆☆
Título: Jogo Perigoso (Gerald's Game)
Ano: 2017
Gênero: Suspense, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Mike Flanagan
Elenco: Carla Gugino, Bruce Greenwood, Henry Thomas
País: Estados Unidos
Duração: 103 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Aqueles dias que pareciam ser os momentos ideais para romantismo e realização de fantasias sexuais se transforma em um grande pesadelo de confrontos e sobrevivência.

O QUE TENHO A DIZER...
Realmente Stephen King é como jeans: pode passar despercebido, mas de tempos em tempos volta à moda.

Depois das adaptações de A Torre Negra (The Black Tower, 2017), o remake de It (2017) e da (péssima) adaptação de O Nevoeiro (The Mist, 2017) como uma série para o Netflix, o serviço agora carimba seu selo outra vez em Jogo Perigoso, adaptação do livro homônimo do autor, publicado originalmente em 1992.

E como falei na análise sobre a série O Nevoeiro, King é um autor que faz uso de metáforas sociais e/ou políticas para construir suas obras de horror e fantasia. Aqui não seria diferente, e a obra original constrói sua história em cima de algumas das perversões mais comuns e recorrentes no sexo masculino, como o incesto, a pedofilia e a cultura do estupro, desde o sadismo do fetiche à sua realização (ou a tentativa dele). Etapas que consequentemente levam à concretização da violência e também o feminicídio. Violências que, além de físicas, são psicológicas e perturbadoras às suas vítimas.

Temas recorrentes nas obras de King, direta ou indiretamente, Jogo Perigoso era para ser uma história que acompanhasse o livro Eclipse Total (Dolores Claiborne, 1992), brilhantemente adaptado para o cinema em 1995, e que conta a história de Dolores, uma mulher que planeja o assassinato do marido violento e incestuoso justamente no dia do eclipse solar de 1963. E é o citado eclipse que conectaria a história de Dolores com a história de Jesse, duas mulheres em crise, cujas reviravoltas em suas vidas ocorrem exatamente no momento do espetáculo astronômico. Respectivamente, uma tendo seu momento de resolução e libertação, e a outra, seu momento de negação e aprisionamento. Porém, ambos acabaram sendo lançados separadamente, sobrando apenas o eclipse como uma referência de que as duas histórias ocorrem dentro de um mesmo universo e situação.

Jesse (Carla Gugino), a protagonista da história, é casada com um importante advogado. Ambos resolvem passar alguns dias sós em sua casa de veraneio para tentarem renovar um casamento estagnado e uma vida sexual fria, acomodada com o tempo. Porém, os momentos que eram para ser de perfeito romance e fantasias inofensivas, se torna um verdadeiro pesadelo quando Gerald (Bruce Greenwood) começa a expor um comportamento violento e oprimido, e enquanto Jesse tenta se defender, seu marido sofre um ataque cardíaco e morre. Algemada na cama e sem maneiras de pedir socorro, Jesse embarca em uma situação histérica, desencadeando alucinações conflitantes vindas de diferentes partes de sua personalidade, trazendo à tona traumas passados esquecidos e que justificam todas as dúvidas e questionamentos tanto por parte da personagem quanto por parte do espectador.

Dirigido por Mark Flanagan, diretor que tem construído uma interessante trajetória em filmes como Absentia (2011), O Espelho (Oculus, 2013) e Ouija (2016), aqui o enredo tem tudo aquilo que faz parte de seu estilo, principalmente no conflito entre a realidade e o sobrenatural. E assim como o excelente filme Quarto 1408, de 2007, livremente adaptado de um conto de King por Mikael Håfström, a história também se passa dentro de um quarto, em uma narrativa lenta, igualmente progressiva e que leva a protagonista a confrontar seus mais profundos medos, moral sempre presente nas obras do autor.

A vulnerabilidade de Jesse a obriga tomar decisões radicais que a empoderam como pessoa, como vítima, e como mulher. É então que as metáforas se personificam no filme: o marido tomando a forma da violência; a personalidade da protagonista se fragmentando em dúvidas e respostas; o cachorro que simbolicamente se alimenta vagarosamente das dores da personagem; uma figura misteriosa que representa todas as diversas perversidades oriundas da personalidade masculina dominante; as algemas que mantém Jesse aprisionada a um passado traumatizante; uma corporação que evita o fato se transformar em um escândalo midiático, como a querer novamente calar a personagem e transformar mais um episódio traumatizante de sua vida em algo pueril. Dentre outras...

Infelizmente, apesar de tantas nuances e situações de interpretações livres e mistas, o filme, como um todo, merece atenção, mas sofre por não ter um ritmo coerente, principalmente nos momentos de flashback em que revisitamos o passado de Jesse quando criança. Diferente da maneira extremamente bem construída de Eclipse Total (filme que também se utiliza de flashbacks para desenvolver o arco dramático), aqui a conexão entre o presente e o passado não são feitas da maneira fluida como foi no filme de Taylor Hackford. Os cortes bruscos e a repentina mudança de situações quebra as alucinações e devaneios da personagem junto com toda a atmosfera apreensiva que é muito bem construída em diversas sequências, ao ponto do espectador se encontrar ofegante em várias delas, mas nunca levado a um ápice narrativo de fato. A total ausência de trilha sonora também se torna um tanto incômoda, pois há vários momentos em que ela poderia agir como um excelente elemento para fortalecer os momentos que se enfraquecem sem precisar se sobrepor, e o ritmo oscilar de maneira positiva.

O roteiro também não entra em detalhes sobre a personalidade de Gerald, que no livro tende a ser dominante e agressivo na sua vida profissional, o que justificaria de maneira coerente suas fantasias. E, talvez, para facilitar a narrativa, as alucinações de Jesse e as vozes que ela ouve de uma personalidade que se fragmenta, gira em torno de outras figuras no livro além das diferentes versões dela mesma e de seu marido. Embora no filme haja apenas essas duas figuras, as mesmas acabam atuando como uma junção das demais que foram omitidas. E para aqueles que conhecem as principais obras de King, também é impossível não reparar nas referências diretas existentes a Cujo, Saco de Ossos, ou até Rose Madder.

Na construção, o que mais chama a atenção é o fato dos papéis sexistas se inverterem entre os atores, finalmente. Em um filme qualquer, Carla Gugino dificilmente estaria de camisola, mas sim de lingerie. Mas ao contrário, é Bruce Greenwood quem fica o filme todo de roupa íntima, ator que, aos 61 anos, acabou se tornando o verdadeiro DILF (procure no Google) de muitos comentários por aí. Interessante em uma indústria que tende a sexualizar apenas as mulheres, e algo bastante relevante em um filme cujo tema feminista esteja bastante presente. 

Para um livro que, ao mesmo tempo que é um dos preferidos dos fãs de King, na mesma proporção também é considerado um dos seus livros menos inspirados, o filme tem sido bastante elogiado por aqueles que conhecem a obra original, principalmente porque seus elementos chaves foram mantidos, bem como muitos diálogos. Um roteiro fiel à história, sem mudanças principalmente em sua conclusão, coisas que King sempre reprovou nas adaptações cinematográficas de suas obras. Uma conclusão que, diga-se de passagem, se transforma em uma explicação um pouco mais didática de toda a história para aqueles que provavelmente tiveram dificuldade de compreender suas referências e associações até então, algo que no livro pode vir a calhar depois de 400 páginas, mas que no filme acaba não evitando a sensação de excesso, muito embora a cena final tenha um simbolismo importante ao mostrar que os homens só se sentem poderosos e vitoriosos através da violência e do abuso, e sem isso, se tornam tão pequenos quanto próprio desprezo que esses tipos merecem.

Jogo Perigoso trata de assuntos bastante interessantes que, mesmo se tratando de uma adaptação de uma obra de 1992, por incrível que pareça, estão mais atuais do que nunca. Como um suspense com pitadas de horror, como bem é o estilo de King, consegue ter seus momentos de tensão e até outros bastante indigestos, mas não deixa de ser um filme para os fãs do livro. E para aqueles que não conhecem a obra original, provavelmente ficará difícil compartilharem da mesma opinião. Um filme competente, mas não marcante como poderia.

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